quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Por um marxismo crítico – parte 1




É um prazer publicar este ensaio de Michael Löwy¹, um dos pensadores marxistas mais atualizados, e que encontrei no excelente site marxismo21. Porem, dada a extensão deste texto, vou dividi-lo em três partes para que a sua leitura e assimilação flua da melhor maneira possível.

O resgate do marxismo como conhecimento científico, crítico e projeto emancipatório tem que incorporar as conquistas dos marxismos do século XX.

A nova visão de mundo inaugurada por Marx é hoje — em tempos em que o mercado capitalista se tornou uma verdadeira religião secular — mais atual que nunca. Mas a herança da análise marxista apresenta também limitações, particularmente no que diz respeito às relações da produção com a vida social e cultural e com o ambiente natural. E a melhor forma de superá-las é considerar o pensamento de Marx como um canteiro de obras, sobre o qual continuam a trabalhar as gerações de marxistas críticos.

Depois de mais de meio século de “marxismo” de Estado, ideologia oficial a serviço de um sistema burocrático autoritário ou (segundo os casos) totalitário, nada é mais legítimo do que o desejo de voltar a Marx, desembaçar seu pensamento das escórias acumuladas e retomar o diálogo (crítico) com a obra original.

Partilhamos desta intenção, sugerida tanto no título desta coletânea (Marx após os marxismos), como no texto proposto pelos editores da revista Futur Antérieur.
Com a condição, todavia, de evitar um sério equívoco: crer que podemos abstrair um século de história do marxismo, uma história em que encontramos, ao lado de muitos impasses (sem falar das aberrações estalinistas), uma imensa riqueza e pistas indispensáveis para compreender nossa época. Não se pode simplesmente “voltar a Marx” negligenciando Rosa Luxemburgo e Lenin, Trotsky e Gramsci, Lukács e Bloch, Walter Benjamin e Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Max Horkheimer, E.P. Thompson e Raymond Williams, Lucien Goldmann e Jean-Paul Sartre, Ernest Mandel e C.L.R. James, Henry Lefebvre e Guy Debord, José Carlos Mariátegui e Ernesto Che Guevara — poderíamos alongar a lista.

São os marxismos do século XX — partindo de Marx, mas indo bem mais além — que nos ajudaram a compreender o imperialismo e o fascismo, o estalinismo e a sociedade do espetáculo, as revoluções sociais nos países periféricos e as novas formas de capitalismo. Não
França.

Trata-se de uma herança homogênea ou de uma linha ortodoxa, mas de uma diversidade conflituosa e aberta, que nos é tão necessária, do ponto de vista de uma crítica do estado de coisas existente — ou da busca de uma alternativa radical — quanto as obras de Marx eEngels.

Se continuo a me referir ao marxismo é porque não penso que Marx fosse (para retomar uma fórmula célebre) “um homem de ciências como os outros”. Seu pensamento introduz, como destaca com razão Gramsci, uma cisão no campo cultural, tanto teórica como prática, filosófica e política, cujos efeitos repercutem até o presente. Ela inaugura não uma “ciência da história” — que já existia antes dele — mas uma nova concepção de mundo, que permanece uma referência necessária para todo pensamento e ação emancipadores.

O marxismo não tem sentido se não é crítico, tanto em face da realidade social estabelecida — qualidade que faz imensa falta aos “marxismos” oficiais, doutrinas de legitimação apologética de uma ordem “realmente existente” — quanto ante ele próprio, ante suas próprias análises, constantemente questionadas e reformuladas em função de objetivos emancipadores que constituem sua aposta fundamental. Reclamar-se do marxismo exige portanto, necessariamente, um questionamento de certos aspectos da obra de Marx. Parece-me indispensável um inventário que separe o que permanece essencial para  compreender e para mudar o mundo, do que deve ser rejeitado, criticado, revisto ou corrigido. Não pretendoque meu balanço seja o único legítimo, nem que ele seja mais “marxista” ou “marxiano” do que os outros. Eu o proponho como uma contribuição para um debate pluralista, sem temer, como dizia Lucien Goldmann, ser ortodoxo, nem herético.

