domingo, 1 de novembro de 2009

Sonho de domingo

Alice no País das Maravilhas. É muito difícil retratar ou interpretar esta história sem uma compreensão razoável do período histórico (Vitoriano) em que ela está inserida. O cinema, particularmente, destruiu bastante este caminho a partir da versão produzida pela Disney em 1951. Uma interpretação “pueril”, não infantil, mas infantilizada e superficial da obra bem mais profunda de Lewis Carroll. Além do mais, totalmente descaracterizada de um clima de época. Existem filmes, como Desventuras em Série (Lemony Snicket's. A Series of Unfortunate Events), de Brad Silberling (2004) que retratam bem mais a atmosfera típica daqueles anos góticos (1) que perduraram por um século inteiro.
Lewis Carroll era o pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson (1832/1899), matemático com cerca de uma dezena de obras cientificas publicadas entre 1860 e 1886 e alguns romances entre os anos de 1871 e 1888, incluindo os dois mais famosos, ambos tendo como personagem central a pré-adolescente Alice.
E justamente a passagem entre a infância e a adolescência é matéria de análise nesta personagem. Suas variações de tamanho, ao crescer ou diminuir, tentam analisar um lado psicológico típico desta conturbada fase da vida. E o sonho, como fuga numa Inglaterra monótona e sonolenta em busca de uma fantasia mais temperada e emocionante dão o toque final.
Entretanto é importante esta abordagem naquela sociedade excessivamente moralista. Quando, no início do livro, Alice está no campo, quase a adormecer ao lado da irmã, e surge um coelho vestido com trajes humanos a consultar um relógio, aflito, começa uma louca corrida em busca do novo e do sonho e a sua ruptura, ao despencar num mundo fantasioso e crítico em relação aos costumes de então.
Carroll questiona a partir daí a dura e típica educação de uma criança no período abordado. Alice passa a ter um comportamento diverso do que estabeleciam o pensamento e as exigências do rigoroso padrão vigente. Mesmo sendo, na realidade um sonho, ao encontrar um mundo às avessas, em que existiam rainhas loucas (e sem autoridade), chapeleiros (que acham que o tempo parou) e gatos risonhos, Alice desbanca a rígida moral da época, ao colocar em cheque instituições a princípio intocáveis. E descobre um mundo mágico em Alice’s Wonderland.
Mas quando falo tudo isto é porque ontem assisti ao trailer de um filme a ser lançado em março do próximo ano, em nova versão do romance de Carroll. E, pelo visual, creio estar muito mais inserida no contexto e ambientação Vitorianos do que filmes como o de Walt Disney – muito embora, e curiosamente, seja produzido pelos Estúdios Disney, hoje uma indústria mais eclética do que à época da versão “infantilóide” anterior.
Claro que será necessário conferir, assistindo o filme de Tim Burton, mas a primeira impressão que ficou, pelo trailer, foi esta. O que pode nos dar a esperança de que fantasias devem ser fiéis ao seu original... Ou será apenas um sonho de domingo?

(1) Apesar dos romances de Daniel Handler (que originaram o filme) serem ambientados em país ou locais fictícios e atemporais, a densidade opressiva captada em Desventuras em Série é um bom exemplo simbólico da moral dominante na Inglaterra ao tempo da Rainha Vitória.

10 comentários:

Ieda Schimidt disse...

O período vitoriano foi sem dúvida sombrio para crianças.
Eram esmagadas e obrigadas a estudar de forma quase que compulsiva.
Alice está inserida nesta realidade. Li em determinada ocasião uma tese sobre este assunto que achei muito interessante e bastante abrangente.
Mas tu resumiste de forma muito boa todo um raciocínio sobre o Século XIX e a Inglaterra de então. Orgulhosa de seus feitos, mas perdida em seus fantasmas angustiantes.

Jonga Olivieri disse...

E sem dúvida a observação de Carroll quanto à educação rígida e sectária foi acentuada na personagem de Alice.
Gostei dos "fantasmas angustiantes" que me lembram Diickens.
Aliás, Contos de Natal e os fantasmas de Scrooge também está sendo filmado...
E é outra imagem simbólica da Era Vitoriana.

André Setaro disse...

Nunca vi, no cinema, uma versão que se aproximasse do clássico livro de Lewis Carroll, mas Tim Burton, cineasta de imaginação, é bem capaz de conseguir a façanha, a considerar seus filmes anteriores. "Alicie no país das maravilhas" é uma obra singular e que não pode ser 'pasteurizada' pela indústria cultural hollywoodiana, como tem acontecido.

Seu sonho de domingo poderá vir a se concretizar.

Jonga Olivieri disse...

Vamos apostar nisto. Espero -- e pelo que vi no trailer -- parece que pelo menos a caracterização e o ambiente mais obscuro da época vai ser respseitado.
Fatores que o desenho de Disney(1951) matou completamente.

Anônimo disse...

Discordo por considerar a versão de Walt Disney um primor, um dos melhores desenhos animados de todos os tempos.
Agnaldo

Jonga Olivieri disse...

Até concordo no sentido que você enfocou. Mas a conversa é outra e voce não pegou o espírito da coisa.
A questão não é se o desenho, a animação, a técnica é boa ou ruim, um primor ou um fiasco.
Estou me referindo à ambientação da Era Vitoriana e tudo o que vem por trás disto, como os cenários e os personagens.
Principalmente o clima... A ambientação, meu caro.
E, neste particular, a realização de Disney assassinou o objetivo de Carroll.

maria disse...

Sou de uma geração que já foi criada lendo Alice com ilustrações do desenho de Walt Disney.
É até difícil ter uma releitura disso. Mas vou tentar.

Jonga Olivieri disse...

É Mary, muitos cresceram sob esta influência. Isto é terrível porque a força do marketing de um personagem que custou milhões de dólares tem que ter um retorno.
A imagem de Alice ficou sendo a de Disney e não a do verdadeiro autor, já morto e sepultado no século XIX.
Mas ainda há tempo de mostrar a verdaeira cor da obra. E a crítica nela inserida às "rainhas loucas" da vida...

Stela Borges de Almeida disse...

Tema instigante para uma tese. Talvez, quase provável, que os estudiosos no campo da literatura tenham pistas a oferecer sobre o período vitoriano e a própria construção desta personagem maravilhosa que é a Alice, no seu país. De minha parte ando voltada para pensar os filmes sobre os movimentos sociais. Se tiver dicas, não demore, envie-me.

Jonga Olivieri disse...

Sem dúvida. A Era Vitoriana é um maná para os especialistas em literatura; pois ela (a literatura) era um dos sustentáculos da época e da própria rígida cultura e edudação do período.
Mas houve alguma contribuição de críticos como Dickens, Carrol e Wilde por exemplo.
Existem uam farta literatura sobre os movimentos sociais no cinema. Mas talvez as melhores indicações possam partir de um vizinho seu, o professor Setaro. Mas na interne você pode encontrar bastante referências.