O Lamas ontem e hoje |
Anos 1960... Havia um sujeito cuja alcunha era “Filósofo”.
Meio baixinho, o “cabra” circulava pelas noites cariocas, sempre nos bares
frequentados pela esquerda, a “festiva” (1), em particular. O dito personagem,
lá pras tantas, já de pileque subia numa cadeira e fazia um discurso
“inflamado”. No final, todos aplaudiam.
Mas, como o “Filósofo” havia todo um folclore que pairava
pelas madrugadas da cidade. No Cinerama,
o barzinho que ficava ao lado do cinema Paissandu,
lembro-me das figuras que iam sempre --mas sempre mesmo--, com “Ulisses” ou “O
Capital” debaixo do braço. “Ulisses” era a grande coqueluche da época. Em
tradução da Civilização Brasileira, a leitura do livro de Joyce era quase que
obrigatória. Acontece que a simbologia do autor em sua narrativa, embaralhava
demais a corações e mentes nem sempre preparadas para compreendê-la. O
resultado é que virou moda mesmo. Poucos entendiam, mas todos discutiam. E a
pergunta “: você já leu Ulisses?” era das mais comuns naqueles tempos.
Quem carregava “O Capital” sob o suvaco, naturalmente queria
dizer e mostrar ao público circunvizinho que entendia Marx e era íntimo de suas
ideias.
Tudo isto contado assim, parece simples. Mas, olha, a coisa
era pra lá de complicada. Porque no auge das bebedeiras, chegavam a dar medo
algumas reações e discursos numa época de repressão e violência com os
militares no poder. Certamente que eles (os milicos) encaravam tudo aquilo como
uma espécie de “gueto”, e, certamente vigiavam e catalogavam, somente vindo a
tomar medidas repressoras mais violentas à medida que sentissem a coisa
extrapolar a área circunscrita, e, logicamente demarcada da “porralouquice”
etílica, de uma esquerda que falava para a própria esquerda, num círculo
vicioso, quase um moto contínuo.
Mas, além do Cinerama,
ia-se muito ao Lamas. Não muito longe
dali, uns três longos quarteirões e se chegava lá, em pleno Largo do Machado,
entre a garagem dos bondes da Light e o cinema São Luis. As caras eram as mesmas, mas o
lugar era muito mais charmoso. Existiram poucos bares como o Lamas. Pensando bem, muito mais do que
isso, um restaurante. E o melhor filé (2) da cidade.
Na frente, a tabacaria e a banca de frutas. Frutas de todos
os tipos e origens, algo precioso e colorido. Na tabacaria, desde o Continental
(sem filtro) até o mais sofisticado fumo Dunhill,
sem contar os charutos cubanos. Mas, detalhe, ali você também comprava um
Pimentel ou uma cigarrilha Talvis da
vida.
No meio o restaurante, café e bar. Não era enorme, mas ao
adentrar sentia-se o peso da história. Naquelas cadeiras, que hoje teriam quase
140 anos de existência(3), sentaram, em outros tempos, os traseiros de Getúlio
Vargas, Monteiro Lobato, Oswaldo Aranha e até Machado de Assis, personalidades
que fizeram história na política e na cultura deste país.
Nos fundos, passando uma porta de molas no melhor estilo “saloon” de faroeste, a maior sala de sinuca que eu conheci. Pelo menos que eu conheci... E o mais engraçado, ou até desgraçado, o banheiro ficava após aquela gigantesca sucessão de mesas de bilhar. Triste é que quando se chegava lá, às vezes ainda tinha que se enfrentar uma fila para tirar a bendita “água do joelho”.
Nos fundos, passando uma porta de molas no melhor estilo “saloon” de faroeste, a maior sala de sinuca que eu conheci. Pelo menos que eu conheci... E o mais engraçado, ou até desgraçado, o banheiro ficava após aquela gigantesca sucessão de mesas de bilhar. Triste é que quando se chegava lá, às vezes ainda tinha que se enfrentar uma fila para tirar a bendita “água do joelho”.
Não me lembro de ter saído do Lamas sóbrio, a não ser depois que casei e fomos algumas vezes jantar;
algo bem mais civilizado. Naqueles tempos de antanho, geralmente comprava uma
maçã ou pera, saindo trôpego do local, e, sabe-se lá como, acordava inteirinho em
casa no dia seguinte. Porém, foram longas e acirradas discussões sobre o futuro
do Brasil e do mundo. Muita briga com o pessoal do “partidão” a ouvir discursos
do “Filósofo” em cima de uma cadeira naquele burburinho de vozes que só as
casas noturnas têm.
Havia também os bares do Leblon e Ipanema. O Degrau, o Alvaro’s, o Jangadeiro, o
Zepellin. Mais uma vez, as mesmas
caras, os mesmos debates as mesmas propostas de uma época de filósofos e
filosofadas. Uma época muito rica em minha memória.
1. Esquerda “festiva” era
aquela que vivia apenas de discurso, geralmente não militava, e se opunha ao
regime e/ou sistema de forma descompromissada, em bares e festinhas, como diz o
nome...
2. O Lamas mudou-se dali para
a rua Marques de Abrantes, quando o prédio foi demolido para a construção do
metrô. Mas até hoje serve o seu filé, que continua famoso, se bem que eu acho
que não é mais como aquele. Ou será puro romantismo?
3. O Lamas mudou-se em meados
dos anos 1970.
6 comentários:
Charmosas recordações.
E então não é?
Excelente a postagem que resgata a memória do Lama's. Cheguei a conhecer o famoso bar e restaurante ainda no Largo do Machado. Depois, quando houve a mudança para o Paissandu, por estar mais velho, frequentei-o com mais assiduidade sempre que ia ao Rio. Lembro-me de um 'fillet' sangrento com batata frita que era uma delícia.
As suas histórias, registradas, nesta pensata dominical, fazem reviver o belo Rio de antigamente, mais boêmio, mais cultural.
Inclusive quando vieste ao Rio em 2009, estivemos lá e almoçamos um desses filés, a marca registrada do estabelecimento.
Embora não tenha vivido a época descrita, pude transportar-me para ele pela qualidade da narrativa, Parabéns!
Deborah
Obrigado...
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