Por vezes a falta
de tempo por excesso de trabalho nos impede de escrever. É o meu caso nos
últimos tempos; em função de muitas tarefas profissionais me sobra pouco espaço
para pensar e tornar publicáveis pensamentos, cuja complexidade, na maioria das
vezes toma muito tempo. Por isto, segue hoje esta pensata. Que mesmo não sendo
minha, reflete o meu pensamento.
Marxismo e Natureza Humana
Por Valério Arcary, editor
do Blog Convergência
– Publicado em Outras
Palavras.
“Se se
entende que toda transgressão contra a propriedade, sem entrar
em distinções, é um roubo, não será um roubo toda a propriedade privada?
Acaso minha propriedade privada não exclui a todo terceiro desta propriedade?
Não lesiono com isso, portanto, seu direito de propriedade?
em distinções, é um roubo, não será um roubo toda a propriedade privada?
Acaso minha propriedade privada não exclui a todo terceiro desta propriedade?
Não lesiono com isso, portanto, seu direito de propriedade?
Karl Marx, Os
debates na Dieta Renana sobre as leis castigando os roubos de lenha
O argumento que defende a justiça
da propriedade privada foi sempre a pedra angular do liberalismo. Se o direito
à propriedade privada fosse ameaçado, argumentaram os liberais, a liberdade
seria destruída. Se a possibilidade de acumulação ilimitada de capital fosse
reduzida, ou o direito de herança condicionado, as restrições à busca do
enriquecimento teriam conseqüências catastróficas: o crescimento econômico
seria sacrificado, a inovação tecnológica inibida e o espírito de iniciativa
amputado. A sociedade estaria condenada ao atraso, à estagnação e até à
preguiça.
Depois da restauração capitalista
na Rússia e no Leste Europeu, inventaram-se eufemismos para garantir dignidade
a valores desmoralizados diante da sociedade na etapa histórica anterior pela
experiência social. Depois da derrota do nazi-fascismo a idéia da solidariedade
humana tinha estabelecido raízes sólidas na maioria das sociedades urbanizadas.
Para desqualificar os princípios mais elementares de justiça e solidariedade, a
ganância foi validada como ambição legítima. A cobiça foi promovida a
aspiração de aquisitividade. A rivalidade ganhou ares respeitosos como
competição pela eficiência. E a ostentação foi reconhecida como exibição da
prosperidade.
O homem como
lobo do homem
Remetendo as formas econômicas da
organização social contemporânea às características de uma natureza humana
invariável – o homem como lobo do homem –, o liberalismo fundamentava a
justificação do capitalismo na desigualdade natural. A rivalidade entre os
homens e a disputa pela riqueza seriam um destino incontornável. Um impulso
egoísta ou uma atitude comodista, uma ambição insaciável ou uma avareza
incorrigível definiriam a nossa condição. Eis o fatalismo: o individualismo
seria, finalmente, a essência da natureza humana. E a organização política e
social deveria se adequar à imperfeição humana. E resignar-se.
Uma humanidade dominada pela
mesquinhez, pela ferocidade, ou pelo medo precisaria de uma ordem política
disciplinada, portanto, repressiva, que organizasse os limites de suas lutas
internas como uma forma de “redução de danos”.
Resumindo e sendo brutal: o
direito ao enriquecimento seria a recompensa dos mais empreendedores, ou mais
corajosos, ou mais capazes e seus herdeiros. A propriedade privada não seria a
causa da desigualdade, mas uma consequência da desigualdade natural. É porque
são muito variadas as habilidades e disposições que distinguem os homens que,
segundo os defensores de uma natureza humana rígida e inflexível, existe a
propriedade privada, e não o inverso. A diversidade entre os indivíduos, inata
ou adquirida, seria o fundamento da desigualdade social. Em consequência, o
capitalismo seria o horizonte histórico possível e o limite do desejável.
Porque com o capitalismo, em princípio, qualquer um poderia disputar o direito
ao enriquecimento. Os liberais sempre se apressaram em admitir que nem todos o
conseguirão, por certo, para mascarar sua defesa com um tempero de realidade.