A primeira e talvez maior contribuição de Marx à cultura moderna é seu novo método de pensamento e de ação. Em que consiste esta nova visão de mundo, inaugurada pelas Teses sobre Feuerbach de 1845? A melhor definição me parece ainda a de Gramsci: filosofia da
Práxis.

Este conceito tem a grande vantagem de destacar a descontinuidade do pensamento marxista em relação aos discursos filosóficos dominantes, rejeitando tanto o velho materialismo da filosofia das Luzes — mudar as circunstâncias para libertar o homem (com seu corolário político lógico: o apelo ao déspota esclarecido ou a uma elite virtuosa) — quanto o idealismo neohegeliano (libertar a consciência humana para mudar a sociedade). Marx cortou o nó górdio da filosofia de sua época, proclamando (terceira tese sobre Feuerbach) que na práxis revolucionária coincidem a mudança das circunstâncias e a transformação das consciências.

Daí decorre, com rigor e coerência, sua nova concepção de revolução, apresentada pela primeira vez em A ideologia alemã: é por sua própria experiência, no curso de sua própria práxis revolucionária, que os explorados e oprimidos podem quebrar ao mesmo tempo as “circunstâncias” exteriores que os aprisionam — o capital, o Estado — e sua consciência mistificada anterior. Em outras palavras: a autoemancipação é a única forma de emancipação autêntica.

Deste ponto de vista, a célebre fórmula do Manifesto inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores resume, em sua brevidade lacônica, o núcleo mais central do pensamento político marxiano: “A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. A revolução como práxis autolibertadora é simultaneamente a mudança radical das estruturas econômicas, sociais e políticas, e a tomada de consciência, pelas vítimas do sistema, de seus verdadeiros interesses, a descoberta das idéias, aspirações e valores novos, radicais, libertários.

Nos marcos desta concepção de revolução — que, bem entendido, se relaciona não apenas com a “tomada do poder” mas com todo um período histórico de transformação social ininterrupta — não há lugar, do ponto de vista da própria estrutura de argumentação, para nenhum “salvador supremo” (“nem Cesar, nem tribuno”): a filosofia da práxis de Marx é intrinsecamente hostil a todo autoritarismo, substitucionismo ou totalitarismo. De todas as manipulações, deformações e falsificações que o marxismo conheceu pelos zelos do cesarismo burocrático estalinista — que não é um “desvio teórico” mas um monstruoso sistema de
monopólio de todos os poderes por um “Estado” (Stand) parasitário — aquele que se produziu neste nível foi sem dúvida o pior.

A filosofia da práxis tem também uma outra dimensão decisiva: contra o materialismo antigo que coloca o indivíduo contemplativo (Anschauend) ante às “circunstâncias sociais”, isto é, em face da “sociedade burguesa” enquanto conjunto de leis sociais e econômicas “naturais”, independentes da vontade ou da ação dos indivíduos, ela percebe a sociedade como rede “prática”, concreta, de relações sociais, como estrutura criada pelos seres humanos no curso de sua atividade histórica e de sua apropriação da natureza pelo trabalho. Em outras palavras, a concepção da práxis está no coração da crítica marxista das alienações e, mais tarde, do fetichismo da mercadoria — ao mesmo tempo como “ilusão necessária” e como forma de objetivação social no capitalismo.

Hoje, quando somos mais do que nunca submetidos ao que Etienne Balibar chama “o totalitarismo da forma mercantil”, isto é, a uma condição na qual “os indivíduos são aprisionados na estrutura objetiva da troca, a partir do momento onde não somente os objetos com os quais os indivíduos têm negócios são mercadorias, mas a própria força de trabalho se torna mercadoria” e sua própria subjetividade é submetida à forma mercadoria (Balibar, 1994-95: 94).

