domingo, 2 de novembro de 2008

Everything Changes

Mais uma tentativa de um conto. Às vezes eu me arrisco nesta seara... Um dia, quem sabe terei como publicar um livro. Este foi escrito e publicado em setembro de 2007.

Anselmo estava pensativo havia dias. Cuidadosamente, Edgard aproximou-se dele.

- Vamos almoçar, cara?

- Não sei... estou sem fome...

- Tenho notado isto, meu caro. O quê que houve contigo?

Anselmo ajeitou-se na cadeira. Olhou para o computador. Um ar triste, vago, taciturno.

- Sei lá... não sei... quer dizer, até sei... será que sei... não... nã...ão tem jeito!

- O quê não tem jeito? – Perguntou Edgard, curioso.

Anselmo balançou os ombros. Olhou para o amigo, quase que pedindo ajuda...

- Estou apaixonado. Per... di... damente... apaixonado, meu chapa...

- Mas o que tem isso? Sei que você é casado há muito tempo, mas... estar apaixonado é sempre bom. – Olhou matreiro virando os olhos em torno, e prosseguiu com um sorriso malicioso – Eu conheço?

- Na... nã... ão, você não conhece... ou talvez conheça. E não... sei lá. Talvez...

- Mas, quem é afinal? Pooorra, Anselmo. Vamos festejar. Tomar um chope, voltar de porre à tarde. Isto merece um brinde! – Aproximou-se de Anselmo e sussurou com malícia – Carne nova no pedaço... he he, heiiii! Aaah, eu quero saber de tudo... tudinho... quem é a garotaaa??? Me diz pelo menos o nome dela.

- Aaahhh, não adianta... vou dizer e você não vai acreditar... Respondeu Anselmo com um ar de desânimo, um olhar perdido no infinito.

Edgard deu um tapinha nas costas do amigo.

- Vamuuu lá. Vamos sair um pouco deste ar viciado de escritório, cara... vamuuu lááá...

Anselmo, relutante levantou da cadeira, abraçou o amigo, suspirou fundo, jogou o paletó por cima do ombro direito, displicentemente, e começou a andar em direção à porta.

Caminharam por um bom tempo, até chegarem ao Bar Luís. Entraram e cumprimentaram os garçons mais conhecidos. Sentaram e pediram dois chopes escuros.

- Aaah, bem tirado! Iiiisto é que é chope bem tirado! – Exclamou Edgard – Mas, prossiga, meu... qual é? Ou vai ficar guardando segredo o resto da vida. Põe pra fora o que o coração diz, cara... põe pra fora...

Anselmo pigarreou. Balançou a cabeça e disse:

- Aconteceu... Vi a mulher... e me acendeu uma paixão louca, doentia, impossível... inatingível. Mas, aconteceu! Sinal que talvez ainda exista um adolescente dentro de mim, porra!

- Mas por quê tão impossíííível... tão... inatingíííível... assim? Colé, cara? Nada é impossível.

- O pior é que é! Deixa isso pra lá... foda-se...

- Ih, não é bem assim, meu... você tem que acreditar em você mesmo. Se valoriza, cara... se valoriza...

Anselmo pigarreou de novo.

- Você está fumando pra cacete, num é? Cuidado, bicho. Só na caminhada que a gente deu até aqui você deve ter fumado uns três... talvez quatro cigarros... com certeza... Cuidado, hein?!

- É melhor mudar de assunto... – Virando-se para o garçom, exclamou – Êêêiiii, amigoooo, traz o cardápio... quê qui tem hoje? Se não tiver nada de especial me traz o de sempre... Salsicha branca com chucrutes... ou kassler??? Éééé’...Kassler... e mais um chope... escuro... tá? Tinindo. Edgard aproveitou pediu para trazer o de sempre também.

Ele já começava a esboçar um ar de impaciência. Ajeitou-se na cadeira. Olhou para um traseiro que adentrava o recinto rebolando. Coçou o nariz com a pontinha do dedo. Virou-se para Anselmo e falou:

- Tá bom, cara... não vou... não vou mesmo ficar insistindo com você sobre esta mulher. Xá pra lá! Eu fico aqui preocupado, mas... veja bem... só estou querendo lhe dar uma força. Seu puto! Sorriu, sem graça.

Anselmo riu. Riu pela primeira vez naquele dia. Talvez em muitos dias.

- Lembra da Gleyde?

- Aquela menina que foi substituir uma secretária de férias? Sei... hummm, então é ela? Onde ela está agora?

Anselmo soltou um muxoxo, enquanto balançava a cabeça sorrindo com sarcasmo.

- Que nada, cara... aquilo já passou... já era... aconteceu, foi um fracasso... meu. Fracasso meu. Cantei, mas não deu. Ela provocava minha libido. Quando chegava perto de mim eu ficava... ficava de pau duro! – Apoiou a cabeça no braço, também apoiado na mesa, mexeu nos cabelos, despenteando-os –... mas passou. É coisa do passado, esqueci. A gente esquece... às vezes; às vezes se esquece... consegue... também eu entrei de sola. Ela sabia que eu era casado... sei lá. Porra acontece nas melhores famílias... de Londres!

