quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Princesa do Agreste


Amanhecia em Brasília. José não poderia jamais esquecer aquelas nuvens exóticas, aquela gama de cores maravilhosas.
 
Estava um tanto quanto frio. Batia aquele vento gelado na face. Por outro lado José, arrastava com sacrifício uma mala pesada, atravessando aquela enorme distância gramada rumo ao ponto de ônibus mais próximo. Se é que poderia haver alguma coisa próxima naquela imensidão.

Apesar de toda dificuldade chegou finalmente ao que seria a primeira etapa de sua empreitada. Já não consegue se lembrar quanto tempo esperou pelo maldito veiculo. O fato é que ele chegou, e sua próxima parada seria logo alcançada.
 
Lá estava ele, na rodoviária de Brasília, a postos para o embarque de sua viagem rumo à Bahia. E lá estava também, a sua espera o veículo que o levaria àquele destino. "Viação Princesa do Agreste". O nome da empresa era bem sugestivo. Na verdade o ônibus ia para Recife, mas na passagem José desembarcaria em Feira de Santana, onde seu tio e padrinho estaria à espera. Tinha sido tudo previamente combinado por seu pai. Afinal de contas, um foragido político naqueles idos de 1966 era um problema muito sério. Entre familiares seu codinome era "Maria de Lourdes", para evitar qualquer vazamento ou grampo no telefone, qualquer censura nas cartas. Era tudo na base de "Maria de Lourdes" vai bem... "Maria de Lourdes" já está indo... "Maria de Lourdes" embarcou ontem... e por aí afora.
 
Bom. "Maria de Lourdes" estava ali, pronto para viajar. Começou a olhar em redor e foi descobrindo os detalhes. Primeiro, o ônibus não era dos mais novos. Também não estava caindo aos pedaços, vai. Mas a verdade é que não era lá muito novinho. Depois tinha uma particularidade muito estranha para uma viagem de mais de mil quilômetros: a poltrona não reclinava. Mas, tudo bem, era acolchoada, pelo menos. A única vantagem mesmo é que estava muito vazio. Quase metade dele estava desocupado quando finalmente zarpou do terminal rodoviário de Brasília.

Mas foi aí que começou o drama. Ele parou em várias cidades-satélite. E a cada parada dessas, entrava mais gente. A impressão que dava era que ia subir a população inteira do planalto naquela joça. O negócio é que começou a ficar apertado, muito apertado mesmo. Tinha trouxa de roupa colocada não se sabe como nos bagageiros, tinha bebê, velhinha. Só não tinha mesmo galinha, papagaio e jacaré. Aliás só faltava mesmo isso pra completar a fauna. Lá pelas tantas, uma mulher grávida que havia entrado logo numa das primeiras paradas começou a se queixar do lugar em que estava. Ela se instalara bem na frente do ônibus, em um banco individual que ficava ao lado do motorista, e ainda por cima tinha o capô interno do motor no meio. José, que estava na segunda fila atrás do motorista, se propôs a trocar com ela.
 
A primeira fase da viagem correu bem. Estrada asfaltada, o ônibus seguiu até Três Marias em direção a Belo Horizonte. O incomodava bastante a idéia de como ia dormir naquele desconforto, no banco que não reclinava, naquele aperto todo. Quando chegaram em Três Marias veio a resposta para a sua aflição. O motorista anunciou que ali iriam fazer uma parada não somente para jantar, como também para pernoitar. Desceram do ônibus. Era um ladeirão danado, alto, uma verdadeira pirambeira. Ali jantaram uma comidinha mineira gostosa que só ela. Coisa de pensão do interior.  

Dia seguinte, nem o sol tinha aparecido ainda e aquele reboliço na pensão. Era desse tipo de construção que quando se peida num quarto, nos outros se escuta tudo. E aí, fila pra escovar os dentes, café da manhã, pagar o pernoite, o que deixou José preocupado de novo, porque não tinha muito dinheiro e não contava com uma viagem assim. Estava acostumado com outro tipo de viagem em que os ônibus não paravam para pernoite. Mas, apesar dos seus medos, da situação política do país, de tudo, José sempre achava que no final as coisas dariam certo. Detalhe é que nessa confusão toda teve que comprar escova de dentes, creme dental, etc, porque as suas coisas estavam todas na mala. A roupa. Bem, a roupa era a roupa do corpo mesmo. Dormiu do jeito que estava e assim acordou, meio amassado, mas pronto para a próxima.
  