Neste final do século XX, quando o mercado capitalista se tornou uma verdadeira religião secular, com seu culto fanático e restrito, seu cortejo de dogmas intolerantes, seus rituais de expiação, seu clero internacional de “especialistas”, sua excomunhão de todas as heresias, a crítica marxiana do fetichismo permite se desembaraçar desta capa de chumbo esmagadora, deste conformismo sufocante e desta hegemonia usurpadora do “pensamento único”. Ela inspirou alguns dos mais interessantes avanços da teoria social no século XX, da análise da reificação por Lukács até a crítica da razão instrumental pela Escola de Frankfurt e a da sociedade do espetáculo pelos situacionistas.

O que constitui a força do pensamento de Marx e que explica sua persistência, sua vitalidade, seu ressurgimento perpétuo apesar das “refutações” triunfantes, dos repetidos enterros e das
manipulações burocráticas, é sua qualidade  ao mesmo tempo crítica e emancipadora, a saber,a unidade dialética entre a análise do capital e a convocação à sua derrocada, o estudo da luta de classes e o engajamento no combate proletário, o exame das contradições da produção capitalista e a utopia de uma sociedade sem classes, a crítica da economia política e a exigência de “eliminar todas as condições no seio das quais o homem é um ser diminuído, submetido, abandonado, desprezado” (Marx, 1971: 81).

Se a crítica marxista do capital guarda todo o seu valor é antes de tudo porque a realidade do capitalismo, como sistema mundial, apesar das mudanças inegáveis e profundas que ele conheceu depois de um século e meio, continua a ser a de um sistema baseado na exclusão da maioria da humanidade, a exploração do trabalho pelo capital, a alienação, a dominação, a hierarquia, a concentração de poderes e de privilégios, a quantificação da vida, a reificação das relações sociais, o exercício institucional da violência, a militarização, a guerra. Para compreender esta realidade, suas contradições e as possibilidades de sua transformação radical, a obra de Marx permanece um ponto de partida indispensável, uma ferramenta insubstituível, uma bússola sem a qual temos boas chances de perder o caminho.

É um fato que o mundo do trabalho conheceu transformações profundas, principalmente no curso das últimas décadas: declínio do proletariado industrial e desenvolvimento do setor de serviços, desemprego estrutural, formação (notadamente nos países do Terceiro Mundo) de uma massa de excluídos à margem do processo de produção — o “pobretariado”. Estes são fenômenos não previstos por Marx e que não podemos de forma alguma dar conta com conceitos como “trabalho improdutivo” ou “lúmpen-proletariado”.

Mas o proletariado, no sentido amplo, isto é, aqueles que vivem da venda de sua força de trabalho — ou que tentam vender (os desempregados) — permanecem o principal componente da população trabalhadora e o conflito de classe entre o trabalho e o capital continua a ser a principal contradição social das formações capitalistas — assim como o eixo em torno do qual podem se articular os outros movimentos com vocação emancipadora.

O final do século XX é uma época caracterizada tanto pela globalização capitalista mais avançada, a universalização mercantil da economia-mundo, quanto pela multiplicação dos retrocessos identitários, das neuroses territoriais obsessivas, dos fetichismos nacionais mórbidos; estas são duas faces da mesma moeda. A reconstrução paciente das solidariedades entre explorados e oprimidos — fundamento concreto de uma nova universalidade —permanece o único fio que permite encontrar a saída do labirinto identitário.

Tudo isso não impede a existência de problemas, dificuldades, limitações e insuficiências no pensamento de Marx. Parece-me que os aspectos mais discutíveis da herança marxista se situam na análise das relações da produção com a vida social e cultural e com o ambiente natural.

No quadro desta curta contribuição posso apenas assinalar estes problemas, sem ter condições de discuti-los de forma mais sistemática. Pode-se constatar em Marx uma certa tendência a subestimar as formas não-econômicas e não-classistas de opressão: nacional, étnica ou sexual. A questão da dominação patriarcal sobre as mulheres, que afeta a metade da humanidade, está longe de ser um tema essencial para crítica marxiana da sociedade (Engels era muito mais atento ao problema), que permanece androcêntrico de uma maneira sofrível. Encontram-se páginas emocionantes em O Capital sobre o sofrimento das mulheres operárias impiedosamente exploradas pelos capitalistas ingleses, mas procuraremos em vão em suas obras uma análise consistente da opressão específica das mulheres enquanto tais, da construção do gênero como categoria social hierárquica ou da discriminação contra as mulheres no seio do próprio movimento operário.

