Jorge Vital de Brito Moreira
Alfred
Hitchcock era um diretor de cinema que se tornou uma referência para a metáfora
do titulo de um dos seus destacados filmes realizado nos EUA: “O Homem que
Sabia Demais” (The Man Who Knew Too Much, 1956).
Ainda que eu
não seja um fã particular do cinema clássico hollywoodiano nem do género de
suspense que Hitchcock desenvolveu, não me é difícil reconhecer sua elaborada
complexidade significativa e seu grande nível de reflexividade artística. Esta reflexividade é, entre outras coisas, uma de suas grandes
contribuições ao questionamento dos fundamentos filosóficos, morais e artísticos
(relação forma/conteúdo) da tradição cinematográfica do cinema clássico
originado no principio do século XX pelo cinema de David W. Griffith.
Desde que o
diretor francês Francois Truffaut publicou o livro de entrevistas com o diretor
britânico-estadunidense (2), é necessário reconhecer que a bibliografia sobre
Hitchcock não tem parado de crescer, destacando a sua importância no cinema.
Hoje a critica cinematográfica atual tem reconhecido que os filmes de Hitchcock
tem contribuído extraordinariamente para o questionamento da nossa cultura no
sentido de transcender intelectual, psicológica e esteticamente, as limitações
da narrativa cinematográfica clássica. Uma narrativa que está baseada nas
categorias metafísicas do bem e do mal: categorias que tem sido dominante
historicamente nos relatos míticos da bíblia, da filosofia, da literatura, da moral
hegemónica e legitimadora da ideologia política e intelectual da cultura
ocidental e judaico-cristã.
Hitchcock e a prisão do espectador pelo
controle do ponto de vista (3)
Nesse texto,
gostaria de comentar, por um lado, alguns dos elementos formais e de conteúdo da
linguagem cinematográfica de dois filmes de Hitchcock: “Janela Indiscreta” (Rear Window,
1954)
e “Um Corpo Que Cai” (Vertigo, 1958). Filmes que, na minha opinião, tem sido cada
vez mais importantes e obrigatórios para melhor entender a relação diretor/receptor
(leitor, espectador, a opinião publica) do discurso artístico, compreendendo
também a função ideológica desta relação na produção audiovisual do cinema (e
na mídia corporativa), na fabricação de discursos culturais que justificam e
legitimam, através da manufatura do consenso publico, a dominação econômica, política
e social pela classe dominante do sistema capitalista sobre o imaginário dos indivíduos
na cultura moderna/pós-moderna das sociedades ocidentais.
Por outro
lado, gostaria também de comentar neste texto a eficácia da reflexividade da
linguagem cinematográfica hitchcockiana para destacar a forma predominante em
que os governos dos EUA tem dominado o imaginário e a mentalidade ideológica da
opinião publica ocidental com a finalidade de justificar e legitimar as
invasões e as guerras do império estadunidense contra os países que são vitimas
da opressão e exploração do capitalismo globalizado.
Para
articular sinteticamente as relações entre o discurso cultural e a sua recepção
por parte da opinião publica atual, analisarei primeiramente a relação entre o
produtor/diretor da cena do crime e o receptor/espectador da cena do crime nos dois filmes de Hitchcock: “Janela
Indiscreta” e “Um Corpo Que Cai”. Assim, escreverei como ponto de partida, o argumento
do filme Janela Indiscreta (Rear
Window):
Depois
de quebrar a perna fotografando um acidente de carro numa pista de corrida, o fotógrafo
Jeff (James Stewart) é forçado a
permanecer em repouso com a perna engessada. Apesar de contar com a companhia
de sua namorada Lisa (Grace Kelly) e de sua enfermeira Stella (Thelma Ritter), Jeff
tenta escapar do tédio diário, olhando, assistindo, espiando (com a ajuda de
binóculos e da câmera fotográfica) da janela do fundo do seu apartamento o que
acontece no fundo das casas da vizinhança. Em algum ponto desta situação, o fotógrafo
Jeff, devido a uma série de circunstâncias estranhas, começa a suspeitar do
comportamento de seu vizinho Lars Thorwald (Raymond Burr), do outro lado da
rua, cuja esposa desapareceu.
Tanto o filme “Janela Indiscreta” como o filme “Um Corpo Que Cai” podem ser entendidos, em pelo menos dois planos: no
primeiro plano, podemos identificar um plano imediato que é o da história onde
existe um enredo, um espaço/tempo, onde existem personagens que convivem, interagem uns com os
outros, que criam conflitos e onde existem ações determinantes. Tradicionalmente,
neste tipo de narrativa, se apresenta uma situação, que logo se complica, para
finalmente aparecer um desenlace.