Foi um dos primeiros a entrar no ônibus. Tudo ainda no lusco-fusco. Todo mundo com cara de sono. Aos poucos foram chegando mais pessoas. Só o motorista não chegava. Foi então que de repente o ônibus começou a andar. Um ligeiro deslocamento, bem lento. Um primeiro gritinho de mulher lá atrás. Um princípio de pânico? Talvez. A ladeira abaixo, ladeirão mesmo. José ficou atônito, estatelado. Estava ainda meio dormindo, parecia mais um sonho, melhor dizendo, um pesadelo. Não tinha a menor idéia do que fazer. Não sabia dirigir. Olhou para o banco do motorista. Vazio. Olhou para a frente. A pirambeira. Será que dá tempo de sair do carro, de evitar o pior? Pensou. Subitamente surgiu um garoto, meio magro, uns quatorze anos mais ou menos. Ele deu um pulo, coisa meio de super-herói, coisa meio de cinema, se jogou ágilmente no banco do motorista e freiou. O veículo pára. Foi ovacionado. Olha, isso tudo aconteceu em uma fração de segundos. Na verdade foi muito rápido. O pânico nem chegou a se generalizar. Salvos por causa daquele menino, que José nunca soube quem era. Um herói anônimo na sua vida e na vida de todas aquelas pessoas que ali estavam.
 
Após a chegada do motorista, tudo finalmente voltava ao normal. Refeito o susto, pé na estrada.
 
Em papo com os companheiros de viagem, José já sabia que o roteiro ia por Corinto, Curvelo, Montes Claros, e aí, sertão adentro iríam alcançar a Rio-Bahia num local chamado Divisa, isso depois de cortar o norte de Minas inteiro. Ficou entusiasmado com a viagem. Fascinado com a possibilidade de conhecer todos aqueles lugares.
 
Poucos quilômetros depois que deixaram Três Marias, fim do asfalto. Era uma estrada larga, uma rodovia federal, mas de cascalho, a trepidação era também um pouco maior. Mais poeira. Mas José até já gostava de estar naquele lugar ali, ao lado do motor. Pelo menos podia ver a estrada, o visual todo sem torcer o pescoço para o lado. O ônibus, todo fechado para evitar a entrada do pó ficava um pouco abafado, o motor ao lado esquentava, principalmente os pés. Tudo bem. Ele tinha nascido de novo depois daquele episódio da ladeira, e estava feliz da vida.
 
Algumas horas depois passa um carro ao lado - um Aero Willys, ainda se lembra -, e levanta uma pedra de cascalho em direção ao pára-brisas dianteiro do lado do motorista. Cataplan! Aquele esporro e mais um susto. O segundo do dia. Todos descem. Com um pedaço de pau foram removidos os estilhaços do vidro. O motorista explicou que teria que chegar a Montes Claros daquele jeito, e, lá procurar o pára-brisas para ser substituído. Todo mundo apeou. E seguiram em frente.

Sorte é que não saiu ninguém ferido. Crianças de colo, senhoras mais velhas, enfim, todos sãos e salvos. Apesar de não ser asfaltada, a estrada era boa, principalmente em tempo seco. Daí, a velocidade também era razoável. Dava pra passar um carro de cada lado. Isso quer dizer que os carros que vinham em sentido contrário levantavam aquela nuvem de poeira. E aí alguém gritava: "Lá vem pó!". E era um tal de se abaixar, tossir. Isso durante mais de duas horas. Um verdadeiro deus-nos-acuda.

Finalmente chegaram a Montes Claros. Era a primeira vez que ele estava por aquelas bandas. Cidade progressista, sô! Prédios modernos, um centro da cidade movimentado, estação rodoviária. Só vendo. Enquanto toda a trupe parou para almoçar num bar próximo à rodoviária o motorista saiu pra conseguir o tal pára-brisas novo. Ficaram ali por um longo tempo, até que ele voltou. Uma cara meio triste, um ar desolado. Não havia conseguido encontrar a peça. “É, modelo mais antigo, sabe né, essas coisas...”, justificava-se. Mas ele tinha ouvido falar que uma oficina que havia nos arredores tinha a tal peça. Lá foram eles. Todo mundo de novo no ônibus e o Severino (José já não se lembra, mas acha que este era o seu nome, ou, pelo menos tinha cara de) se dirigiu para a tal oficina. Depois de muita volta, muita parada pra perguntar para que lado ir, chegaram lá. Nada! Daí, o motorista resolveu meter pé na estrada assim mesmo.
 
Nessa altura, a tarde já ia avançando. Naquela de procurar pela peça ficaram mais de três horas em Montes Claros. Tinham que correr um pouco pra chegar a tempo na próxima parada. Daí em diante a estrada começava a mudar. O que antes era uma estrada larga, foi virando um caminho mais estreito. O cascalho deu lugar ao chão batido. Aos poucos começava a se notar um trilho de mato no meio e os sulcos de terra marcando a posição das rodas. Aquela velha picada mesmo, com pontes de madeira e os cambáu.
  
Começou a cair a noite. Bom. Aí mesmo é que o Severino virou uma peça. Como começou a esfriar, o motorista enrolou a cabeça num suéter azul marinho, colocou meias nas mãos, já que não tinha luvas, e, como estava de óculos escuros continuou com o mesmo, apesar da escuridão. José não sabia se ria ou se chorava quando olhava pra ele e via aqueles óculos escuros e o farol aceso na frente iluminando a trilha estreita. "De repente surge uma vaca...", pensava ele. O fato é que chegaram lá. Sem mais acidentes de percalço. Era uma casinha de beira de estrada, simples. Quando desceu do ônibus, José batia na roupa e levantava poeira. A primeira coisa que fêz foi tomar um banho. Claro que depois de enfrentar uma longa fila. Jantou um delicioso frango à caipira. Coisa da roça. Aí bateu na cama. Estava exausto.
  