Da mesma forma, a autonomia relativa dos fatos culturais como a religião ou a ética, sua irredutibilidade às relações de produção, não foram sempre levadas em conta por Marx ou Engels. Se eles tinham captado perfeitamente a natureza contraditória da religião — expressão da miséria real e protesto contra ela — estavam totalmente convencidos de que o papel de protesto da religião tinha terminado com a revolução puritana inglesa do século XVII. Sua
abordagem dos fenômenos religiosos como sobrevivências do passado não permitiu darmos conta nem da persistência tenaz de formas obscurantistas e retrógradas (“o ópio do povo”) ao longo do século XX e, em particular, em nossos dias, nem da aparição de formas progressistas e mesmo revolucionárias de religiosidade (a Teologia da Libertação).

De outro lado, sua crítica frequentemente justificada do “moralismo” idealista e da ideologia jurídica os conduziu a recusar a formulação de valores éticos e de direitos humanos universais. Existe, é verdade, uma ética emancipadora universal que atravessa a obra de Marx e Engels, mas eles sempre se opuseram a sua explicitação e articulação teórica. Esta lacuna favoreceu, ao longo de toda a história do marxismo, as tentativas questionáveis de completar a herança marxiana com uma ética kantiana, utilitarista, fenomenológica ou liberal.

Permanece, enfim, a questão que exige talvez as revisões mais profundas do corpo teórico marxista: a relação entre produção e natureza. Dizer que “o marxismo é um produtivismo” como repetem nossos amigos ecologistas é pouco esclarecedor: ninguém denunciou tanto quanto Marx a lógica capitalista da produção pela produção, a acumulação do capital, de riquezas e de mercadorias como objetivo em si. A própria idéia de socialismo — contra o que foram suas miseráveis contrapartidas burocráticas — é a de uma produção de valores de uso, de bens necessários à satisfação de necessidades humanas. O objetivo supremo do progresso técnico para Marx não é o crescimento infinito de bens (“o ter”) mas a redução da jornada de trabalho e o crescimento do tempo livre (“o ser”).

1. Michael Löwy (São Paulo, 06 de maio de 1938) é um pensador marxista brasileiro radicado na França, onde trabalha como diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique. É um relevante estudioso do marxismo, com pesquisas sobre as obras de Marx, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Lukács e Walter Benjamin.
De Löwy li (e já reli mais de uma vez) Marxismo, Modernidade e Utopia, Editora Xamã, publicado em 2000 (excelente livro escrito em colaboração com Daniel Bensaid). Mas o autor possui dezenas de obras publicadas.


3 comentários:

Joelma disse...

Cacilda! Mal vi, mal li e já comento. Até entendo que não publique tudo de uma vez. Michael Löwy é muito profundo em tudo o que diz.
Considero ele um daqueles que procuram uma adequação do (verdadeiro marxismo pós-queda do Império soviético), que a burguesia tentou e continua tentando usar para destruir o pensamento socialistas/comunista de Marx.
Só não vêem que aquilo que aconteceu ali não era o que Marx propôs. E não foi mesmo. Löwe é um estudioso do marxismo neste século, em outras condições sociais, econômicas, enfim, atualizado com o mundo. Mas tendo a noção de que o marxismo ainda é a única forma de se analisar o capitalismo, tal e qual o é.
Por que? Simplesmente a base de tudo: a acumulação do capital e a mais-valia continuam sendo o princípio deste sistema!

Mário disse...

Também conheci Michael Lowy, quando, por indicação tua li "Marxismo, Modernidade, Utopia", um estudo atualíssimoc sobre os caminhos do marxismo nesses tempos neoliberais e pós modernos.
Inclusive recomendo sua leitura a quem quer que se interesse pelo assunto.

Tavim disse...

Uma análise bem interessante e sem dúvida muito atual.