Mas existe também
um segundo plano, onde aparece um desdobramento mais abstrato, no qual acontece
uma outra história, ou seja, onde se coloca uma
questão diferente. É no desdobramento deste segundo plano onde se coloca
em debate a própria representação da ficção cinematográfica, seu caráter
visual, e a relação do espectador com o cinema. É neste plano que nós vamos
focalizar predominantemente a nossa interpretação, e o nosso comentário dos
filmes “Janela indiscreta” e “Um Corpo Que Cai”.
Assim,
a posição do fotógrafo Jeff no filme “Janela Indiscreta” pode ser vista como
uma metáfora do espectador de cinema ou de teatro (4) aquele que fica por algum
tempo “sentado e retido numa cadeira” para assistir um espetáculo de suspense. Desse
modo, o ponto de vista (5) de Jeff funcionaria como uma metáfora que poderia
também ser extrapolada para a situação (ou posição) de qualquer receptor da
narrativa literária ou áudio visual: para o público consumidor de filmes,
romances ou das notícias produzidas pela
mídia corporativa (jornais, canais de TV, etc.) ocidental.
No
filme “Janela Indiscreta”, a posição do criminoso Lars Thorwald pode ser vista como uma metáfora do diretor de
cinema que realiza um filme e que poderia ser extrapolada para qualquer
produtor ou criador de uma narrativa literária ou audiovisual para um público consumidor.
Neste caso concreto, o diretor de cinema trataria de produzir uma estratégia
visual com o objetivo de esconder o crime cometido, aprisionando o olhar dos
vizinhos dentro de um ponto de vista que o incapacitaria para ver o que
realmente sucedeu; tornando-o então capacitado para justificar e legitimar a “inocência”
do criminoso, logo: a sua não culpabilidade do crime cometido contra a sua
esposa.
Em
resumo, o final do filme “Janela Indiscreta” de Hitchcock, sugere que Lars
Thorwald é um diretor de cinema sem talento, pois não é capaz de aprisionar o espectador,
receptor, ouvinte, dentro do ponto de vista (6) desejado por ele: o ponto de
vista que evitaria que o espectador descobrisse a cena do crime e portanto da sua
responsabilidade pelo assassinato.
No
filme “Um Corpo Que Cai”, o argumento poderia ser descrito da seguinte forma: O
detetive de polícia Scottie Ferguson (James Stewart) da cidade de San Francisco,
EUA, sofre de acrofobia/vertigem. Scottie decide retirar-se de serviço policial
depois que um companheiro de trabalho (um policial) morre ao cair da borda de
um edifício enquanto perseguia um delinquente. Um dia, Scottie recebe um
telefonema de Gavin Elster (Tom Helmore) um ex-colega de estudos, que lhe
oferece um contrato para vigiar secretamente a vida da sua esposa Madeleine
(Kim Novak).
Aparentemente,
Madeleine sofre de melancolia/depressão e parece estar possuída pelo espírito
de sua bisavó, Carlota Valdés, que havia se suicidado cem anos antes da
existência de Madeleine. Gavin Elster teme que Madeleine cometa um suicídio e
pede a Scottie que a siga por diferentes partes da cidade: lojas, cemitérios,
hotéis, museus. Ainda que Scottie trate de impedir uma primeira tentativa de
suicídio, não pode evitar que Madeleine se jogue da torre de uma igreja católica
e morra.
Depois
do julgamento do detetive Scottie (pela suposta responsabilidade do fim trágico
de Madeleine), Scottie é liberado pela justiça. Depois de se despedir de Gavin
Elster (que está deixando os EUA para viver na Europa), Scottie descobre que estava
profundamente apaixonado por Madeleine, caindo em uma fortíssima crise
emocional/psicológica o que lhe obriga a passar tempo numa clinica psiquiátrica
para recuperação da insanidade mental.
Algum
tempo depois, Scottie encontra numa rua a Judy Barton (Kim Novak), uma mulher de
aparência comum, mas que Scottie associa a figura trágica de Madeleine.
Para recuperar
se da melancolia do amor perdido, Scottie busca a amizade de Judy e tenta
transformá-la, através da sua memória obsessiva, na trágica Madeleine, forçando
Judy a se vestir, a pentear-se, a pintar-se, e até mesmo a caminhar como Madeleine.
