Desenvolvi em passado não muito distante, principalmente no antigo
blogue Pensatas (que antecedeu a
este e sumiu misteriosamente no mundo virtual) uma guerra levantando o papel do
exército paralelo formado por empresas particulares de segurança em apoio à
invasão dos EUA, principalmente nas guerras do Iraque e do Afeganistão. Ficavam
evidentes e claras a participação destas empresas, particularmente a mais
falada à época, a Blackwater.
A entrevista que se segue, li no jornal Brasil de Fato, aborda muito bem a questão, e foi
originalmente publicada no Jornal Página 12 (de
Buenos Aires), tendo a autoria de Natália
Aruguete e Walter Isaías.
“A guerra não é mais para instalar outro modelo econômico: ela é o
modelo”, diz Dario Azzelini, pesquisador italiano da evolução militar, acrescentando
que a ideia de um conflito permanente cria condições para o surgimento de um
modelo econômico que seria impossível de instalar em condições de paz. Ao mesmo
tempo, é cada vez mais importante a intervenção de Companhias Militares
Privadas (CMPs) em todo o mundo, com a impressionante terceirização das guerras,
abrangendo do Iraque até a Colômbia.
Página 12 - Que
significa a denominação de “novas guerras” que o senhor usa no livro O
Negócio da Guerra?
Dario Azzelini - No debate
acadêmico e − em parte − o político, a expressão “novas guerras” foi
introduzida para denominar o fato que mais e mais guerras não se dão entre
países mas no interior dos países ou, pelo menos, entre um exército regular e
um irregular. A expressão, porém poderia se ampliada porque com as modificações
de estratégias de sua condução, vemos que até os países com exércitos regulares
estão transferindo a violência para empresas privadas ou estruturas
paramilitares: atores que não são os tradicionais nas guerras “comuns”.
P12 - Acabaram
as guerras entre Estados?
DA - Não é que tenham acabado.
Pelo contrário, na última década tambem houve um aumento das guerras entre
países, mas se apresentaram de outra maneira. Os ataques ao Afeganistão ou
Iraque foram guerras entre países, mas a porcentagem das guerras irregulares em
comparação com as regulares está aumentando.
P12 - Isso obedece à lógica neoliberal?
DA - Dizemos que obedece a certas
lógicas do neoliberalismo no sentido de aumentar lucros. O sentido da guerra
mudou. Tradicionalmente era para trocar as elites e o controle das economias,
ou introduzir outro modelo de domínio econômico ou político. Agora, em muitos
casos as guerras são permanentes. Não se faz a guerra para implementar outro
modelo econômico, mas a guerra mesmo é o mecanismo de lucros.
P12 - Por
exemplo?
DA - Por exemplo, Colômbia. Muito
dos lucros nesse país são porque − praticamente − é um país em guerra. Durante
os últimos 20 anos, a passagem da pequena e média agricultura para a
agroindústria se fez com uma guerra. Se não fosse assim, não teria sido
possível expropriar as terras de milhões de camponeses e fazer uma reforma
agrária ao contrário, na qual os latifundiários e paramilitares se apropriaram
de seis milhões de hectares de terra.
P12 - Neste cenário, como fica o lugar
do Estado?
DA - Em todo o discurso liberal
se diz que o Estado está supostamente perdendo o controle desses atores
armados. Fundamentalmente, no caso da Colômbia. Creio que os Estados não perdem
o controle e, se o perdem, é em pequenos pontos. Simplesmente estão
terceirizando as funções repressivas ou de guerra, criando mais confusão. Os
grupos paramilitares colombianos foram criados pelas dificuldades do Estado em
conseguir financiamento internacional nos anos 80, pela responsabilidade do
exército ou da polícia em delitos contra os direitos humanos. Logo se montou o show da suposta desmobilização dos
paramilitares, mas já no final dos 90 era de conhecimento público que o
paramilitarismo estava coordenado, fomentado e controlado pelo exército e as
autoridades colombianas. Em 2000, a Human
Right Watch publicou uma análise da Colômbia cujo título era Paramilitarismo, a sexta divisão do exército
colombiano (o exército colombiano tinha cinco divisões). Nesse informe
esclarecem que o paramilitarismo é parte integral da situação do exército
colombiano e que o processo de desarmamento é uma farsa. Os supostos
paramilitares desmobilizados aparecem em outras zonas da Colômbia onde ainda se
necessita o paramilitarismo como estratégia ou como supostos grupos rearmados.
P12 - Como e
quando nascem as Companhias Militares Privadas (CMPs)?
DA - As primeiras nascem
imediatamente depois da II Guerra Mundial, porque o exército dos Estados Unidos
tinha grande capacidade de transporte que já não necessita manter e começou a
privatizar parte do transporte. Porém o verdadeiro boom dessas empresas começou em fins dos anos 1980 e foi reforçado
de forma maciça nos 1990. Na primeira guerra dos Estados Unidos contra o
Iraque, a relação entre os empregados das CMPs e os soldados era de um para
100. No Afeganistão, de um para 50/40. Agora, no Iraque há 180 mil empregados
das CMPs, segundo dados do próprio exército norte-americano, que só tem 140 mil
homens ali.
P12 - Que
atividades exercem estas companhias?