Esses argumentos não têm, no
entanto, o mais mínimo fundamento científico. Em oposição à visão de uma
natureza humana inflexível, o marxismo nunca defendeu a visão simétrica e
ingênua de uma humanidade generosa e solidária. Nem fundamentou a necessidade
da igualdade social em uma suposta igualdade natural. O que o marxismo afirmou
é que a natureza humana tem dimensão histórica e, portanto, se transforma. O que
o marxismo preservou foi a ideia de que a diversidade de capacidades não
permite explicar a desigualdade social que nos divide. É a exploração de uns
pelos outros a causa da desigualdade, e não o contrário.
O
capitalismo não é meritocrático
A injustiça do mundo que nos
cerca não repousa em critérios meritocráticos. A diferença de talentos e a
variedade de capacidades não têm relação direta com o lugar que cada ser humano
ocupa nas sociedades estratificadas em classes. Não há nenhum mérito em nascer
em uma família burguesa, proletária ou de classe média. Não há nenhum valor em
nascer na Nigéria ou na Noruega, na Grécia ou na Alemanha.
Na sociedade contemporânea, a
condição de classe é determinada pelo direito de herança, na mesma proporção em
que em outras épocas era garantida pelo berço familiar. Pior, na maior parte do
mundo, as oportunidades de ascensão social ou permaneceram estagnadas ou vieram
diminuindo no último quarto de século. A geração mais jovem desconfia que não
irá melhorar suas condições de vida, comparativamente, às de seus pais.
A mobilidade social foi reduzida,
tanto no centro como na periferia do capitalismo. As possibilidades de melhorar
de vida pelo talento ou pelo esforço vieram sendo reduzidas. A inteligência ou
a perseverança, a criatividade ou a audácia são aptidões que podem ser
encontradas em todas as classes. Porém, a ironia é que será encontrada, com
maior frequência, entre os trabalhadores.
Estas qualidades serão
descobertas em maior número entre os filhos do trabalho manual pela mesma razão
que entre eles se encontrarão, também, a maioria dos que têm gripe, a maioria
dos estrábicos ou a maioria dos que têm nariz grande: porque são as maiorias. A
desigualdade do mundo que nos cerca não é nem justa, nem racional. Sua
explicação, para os socialistas, é o capitalismo. Ser socialista é ser um
inimigo irreconciliável do direito ilimitado à propriedade privada.
A causa mais
elevada do tempo que nos coube viver
O interesse pelo tema da natureza
humana ressurgiu nos primeiros anos do século XXI provocado por novas linhas
investigativas da biologia evolucionista e da antropologia cultural. Não foi a
primeira vez que os caminhos da biologia se cruzaram com os da história. A tese
de Darwin de que a espécie humana teria sido desenhada pelo seu passado
revolucionou a biologia a partir de 1859, quando da publicação da Origem das
espécies, e foi uma das maiores realizações científicas de todos os tempos.
Mudou profundamente a percepção que a humanidade tinha sobre si própria.
A descoberta de que a escala da
vida nos remete a um processo de muitas centenas de milhões de anos não
desvalorizou a humanidade; ao contrário, ofereceu-nos um sentido de proporções
da responsabilidade com a nossa sobrevivência. A maioria das formas de vida que
existiram na Terra já foi à extinção, e por mais de uma vez. A revelação de uma
ascendência comum com os símios colocou de pernas para o ar a perspectiva de
uma humanidade predestinada a ser a coroação da vida. A vida é frágil. Não há
um destino à nossa espera. O amanhã nos reserva muitos perigos. Sabemos que a
centelha de consciência que nos define foi o produto de uma aventura grandiosa.
As espantosas sugestões da
biologia evolucionista não diminuíram as perspectivas de futuro da humanidade.
Ajudam a compreender a imponência das realizações humanas na história.
Construímos uma civilização tecnológica e, culturalmente, complexa. Mas,
podemos nos autodestruir. Se não encontrarmos soluções para os impasses do
mundo contemporâneo, com suas terríveis lutas de classes, poderemos perecer. A
causa mais elevada do nosso tempo é a defesa da humanidade. Nada é mais
importante. Para os socialistas, a permanência do capitalismo é a principal
ameaça à vida civilizada.