Soltou uma gargalhada.

- Ela era bonita, charmosa... alta, uma mulher interessante. Retrucou Edgard.

Houve um silêncio de alguns segundos, que mais pareciam uma eternidade. Os chopinhos espumantes chegaram. Anselmo sorveu um gole. Sentia-se o prazer de beber aquele gole, naquele instante.

- Você está com medo de outro... um outro fracasso, Anselmo?

- Não há a menor chance disto acontecer... não há! Respondeu Anselmo olhando sério o companheiro.

- Então, vai fundo... vai fundo amigo. Está com medo de separar da Noêmia... é isso, está com medo de abalar seu casamento de quase trinta anos. Leva numa boa... mulheres não entendem. Quer dizer, às vezes até entendem, Agnés Varda filmou “Lê bonheur”... lembra? “As duas faces da felicidade”? Filmaço... puta filme... e ela era uma mulher!

Fez uma breve pausa e prosseguiu:

- ... às vezes elas fingem que não sabem, mas vão levando... mulher é assim... afinal, levam pica... há-há[há...gozam sofrendo!!! A dor faz parte da vida delas... biiiichooo... não vês? Além do mais... fazendo bem feito... com todo cuidado... A Noêmia nem vai saber. Podes crer!

Mais alguns instantes de silêncio. Profundo. Goles de lá, goles de cá. Edgard faz um sinal para o garçom. Mostra dois dedos, os balança pedindo outra rodada.

- Um amigo meu.. me mandou um e-mail. Era um link. Eu fui e gostei... balbuciou Anselmo.

- Já senti... namoro pela Internet. Ih! Isso tá dando até casamento. Mas... cuidado hem?! Às vezes mandam fotos falsas. Você vai ver a dona... e num é nada daquilo... A loura vira um a negona gorda!!! Há-háá- hááá... tem muita enganação nestas coisas de Internet... Tenho uma amiga que...

Anselmo interrompe abruptamente, batendo a palma da mão na mesa.

- Não é nada do que você está pensando, cara... não é nada disso. Não é... puuuta meeerda!

- Então o que é? Não estou entendendo mais nada. Nadinha. Tô mais por fora do que umbigo de vedete!

- Ih... essa foi velha pra caraaaalho. Manda outra! Acho que nem tem mais vedete. He-he-he! Essa foi boa... boooa Edgard!!!

- Tá bem. Tá bem... tô ficando velho... é o tempo... o tempo passa...

- Era o link de uma cantora americana, linda... cantava uma música...muito hormônio feminino... você sentia. Aquela boca, tesão, tesão, puro tesão... Mulher... com “ eme” maiúsculo. Daí fui entrando em outra músicas dela. Sabe cuméquié... YouTube... você vai navegando... vai descobrindo... vai crescendo. E foi crescendo a porra da atração... – fez uma pausa –... uma atração que foi virando paixão... Ta rindo?... rindo de quê?... Ela me enfeitiçou. Eu... eu a amo com toda a força do meu ser...

Edgard interrompeu Anselmo, colocou sua mão em cima da dele num gesto de solidariedade. Estava rindo.

- Você me lembrou daquele filme o filme “O fã”... lembra... com a Lauren Bacall? Um filme em que um sujeito começa a escrever para uma atriz... famosa... e sua obsessão vai aumentando... aumentando...

-Tá me chamando de tarado? Pior... de serial-kiiiller? Pooorra, onde nós estamos...

Neste momento o garçom chegou com os pratos. Pediu licença, meio que desajeitado. Eles esperaram acabar o procedimento. Terminado, Anselmo prosseguiu:

- É sério... amigo... é sério. Não é uma coisinha à toa. É paixão! Das brabas...

- Mas... o quê qui você fez, cara, você fez alguma coisa? Escreveu uma carta pra ela? Bateu uma punheta pelo menos?

-Não briiiinca... é sério. Você já viu ela cantando “Everything changes”. Mudou mesmo... mudou tudo pra mim... a partir daquele instante... mudou!

O papo rolou o resto da tarde. Saíram tropeçando. Nem voltaram para o trabalho. Edgard ligou e deu uma senhora desculpa, dizendo que havia passado mal e fôra parar no pronto-socorro. E o Anselmo teve que acompanhá-lo.

No dia seguinte, uma puta duma ressaca, Edgard chegou cedo no trabalho. Anselmo ainda não havia chegado. Bom, também era cedo demais. Daí a meia hora tocou o telefone.

- Noêmiaaa!!! Que prazer... há quanto tempo – uma longa pausa – O quêêêê??? Quando??? Como???