Uma sucessão de indícios e eventos reveladores levam Scottie a suspeitar de que
tinha sido enganado e que Madeleine e Judy Burton são a mesma pessoa. A
confissão forçada de Judy revela que ele foi efetivamente enganado pela trama
criminosa elaborada por Gavin Elster, pois a figura feminina que morreu era a
mulher legitima de Elster: ela tinha sido assassinada por Elster que a jogou da
torre da igreja católica para herdar a
fortuna material da falecida.
Aqui,
a posição do detetive policial Scottie pode ser vista como uma metáfora do
espectador que trabalha para saber a veracidade do que acontece por detrás das
aparências. O ponto de vista de Scottie também funciona como uma metáfora do
espectador que poderia também ser extrapolado para a situação (ou posição) de
qualquer receptor de uma narrativa literária ou áudio visual; para o publico
consumidor de filmes, romances ou noticias produzidas pela media corporativa
(jornais, canais de TV, etc.) ocidental.
Neste
filme de Hitchcock, a ação do criminoso Gavin Elster pode ser vista como uma
metáfora do diretor de cinema que realiza sequências de cenas e poderia ser
extrapolada a qualquer produtor ou criador de uma narrativa literária ou audiovisual
para um público consumidor ocidental. Neste caso concreto, o diretor de cinema,
Gavin Elster, trataria de produzir uma estratégia visual com o objetivo de esconder o crime cometido, colocando o olhar
do receptor, do espectador, dentro de um ponto de vista que o incapacitaria
para ver o que realmente sucedeu, tornando-o desta forma capaz de justificar e
legitimar a inocência do criminoso e portanto a sua não culpabilidade pelo
crime cometido contra a sua esposa.
Metaforicamente,
o final do filme “Um Corpo Que Cai” de Hitchcock sugere que Gavin Elster é um
excelente diretor de filme: um cineasta de muito talento pois é extremamente
habilidoso para aprisionar o espectador, receptor, ouvinte, dentro do ponto de
vista desejado por ele: o ponto de vista que evitaria que o espectador Scottie
descobrisse a cena do crime e portanto a responsabilidade pelo assassinato da
sua mulher e a consequente punição do assassino
Em
oposição ao que acontece com o criminoso Lars Thorwald no filme “Janela Indiscreta”, no filme “Um
Corpo Que Cai”, o criminoso Gavin Elster, o verdadeiro responsável pelo
assassinato da esposa Madeleine, fica isento da culpa do seu crime,
continuando rico, livre e longe da
punição da justiça.
Hitchcock, as guerras imperialistas dos
EUA e a função do ponto de vista militarista da midia corporativa no
aprisionamento da opinião publica
A
falida guerra do Iraque produzida pela administração Bush contra a população do
Iraque continua sendo questionada por parte da população estadunidense e
mundial: Como foi possível que a população dos EUA e a população mundial ilustrada
tenha sido enganada pelas narrativas mentirosas do governo Bush/Cheney/Rumsfeld
com a ajuda da mídia corporativa ocidental? Como foi possível que a
administração Bush e a mídia estadunidense produzisse um ponto de vista que
aprisionou a opinião pública estadunidense e mundial na crença de que Saddam
Hussein possuía bombas atômicas e nucleares (armas de destruição massiva, Weapons of Mass Destruction) para jogar
contra os EUA? Como foi possível aprisionar a opinião pública dentro do mesmo
ponto de vista do enganado detetive Scottie
que no filme “Um Corpo que Cai”? E como foi possível que o criminoso Bush e sua
administração tenha saído livre do crimes que cometeu no Iraque e no Afeganistão?
O que continua surpreendendo é que a falsificação e o
engano da opinião publica produzida pela narrativa sobre a guerra do Iraque e do
Afeganistão da administração Bush (e a mídia corporativa) não é um
acontecimento isolado na história política e militar dos EUA. Já tinha
acontecido nas guerras do passado e continua acontecendo nas guerras do
presente.
O último filme de Steven Spielberg, intitulado “The Post”,
mostra e reafirma as revelações de Daniel Elsberg (dos Documentos do Pentágono e as mentiras do
governo dos EUA sobre a guerra do Vietnã) de como se produziu a falsificação e
o engano da população estadunidense sobre esta guerra pela presidência de Richard
Nixon. O filme “The Post” também mostra a sistemática falsificação e enganação
do povo estadunidense por parte dos presidentes Harry S. Truman, Dwight D.
Eisenhower, John F. Kennedy, Lyndon B. Johnson, Richard Nixon, associando-se a mesma historia de
falsificação e enganação da opinião pública estadunidense revelada pelo filme
de Oliver Stone sobre Edward Snowden.