Contra o
determinismo biológico
O darwinismo deixou-nos um
extraordinário alerta. A vida é delicada e a extinção não é excepcional. A
extinção é o padrão mais regular. Porém, o darwinismo exerceu também uma
influência duradoura – e desastrosa – sobre as ciências sociais. Os
nacionalismos exaltados das potências européias, no final do século XIX,
apropriaram-se abusivamente da idéia de uma competição individual pela
sobrevivência dos mais adaptados, para justificar a conquista de um Estado
sobre outros. Não fosse isso o bastante, defenderam a idéia abjeta do domínio
de uma civilização sobre outras e, no limite mais repulsivo do nazismo, de uma
suposta raça superior sobre outras. Os mais desenvolvidos economicamente seriam
os mais capazes.
A idéia de uma seleção sexual dos
mais aptos – aqueles que superaram os obstáculos e foram capazes de deixar
descendência – foi transportada para a economia para justificar o mercado como
forma mais eficiente, e até natural, de regulação de recursos. A desigualdade
social seria, também, natural. E o que é natural, seria irremediável.
No final do século XX, a biologia
viveu uma nova revolução científica que coincidiu, em muitas das suas
conclusões, com hipóteses sugeridas pela história. Esses avanços científicos
estão ampliando as possibilidades da pesquisa histórica e são muito animadores,
como alertou Hobsbawm (2004): “Para resumir, a revolução do DNA invoca um
método particular, histórico, de estudo da evolução da espécie humana [...] Em
outros termos, a história é a continuação da evolução biológica do homo
sapienspor outros meios.”
O projeto Genoma enterrou as
teorias racistas ao demonstrar, definitivamente, que não existem raças humanas,
e as pequenas variações entre as populações de ascendência americana, européia,
africana ou asiática são muito recentes. Poderia não ter sido assim, se o
intervalo de separação dos grupos humanos tivesse sido mais longo, mas as poucas
dezenas de milhares de anos de isolamento, interrompido há 500 anos, não foram
suficientes para a fixação de diferenças significativas.
As descobertas do DNA permitiram,
por exemplo, por meio da marcação das mitocôndrias (uma molécula herdada em
todos os seres humanos por linhagem materna), um novo método de datações. Já
está sendo rediscutido que o povoamento original das Américas, pouco antes do
fim da última glaciação, teria sido realizado em sucessivas vagas por
populações geneticamente mais variadas do que até então se presumia.
As premissas anti-históricas
criacionistas de uma natureza humana invariável, e ainda por cima cruel,
sinistra e malvada, embora ainda exerçam alguma influência sobre o senso comum,
são inaceitáveis.
A humanidade compartilhou a
capacidade de amar e odiar, confiar e temer, identificar e repudiar, desejar e
rejeitar, admirar e querer, sorrir e desprezar, invejar e imitar, ou seja, todo
um repertório de ações e reações dos homens uns com os
outros – colaboração e conflito –, impulsionadas pela necessidade de
sobrevivência na natureza, que resultaram em experiências históricas, e se
concretizaram em relações sociais. Transformamos valores e costumes, através da
história, da mesma maneira que melhoramos nossas ferramentas, e podemos sonhar
nas mudanças que ainda estão por vir.
A história foi um processo cultural de
readaptação da humanidade. Essa capacidade de autotransformação foi uma das
constantes que oferecem coerência interna à própria história, e permitem que
ela seja compreendida. Por isso, a esperança triunfará.”
4 comentários:
O velho Karl Marx é presença sempre atual no seu blog. Barbudo, homem grave, a julgar pelas fotos, pensou o homem e a sociedade, dando uma luz sobre aspectos cruciais da economia política. A luz marxista que você a domou a colocou no pensamento como guia e razão. Mas você é duplamente marxista: no sentido Karl e no sentido Groucho.
Certamente... E bem lembrado Professor Setaro!
Excelente podermos comprovar a atualidade das ideias de Marx.
Brilhante o Valério Arcary!
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