Noêmia aos prantos contou que Anselmo havia chegado em casa completamente bêbado, tropeçando, chorando e balbuciando frases e nomes que ela não conseguia compreender, tal o seu estado, trancou-se no banheiro por algum tempo e acabou, quase que de súbito, no impulso de um surto, irrompendo pela sala e se atirado pela porta de vidro da sacada. Do sétimo andar... que o corpo estava no IML... Ela queria uma ajuda, precisava de ajuda, estava desesperada... que Anselmo deixou apenas uma carta, lacônica, escrita em papel higiênico, com péssima e trêmula caligrafia, na tampa da privada... em que falava de sua péssima situação financeira... mas que no seu bolso foi encontrada uma passagem para Los Angeles... Ainda aos prantos, subitamente Noêmia desligou o telefone, pedindo para que ele ligasse para ela, assim que pudesse.

Edgard largou o telefone sobre a mesa, recostou-se na cadeira. Suspirou, bebeu um copo d’água inteirinho, quase que de um gole só. Seu coração palpitava de forma intensa e desconexa. Suava frio. E pensou com os seus botões: “E nem o nome dela ele me disse... falou apenas que cantava ‘Everything changes’... e tudo... tudo mudou... tudo mudou mesmo! Caramba, nem quero procurar essa porra dessa música no YouTube... ou em lugar nenhum!... Já chega o Anselmo... desconjura!”

12 comentários:

Ieda Schimidt disse...

Que coisa, hem guri?

André Setaro disse...

Centrado mais nos diálogos, o conto consegue estabelecer uma tensão para a descoberta do motivo de Edgard estar tão desanimado. O fecho é trágico, e a tragédia, que não fora anunciada, é uma constatação dos tempos em que vivemos, nos quais a internet pode ter conseqüências funestas. Há casos, registrados pela psiquiatria, de pessoas que não aguentam ficar 'off line'. Quando, por acaso, isto acontece, há um 'surto' insólito.

E também uma homenagem ao 'Dia de Finados'. Pobre Edgard! A vida lhe foi madrasta.

Jonga Olivieri disse...

Mas, "que coisa" em que sentido, Ieda? Explique...

Jonga Olivieri disse...

O conto é baseado nisso, caro André.
Hoje é muito comum este tipo de comportamento virtual. Pessoas se apaixonam pela web...
Quanto ao Dia de Finados, hoje não está chovendo... curioso, mas é verdade. E um caso raro. Porque apesar de "atoa" sempre achei que os mortos costumam derramar suas lágrimas no dia que é deles... hehehe!

Anônimo disse...

Já tinha gostado deste conto quando li da outra vez, quer dizer quando foi publicado no antigo blog.

Stela Borges de Almeida disse...

Escreve bem, envolve o leitor na trama e merece uma publicação impressa, em formato de livro de contos.
Sobre internet, hoje tem um ótimo artigo na FSP "A América sou eu", o crítico Lee Siegel diz que a internet é um desastre sem proporções, uma estupidez que compromete a qualidade do jornalismo, sem nada de novo e original. O livro dele lançado recentemente, Contra a Máquina, merece atenção.

Domingo sem internet, cruz credo, sem ler os contos de Jonga?
Um grande abraço.

Anônimo disse...

Não dá pra parar, não dá pra respirar, meu! Eu ´tinha lido na outra vez que você publicou mas valeu reler.
Gostei de seu blogue portfolio. Mas vocês publicitários são tão engraçdaos. São de esquerda etc, mas fazem anúncio pra qualquer um. Ora, ora!
Otávio

Jonga Olivieri disse...

Obrigado, JR.

Jonga Olivieri disse...

Obrigado a você também também, Stela.
Vou ler o artigo que falou, sobre o Lee Siegel na Folha.

Jonga Olivieri disse...

Ô Tavim, uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Minhas idéias são minhas idéias e o sistema existe.
Seria pouco materialista eu querer viver em uma sociedade ideal, que não existe.
Se eu não sobrevivesse com publicidade estaria da mesma forma inserido de alguma forma no capitalismo. Mas fui parar nessa profissão e tenho que fazer o melhor dentro dela.
E é isso aí...

Eliana BR disse...

Jonga querido,
Seu conto foi censurado.
E sim, você, o outro você, terminou o conto na contramao. Ele, o conto, na verdade nao termina assim. Você deve saber disso porque foi você que escreveu. Eu sei também porque li com a atençao que ele exigiu.
Anselmo nao se atirou pela janela. Noêmia telefonou em prantos para dizer que ele tinha saido do banheiro, mosytado a passagem pra Los Angeles e dito que escrevia de la pra ela pra aceertarem tudo. Que nao dava pra falar naquele momento. Noêia estava desesperada e precisava da ajuda do amigo. Ela nao compreendia nada. Que teria dado no Anselmo pra ele mudar assim? O amigo seguiu o link indicado por Anselmo . E entendeu tudo. Eu também. e você?
Bises,
Eliana

Jonga Olivieri disse...

Juro que não entendi, Eliana...