Atualmente,
o processo de falsificação e enganação da opinião pública mundial produzida
pelo poder político estadunidense (e pela sua mídia corporativa) se tornou uma
prática manipulativa em várias partes do mundo. Na América Latina, por exemplo,
podemos observar este processo de falsificação e engano dos brasileiros em dois
acontecimentos políticos de importância transcendental para o Brasil: o golpe
de estado do golpista Michel Temer e a prisão do ex-presidente Luis Inácio Lula
da Silva. Neste dois golpes políticos, a mídia corporativa brasileira (e
estadunidense) tem sido utilizada
para justificar/legitimar o golpe de
estado anticonstitucional por parte da quadrilha do usurpador corrupto Temer
contra o governo de Dilma Rousseff (eleita democraticamente pelo povo
brasileiro); e justificar/legitimar a prisão
ilegal do ex-presidente Lula da Silva sem provas jurídicas validas legalmente.
Atualmente, o aprisionamento da opinião
publica mundial dentro do ponto de vista militarista anglo-sionista fabricado
pelo imperialismo americano tem sido altamente funcional para continuar
falsificando, enganando, e manipulando as informações para justificar/legitimar
as agressões políticas e militares contra os países da Venezuela, a Rússia, o
Irã, a China, a Palestina, a Coréia do Norte e mais recentemente a Síria.
As
últimas revelações sobre a falsificação e engano do público mundial por parte
da violação da privacidade dos usuários de Facebook de Mark Zuckerberg e Cambridge
Analítica servem para justificar e legitimar o poder do atual presidente Donald
Trump, ajudando-o na capacidade de jogar acusações (sem provas) contra o
governo da Síria e da Rússia de Vladimir
Putin pelo uso de armas químicas. Com o objetivo de distrair a opinião pública
estadunidense das supostas acusações sobre sua prostituição e corrupção, o presidente Donald Trump decidiu atacar a Síria com mísseis
estadunidenses.
Assim,
concluiremos aqui com as seguintes perguntas: Será possível algum dia, liberar
a opinião pública da prisão do ponto de vista do enganado detetive Scottie no
filme “Um Corpo Que Cai”? Será possível algum dia, responsabilizar e penalizar
as administrações presidenciais dos EUA pelos crimes cometido contra a
humanidade, acabando com a impunidade de assassinos tipo Gavin Elster do mesmo
filme de Hitchcock?
1) O titulo
deste texto está inspirado no titulo do livro Todo Lo Que Ud. Siempre Quiso Saber Sobre Lacan y Nunca Se Atrevio
a Preguntarle a Hitchcock uma compilação de Slavoj Zizek (2002).
2) Francois Truffaut Hitchcock/Truffaut, ou Le Cinéma selon Alfred Hitchcock
3) Na história da literatura ocidental a utilização do ponto de
vista tem sido um dos elementos formais centrais na produção da narrativa
ficcional. No Brasil de final do século XIX, o romance Dom Casmurro do escritor
Machado de Assis tem sido um exemplo magistral do uso do foco narrativo (de um
narrador em primeira pessoa) para colocar toda a visibilidade da história em
beneficio de Bentinho em detrimento de Capitu (O leitor pode aprofundar se na
analise e critica dos elementos formais do romance de Machado de Assis, lendo a
analise do professor Afranio Coutinho
sobre este romance e a do professor Roberto Schwarz para toda a produção
romanesca do escritor.
4) Ismail Xavier no livro O olhar e a cena” de 2003 da Editora Cosac & Naify.
5) Outro exemplo magistral
do uso do ponto de vista (de três pontos
de vistas diferenciados ) se encontra no Brasil da segunda metada do século XX
se encontra no romance Maira de Darcy Ribeiro para relatar a complexidade da
nação brasileira da atualidade.
6) A questão da importância do ponto de vista na literatura européia
tem sido objeto de analises e criticas desde diferentes escolas de teoria
literária (formalismo, fenomenologia,
estructuralismo, pos-estructuralismo, marxismo, etc). Para atenerme ao
enfoque deste trabalho, gostaria de mencionar também a importante analise comparativa
do professor, filosofo e lógico Manuel Sacristán Luzón intitulado “Tres grandes
libro en la Estacada”. En
este significativo estudo comparativo sobre a relação forma/conteúdo das
narrativas de Thomas Mann, Pedro Salinas y George Orwell se puede observar que
o reconhecimento da superioridade do romance de Thomas Mann por parte de
Sacristan se relaciona con a diferença
de pressupostos históricos filosóficos sobre a deshumanização civilizatoria de
principios da segunda metade do século XX) e com a questão formal do ponto de
vista: dos três pontos de vistas existente na narrativa do escritor alemão
Thomas Mann.
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