sexta-feira, 10 de março de 2017

Olhando para a esquerda latinoamericana

A pintura do argentino Antonio Berni retrata o povo no famoso quadro “Manifestação”


José Luis Fiori (Marxismo 21)

“De nada serve partir das coisas boas de sempre, mas sim das coisas novas e ruins”
Bertold Brecht

Neste início do Século XXI, está acontecendo algo inédito na América Latina, um continente que se move de forma sempre sincrônica, apesar de sua enorme heterogeneidade interna. Basta olhar para trás para perceber as notáveis convergências de sua história, durante suas “guerras de formação”, na primeira metade do século XIX; na hora de sua integração “primário-exportadora” à economia industrial européia, depois de 1870; ou mesmo, no momento de sua reação defensiva e “desenvolvimentista”, frente à crise mundial, da década de 1930. Uma “convergência” que aumentou ainda mais, depois da II Guerra Mundial, com a ajuda da política externa dos Estados Unidos de combate sistemático a todos os partidos e governos que fossem ou tivessem qualquer tipo de inclinação de esquerda.

Logo depois do início da Guerra Fria, ainda nos anos 1940, quase todos os países do continente colocaram na ilegalidade, simultaneamente, os seus Partidos Comunistas. Apesar de que só em alguns casos a perseguição aos comunistas tenha chegado ao extremo do Chile, que os prendeu e confinou em campos de concentração, nas regiões mais frias e desérticas do país. Na década de 1950, esta mesma “convergência latinoamericana” reapareceu na derrubada simultânea de vários governos eleitos democraticamente, como no caso da Guatemala, do Brasil, da Argentina e da Colômbia. Apesar de que só no caso da Guatemala houve uma intervenção norteamericana direta e a repressão e o assassinato de mais de 200 mil pessoas. Muito mais do que na Colômbia do ditador Perez Jimenez, na Nicarágua e Cuba dos ditadores Anastázio Somoza e Fulgêncio Batista, apoiados igualmente pelos Estados Unidos.

Logo em seguida, nas décadas de 1960 e 1970, esta velha sintonia continental aumentou ainda mais depois da frustrada invasão de Cuba, em 1961, seguida de uma série de golpes militares que instalaram regimes ditatoriais em quase toda a América Latina.  Apesar de que nem todas as ditaduras tenham tido o mesmo nível de violência do Chile, onde se estima que tenham morrido mais de 20 mil pessoas, e da Argentina, onde foram assassinados ou desapareceram cerca de 35 mil pessoas. Na década de 1980, a redemocratização simultânea do continente ocorreu no mesmo momento em que a violência da “2ª. Guerra Fria” (1982-1985) do presidente Ronald Reagan atingiu a América Central e o Caribe, como se fosse um tufão. Mesmo quando ela não tenha atingido a todos com a mesma intensidade que El Salvador, onde foram mortos ou assassinadas, em poucos anos, mais de 75.000 salvadorenhos.

Com o fim da Guerra Fria, na década de 1990, a “indução” estadunidensa e a convergência dos “latinos” se deslocaram para o campo das políticas econômicas. Como parte da renegociação de suas dívidas externas, quase todos os governos da região adotaram um programa comum de políticas e reformas liberais que abriu, desregulou e privatizou suas economias nacionais, “clonificando” os governos neoliberais de Carlos Salinas, no México, Andrés Perez, na Venezuela, Carlos Menem, na Argentina, Fernando Henrique Cardoso, no Brasil e Alberto Fujimori, no Peru, entre outros. Com o passar do tempo, entretanto, o novo modelo econômico instalado pelas políticas liberais não cumpriu sua promessa de crescimento econômico sustentado e diminuição das desigualdades sociais. Na virada do novo milênio, a frustração destas expectativas contribuiu, decisivamente, para a nova inflexão sincrônica do continente que está em pleno curso: uma virada democrática e à esquerda, dos governos de quase todos os países da América do Sul, e talvez, em breve, do México.

A eleição para presidente do líder indígena e socialista Evo Morales, na Bolívia, no final de 2005, e da militante socialista Michele Bachelet, no Chile, no início de 2006, foram apenas dois pontos de uma trajetória vitoriosa que começou, no Brasil, em 2002 e que seguiu na Argentina, Venezuela e Uruguai, podendo chegar ao Peru, Equador. Uma verdadeira revolução político eleitoral, sem precedentes na história latinoamericana e que coloca a esquerda frente ao desafio de governar democraticamente, convivendo – em geral – com a má vontade dos “mercados” e a hostilidade permanente da grande imprensa. Um desafio que foi vivido pela esquerda européia no século XX, mas que só foi experimentado tangencialmente pela esquerda latinoamericana neste século.

Memorial da América Latina - SP

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