DA - Todas as que alguém possa
imaginar. O emprego de armas sofisticadas (como aviões não tripulados, radares
ou mísseis de navios estadunidenses) na primeira onda de ataques ao Iraque foi
realizado por especialistas de empresas privadas. Além disso distribuem a
correspondência, cozinham ou lavam a roupa dos soldados, montam os acampamentos
militares, as prisões. No caso da prisão de Abu
Ghraib houve julgamentos e investigações contra menos de 10 soldados dos
Estados Unidos, quando deveria haver muitos mais implicados. A verdade é que a
prisão era administrada em todas as suas funções por duas empresas privadas:
CACI e Titan.
P12 - Quais são as vantagens de
terceirizar esse tipo de tarefas para as CMPs?
DA - Como formalmente são civis,
não podem, portanto, ser julgados pela Justiça militar. Ao mesmo tempo, em seus
contratos lhes é assegurado que não podem ser submetidos à Justiça civil dos
países em que eles atuam. Praticamente se criou um campo de impunidade. E a
única via para fazer algo contra esses crimes é iniciar processos nos Estados
Unidos contra essas empresas. Quantas vítimas têm a possibilidade de fazer
isso. Quase ninguém.
P12 - Cria-se uma espécie de marco
normativo para acionar estas empresas?
DA - Sim. Legaliza-se todo o
negócio dos mercenários com esse marco de impunidade. Além disso, terceiriza-se
a responsabilidade. Milles Frechette, ex-embaixador dos Estados Unidos na
Colômbia, disse que é muito cômodo trabalhar com essas empresas porque se
morrem, não são soldados dos Estados Unidos e, se fazem algo errado, a
responsabilidade tampouco recai sobre os Estados Unidos. No caso da DynCorp que faz as fumigações de
supostas culturas de amapola e coca, na Colômbia há um processo
internacional porque fumigaram parte do Equador. Mas a empresa alega que eles
não podem dizer nada porque parte de seu contrato é não dar informação a
terceiros. O contrato vem do Pentágono. Então, se um congressista lhe solicita
prestação de contas , o Pentágono apresenta o contrato e diz: eles fazem estas
tarefas. Se faz algo mais não podemos controlá-la porque é uma empresa privada.
P12 - Estas empresas, geralmente estadunidenses, são contratadas pelo
Pentágono?
DA - A maioria. De fato, a maior
parte do financiamento vem dos Estados Unidos. Do gasto militar no âmbito
mundial os Estados Unidos executa a metade. Há empresas também na Europa,
empresas russas, na Ásia. Mas as dos Estados Unidos só trabalham sob o consenso
do Pentágono. Pode ser que treinem o exército da Coréia do Sul, mas com o de
acordo do Pentágono. As empresas russas ou outras de países do Leste,
contrata-as quem tem dinheiro.
P12 - Como
convive o exército norteamericano com as CMPs?
DA - Depende de que setores do
exército falemos. No campo concreto provavelmente haja conflitos, já que os
empregados dessas empresas de segurança costumam ganhar mais do que os
soldados. Trabalham em assuntos de maior risco com menos segurança. Porém
trabalhar juntos funciona muito bem porque as empresas de segurança são
fundadas e organizadas por ex-membros do exército dos Estados Unidos. Também
muitos políticos são donos ou copartícipes dessas empresas. Há empresas como a
MPRI, fundada por generais dos Estados Unidos da primeira guerra contra o
Iraque, que estiveram durante um tempo nas reuniões do Pentágono. Há ligações
pessoais muito estreitas. A Eagle
Aviation Services and Technology (EAST), que prestou serviços à CIA nos
anos 80, é a encarregada do transporte de maquinaria no marco do Plano Colômbia
e do Plano anti drogas na América do Sul.
P12 - Quanto
dinheiro movimentam estas empresas?
DA - É um negócio que deve estar
movimentando ao redor de 150 a 200 bilhões de dólares por ano no mundo. As
pequenas foram compradas pelas maiores, movimentam muito dinheiro, várias têm
cotação na Bolsa. Tornou-se um mega negócio no qual participam empresas que
trabalham em outros campos. Mas também há ligações entre empresas
transnacionais de recursos naturais como petrolíferas e mineradoras.
P12 - Pode nos dar um exemplo?
DA - Na guerra no Congo, antes
que Laurent Cavila ganhasse, havia mineradoras transnacionais que pagavam a
mercenários ou a empresas militares privadas para acompanhar as diferentes
facções. Uma vez liberado um território mineiro, já havia engenheiros e as CMPs
com as mineradoras tinham o controle do território e faziam um acordo com a
facção ganhadora para explorar a jazida.
P12 - Como é
a contratação das CMPs?
São contratadas para fazer
trabalhos. E esse também é outro assunto para escapar do controle. A lei norteamericana
estabelece que todos os contratos que superem 50 milhões de dólares têm que ser
aprovados pelo Congresso. Normalmente fracionam-se os contratos para que sejam
inferiores e o Congresso nem se intera desses contratos ou do que estejam
fazendo essas missões. É a possibilidade de os Estados Unidos fazerem
intervenções militares em outros países sem que apareçam como tais, porque não
são seus soldados que atuam. Todos sabemos o impacto público que causa a imagem
dos soldados mortos com a bandeira yankee
que regressam aos Estados Unidos. Isso não acontece se morre um empregado de
uma empresa privada: não causa indignação pública porque é como se morresse um
empregado da IBM em Cingapura. Ninguém se importa com isso. No Iraque pode-se
estimar que haja morrido, no mínimo, dois mil empregados das CMPs. Isso ajuda a
manter o número de baixas num nível baixo.
A entrevista é muito esclarecedora.
ResponderExcluirA existência desses exércitos privados é uma realidade comprovada neste país em que a violência é quase uma religião. Vide Boston hoje!
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