domingo, 18 de março de 2012

Pensatas d'outros tempos

O Lamas ontem e hoje
Anos 1960... Havia um sujeito cuja alcunha era “Filósofo”. Meio baixinho, o “cabra” circulava pelas noites cariocas, sempre nos bares frequentados pela esquerda, a “festiva” (1), em particular. O dito personagem, lá pras tantas, já de pileque subia numa cadeira e fazia um discurso “inflamado”. No final, todos aplaudiam.
Mas, como o “Filósofo” havia todo um folclore que pairava pelas madrugadas da cidade. No Cinerama, o barzinho que ficava ao lado do cinema Paissandu, lembro-me das figuras que iam sempre --mas sempre mesmo--, com “Ulisses” ou “O Capital” debaixo do braço. “Ulisses” era a grande coqueluche da época. Em tradução da Civilização Brasileira, a leitura do livro de Joyce era quase que obrigatória. Acontece que a simbologia do autor em sua narrativa, embaralhava demais a corações e mentes nem sempre preparadas para compreendê-la. O resultado é que virou moda mesmo. Poucos entendiam, mas todos discutiam. E a pergunta “: você já leu Ulisses?” era das mais comuns naqueles tempos.
Quem carregava “O Capital” sob o suvaco, naturalmente queria dizer e mostrar ao público circunvizinho que entendia Marx e era íntimo de suas ideias.
Tudo isto contado assim, parece simples. Mas, olha, a coisa era pra lá de complicada. Porque no auge das bebedeiras, chegavam a dar medo algumas reações e discursos numa época de repressão e violência com os militares no poder. Certamente que eles (os milicos) encaravam tudo aquilo como uma espécie de “gueto”, e, certamente vigiavam e catalogavam, somente vindo a tomar medidas repressoras mais violentas à medida que sentissem a coisa extrapolar a área circunscrita, e, logicamente demarcada da “porralouquice” etílica, de uma esquerda que falava para a própria esquerda, num círculo vicioso, quase um moto contínuo.
Mas, além do Cinerama, ia-se muito ao Lamas. Não muito longe dali, uns três longos quarteirões e se chegava lá, em pleno Largo do Machado, entre a garagem dos bondes da Light e o cinema São Luis. As caras eram as mesmas, mas o lugar era muito mais charmoso. Existiram poucos bares como o Lamas. Pensando bem, muito mais do que isso, um restaurante. E o melhor filé (2) da cidade.
Na frente, a tabacaria e a banca de frutas. Frutas de todos os tipos e origens, algo precioso e colorido. Na tabacaria, desde o Continental (sem filtro) até o mais sofisticado fumo Dunhill, sem contar os charutos cubanos. Mas, detalhe, ali você também comprava um Pimentel ou uma cigarrilha Talvis da vida.
No meio o restaurante, café e bar. Não era enorme, mas ao adentrar sentia-se o peso da história. Naquelas cadeiras, que hoje teriam quase 140 anos de existência(3), sentaram, em outros tempos, os traseiros de Getúlio Vargas, Monteiro Lobato, Oswaldo Aranha e até Machado de Assis, personalidades que fizeram história na política e na cultura deste país.
Nos fundos, passando uma porta de molas no melhor estilo “saloon” de faroeste, a maior sala de sinuca que eu conheci. Pelo menos que eu conheci... E o mais engraçado, ou até desgraçado, o banheiro ficava após aquela gigantesca sucessão de mesas de bilhar. Triste é que quando se chegava lá, às vezes ainda tinha que se enfrentar uma fila para tirar a bendita “água do joelho”.
Não me lembro de ter saído do Lamas sóbrio, a não ser depois que casei e fomos algumas vezes jantar; algo bem mais civilizado. Naqueles tempos de antanho, geralmente comprava uma maçã ou pera, saindo trôpego do local, e, sabe-se lá como, acordava inteirinho em casa no dia seguinte. Porém, foram longas e acirradas discussões sobre o futuro do Brasil e do mundo. Muita briga com o pessoal do “partidão” a ouvir discursos do “Filósofo” em cima de uma cadeira naquele burburinho de vozes que só as casas noturnas têm.
Havia também os bares do Leblon e Ipanema. O Degrau, o Alvaro’s, o Jangadeiro, o Zepellin. Mais uma vez, as mesmas caras, os mesmos debates as mesmas propostas de uma época de filósofos e filosofadas. Uma época muito rica em minha memória.

1. Esquerda “festiva” era aquela que vivia apenas de discurso, geralmente não militava, e se opunha ao regime e/ou sistema de forma descompromissada, em bares e festinhas, como diz o nome...

2. O Lamas mudou-se dali para a rua Marques de Abrantes, quando o prédio foi demolido para a construção do metrô. Mas até hoje serve o seu filé, que continua famoso, se bem que eu acho que não é mais como aquele. Ou será puro romantismo?

3. O Lamas mudou-se em meados dos anos 1970.

6 comentários:

Joelma disse...

Charmosas recordações.

Jonga Olivieri disse...

E então não é?

André Setaro disse...

Excelente a postagem que resgata a memória do Lama's. Cheguei a conhecer o famoso bar e restaurante ainda no Largo do Machado. Depois, quando houve a mudança para o Paissandu, por estar mais velho, frequentei-o com mais assiduidade sempre que ia ao Rio. Lembro-me de um 'fillet' sangrento com batata frita que era uma delícia.

As suas histórias, registradas, nesta pensata dominical, fazem reviver o belo Rio de antigamente, mais boêmio, mais cultural.

Jonga Olivieri disse...

Inclusive quando vieste ao Rio em 2009, estivemos lá e almoçamos um desses filés, a marca registrada do estabelecimento.

Anônimo disse...

Embora não tenha vivido a época descrita, pude transportar-me para ele pela qualidade da narrativa, Parabéns!
Deborah

Jonga Olivieri disse...

Obrigado...