No dia seguinte, novamente acordaram com as galinhas.
 
Começaram a atravessar uma das regiões mais bonitas que José já havia visto em toda a sua vida. Chapadões enormes. Ele se lembrava do que havia lido de Guimarães Rosa, de Mário Palmério. O ônibus serpenteava por encostas perigosíssimas. Às vezes até se viam cruzes fincadas no solo das ribanceiras à margem da estrada, provavelmente consequência de acidentes ali registrados. Depois chegava no alto e retas enormes em planaltos a se perder de vista. Uma paisagem inesquecível, pois dali mesmo, do alto daquelas estepes podiam-se ver vez por outra as encostas das outras, abruptas em direção ao solo. Isso tudo envolto em exuberante verde tropical.
 
Finalmente chegaram a Divisa, na Bahia. Pegavam enfim novamente o asfalto, a “civilização”.
   
Dai em diante, foram muitas as paradas. A viagem atrasou demais, porque cada vez que se encontrava a polícia rodoviária, o motorista era obrigado a estacionar no acostamento e conversar com os tiras. Iam para um canto. José achava que ele “molhava” a mão deles. Ele só sabe que um tempinho depois, estavam de novo na estrada.   
  
Chegaram finalmente a Feira de Santana com um atraso de mais de seis horas em relação ao que havia sido marcado. Claro que seu tio não mais estava lá. Era também a primeira vez que José chegava nesta cidade, apesar de ser baiano da capital. Na época, Feira ainda não tinha uma estação rodoviária. Tinha, sim uma rua que funcionava com esse propósito. Alí ficavam todas as companhias e seus guichês de venda. Procurou uma companhia que fizesse a ligação com Salvador. Não foi difícil. Estava preocupado com o pouco dinheiro que tinha, mas deu para comprar a passagem e ainda sobrou algum. Viajou quase que em seguida, mas se lembra que ainda deu pra dar uma rodada pelo centro, nas imediações daquele local, antes do embarque.
  
Quando chegou em Salvador não tinha muita esperança de ter alguém lhe esperando. E não tinha mesmo. Àquela altura, seu padrinho e todos os parentes mais ligados estavam em polvorosa procurando por "Maria de Lourdes" em outros cantos. Ele não sabia, mas enquanto se deslocava pelo sertão, o governo fizera nas proximidades de Belo Horizonte uma verdadeira devassa em todos os ônibus que daquela cidade se aproximavam devido à realização de um Congresso da UNE. Eles, como José não sabiam do verdadeiro itinerário do seu ônibus, e isso os deixou em pânico pois achavam que ele poderia ter passado por lá. Na fantasia deles, José já estava preso, talvez até “desaparecido”. Pelo simples fato de o ônibus não ter chegado no horário em Feira de Santana. Seu padrinho, acompanhado de um primo ficara esperando o seu ônibus aproximar-se na estrada, e isto não havia resultado em nada. Não tinham a menor idéia do seu paradeiro.
  
Pegou um táxi e se dirigiu à casa de um outro tio, por sinal um tio-avô. Sabia que o combinado era ficar casa dele. Todos achavam que a do seu padrinho poderia ser muito visada. José tinha o endereço e foi para lá. Curiosamente, o táxi cobrou exatamente os últimos mil cruzeiros que ele ainda tinha no bolso. Pagou, e não restou um puto.

E José, finalmente, sentia de novo, depois de um longo e tenebroso inverno o aconchego de um lar.

Esta é  uma peça para impressão que mede 30x11cm. Copie e cole
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2 comentários:

Joelma disse...

Esta crônica foi publicada pela última vez aqui em "Novas Pensatas" no dia 19 de janeiro de 2012, e eu comentei às 10 horas e 15 minutos o comentário que transcrevo a seguir:
"Eu que sou assídua a este blog já faz algum tempo, nunca havia notado que havias postado esta muitíssimo interessante crônica do dia-a-dia.
Cheguei à conclusão que por isso mesmo é bom reeditar algumas matérias (que o blogueiro ache interessante) de vez em quando.
Taí, né, vivendo e aprendendo!"
Hoje, tenho a acrescentar que é uma crônica (ou seria um ensaio?) muito bem escrita e que reflete uma época da história do Brasil em que muita gente, como José e Maria de Lourdes sofreram as agruras impstas pelos militares no poder.
Por outro lado, tambem ressalta as esperanças, os sonhos e as experiências de jovens que depararam-se com a realidade de um mundo cruel que os forçaram a um amadurecimento precoce para assegurar sua própria existência.
A minha nota, como professora que sou é 10, ou quem sabe, 11 ou 12, se tais notas existissem!!!
E, claro, os meus mais sinceros parabéns!

Ieda Shimidt disse...

Parabéns tchê esta foi uma bela crônica! Pode repetir a dose.