sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Por um marxismo crítico – parte 2

Michael Löwy


É um prazer publicar este ensaio de Michael Löwy¹, um dos pensadores marxistas mais atualizados, e que encontrei no excelente site marxismo21. Porem, dada a extensão deste texto, vou dividi-lo em três partes para que a sua leitura e assimilação flua da melhor maneira possível.


Por outro lado, é verdade que há às vezes em Marx (e ainda mais nos marxistas posteriores) uma tendência a fazer do “desenvolvimento das forças produtivas” o principal vetor do progresso e uma postura pouco crítica frente à civilização industrial, principalmente em sua relação destruidora do ambiente. O texto “canônico” deste ponto de vista é o célebre prefácio à Contribuição à crítica da economia política (1859), um dos escritos de Marx mais marcados por um certo evolucionismo, pela filosofia do progresso, pelo cientificismo (o modelo das ciências da natureza) e por uma visão sem nenhuma problematização das forças produtivas.
 

Encontramos aqui e ali, em O Capital, referências ao esgotamento da natureza pelo capital, como nesta passagem bem conhecida: “Cada progresso da agricultura capitalista é um progresso não somente da arte de explorar o trabalhador, mas ainda na arte de espoliar o solo; cada progresso na arte de aumentar sua fertilidade por um tempo, um progresso na ruína de suas fontes duráveis de fertilidade. Mais um país, os Estados Unidos da América do Norte, por exemplo, se desenvolve com base na grande indústria, mais este processo de destruição se realiza rapidamente. A produção capitalista apenas desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social esgotando ao mesmo tempo as duas fontes de onde brota toda riqueza: a terra e o trabalhador” (Marx, 1969: 363).


Pode-se encontrar outros exemplos. Mas permanece o fato de que falta a Marx uma perspectiva ecológica de conjunto. Sua concepção otimista e “prometéica” do desenvolvimento ilimitado das forças produtivas, uma vez eliminado o obstáculo representado pelas relações de produção capitalistas que o restringem, não é mais defensável hoje em dia. Não somente do ponto de vista estritamente econômico — integração dos custos ecológicos no cálculo do valor, risco de esgotamento das matérias primas — mas sobretudo considerando a ameaça de destruição do equilíbrio ecológico do planeta pela lógica produtivista do capital (ou de sua pálida imitadora, a burocracia “socialista”). O crescimento exponencial da poluição do ar, do solo e da água, a acumulação de dejetos nucleares incontroláveis, a ameaça constante de novas Chernobyl, a destruição em um ritmo vertiginoso das florestas, o efeito estufa e o perigo de ruptura da camada de ozônio (que tornaria impossível toda a vida sobre o planeta) configuram um cenário- catástrofe que questiona a própria sobrevivência da humanidade.


A questão ecológica é, do meu ponto de vista, o grande desafio para uma renovação do pensamento marxista no limiar do século XXI. Ela exige dos marxistas uma profunda revisão crítica de sua concepção tradicional de “forças produtivas” e uma ruptura radical com a ideologia do progresso e com o paradigma tecnológico e econômico da civilização industrial moderna.


Walter Benjamin foi um dos primeiros marxistas do século XX a colocar este tipo de questão: em 1928, em seu livro Sens unique ele denunciava a idéia de dominação da natureza como “um ensinamento capitalista” e propunha uma nova concepção da técnica como “mestre da relação entre a natureza e a humanidade”.


Alguns anos depois, nas Teses sobre o conceito de história ele se propunha enriquecer o materialismo histórico com as idéias de Fourier, este visionário utópico que tinha sonhado “com um trabalho que, muito longe de explorar a natureza, estava em condições de fazer nascer dela as criações que dormiam em seu seio” (Benjamin, 1978: 243).


Ainda hoje o marxismo está longe de ter superado seu atraso neste terreno. Uma das pistas para uma nova abordagem é sugerida por um texto recente de um marxista italiano que — partindo de uma passagem de  A ideologia alemã onde Marx evoca as forças produtivas que se tornam, sob o regime da propriedade privada, forças destrutivas — propõe: “A fórmula segundo a qual se produz uma transformação das forças potencialmente produtivas em forças efetivamente destrutivas, sobretudo em relação ao ambiente, parece- nos mais apropriada e mais significativa que o esquema bem conhecido da contradição entre forças produtivas (dinâmicas) e relações de produção (que as aprisionam). Além disso, esta fórmula permite dar um fundamento crítico e não apologético ao desenvolvimento econômico, tecnológico, científico e portanto de elaborar um conceito de progresso diferenciado (E. Bloch)” (Bagarolo, 1992: 25).


Entretanto, os ecologistas se enganam se pensam poder dispensar a crítica marxista do capitalismo: uma ecologia que não leve em conta as relações entre “produtivismo” e lógica do lucro está condenada ao fracasso — ou pior, à sua recuperação pelo sistema.


Como compreenderam perfeitamente os ecossocialistas — o primeiro Gorz, James O’Connor, Juan Martinez Alier, Jean-Paul Déléage, Frieder Otto Wolff — a racionalidade estreita do mercado capitalista, com seu cálculo imediatista de perdas e ganhos, é intrinsecamente contraditória com uma racionalidade ecológica que leve em conta a temporalidade longa dos ciclos naturais e a necessidade social de proteger o ambiente. Contra o fetichismo da mercadoria e a autonomização reificada da economia, o caminho do futuro é a edificação de uma economia política não-mercantil, baseada em critérios não monetários e extra-econômicos: em outros termos, a “reimbricação” (para retomar a expressão de Karl Polanyi) da economia no ecológico, no social e no político.

1. Michael Löwy (São Paulo, 06 de maio de 1938) é um pensador marxista brasileiro radicado na França, onde trabalha como diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique. É um relevante estudioso do marxismo, com pesquisas sobre as obras de Marx, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Lukács e Walter Benjamin.
De Löwy li (e já reli mais de uma vez) Marxismo, Modernidade e Utopia, Editora Xamã, publicado em 2000 (excelente livro escrito em colaboração com Daniel Bensaid). Mas o autor possui dezenas de obras publicadas.

3 comentários:

Joelma disse...

Outro maravilhoso trecho deste ensaio de Löwe....

Misael disse...

O mais interessante no texto de Löwe é visão realística entre o tempo em que Marx viveu e a atualidade.
Não seria possível, nem concebível que 150 anos depois, tudo o que ele (Marx) escreveu estivesse do mesmo jeito.
Mas há uma tendência (fruto do cristianismo), de que as palavras de Marx, seriam eternas e imutáveis, como se fosse um ser divino.
Quando Löwe se refere à ecologia, naqueles tempos nem se pensava nisso. Aliás, esta questão veio do pós bomba atômica pra cá. E mesmo assim, dos anos 80/90 em diante. Antes disso ninguém falava no problema, a não ser uma minoria de pessoas que vislumbravam o problema.
Neste ensaio, o autor mostra que Marx acertou, como ninguém, na questão do que é o capitalismo, do que é a exploração. Isto não mudou. Isto continuará enquanto perdurar o sistema. O resto, tudo muda e têm que haver novos marxistas para prosseguir pensando.

Anônimo disse...

Inegavelmente, um senhor pensador marxista!
L.P.