Entrevista - Carlos Henrique Escobar: Mito e memória de um contestador
MARCIO SALGADO – Jornal do Brasil
Maio de 1968 tornou-se mito. Não é uma data
qualquer. Remete às diversas aspirações do mundo moderno – a utopia de uma
sociedade sem classes, a emancipação dos costumes e a libertação sexual. Era um
movimento otimista, numa época de conflitos e protestos contra as guerras e os
poderes estabelecidos. Se compararmos essa época com os dias de hoje, levamos
vantagens com os avanços tecnológicos e os celulares, mas o bem-estar da nossa
sociedade é centrado em um consumismo e individualismo exacerbados. As utopias
das grandes mudanças se dissiparam.
Nesta entrevista, o filósofo, dramaturgo e poeta
Carlos Henrique Escobar discorre – numa visão poética e crítica – sobre as
questões que motivaram o Maio de 68, além de temas da Filosofia e o papel do
intelectual no mundo contemporâneo.
Escobar nasceu em São Paulo, cidade onde viveu
parte da sua vida. Ainda na adolescência, se engajou nas lutas políticas. No
final dos anos 1950, morou em Paris, onde participou de cursos de
Merleau-Ponty, então um expoente da filosofia francesa. De volta ao país, em
1962, seguiu para o Rio de Janeiro a fim de participar de um curso de cinema, e
passou a viver em definitivo na cidade. No Rio, foi professor universitário de
várias gerações, sendo um dos fundadores da Escola de Comunicação da UFRJ.
Como intelectual, os seus juízos são rigorosos,
mas trata-se de uma pessoa de gestos solidários, que vê o sofrimento no
mundo e quer ajudar a transformá-lo.
Uma fala do documentário “Os dias com ele”, da sua
filha Maria Clara Escobar, chama particular atenção dos espectadores, talvez
pelo nonsense da situação, mas nela há mais do que apenas ironia. “Quero ser
enterrado num cemitério de animais”, diz Escobar. Ora, por que um filósofo, que
de acordo com as lições mais elementares da filosofia, tem a razão como
instrumento essencial do seu labor, prefere ser sepultado em companhia dos
animais? Em primeiro lugar, o filósofo demonstra o seu afeto pelos bichos. Ele
cria gatos. Contudo, não deixa de haver nesta afirmação uma forma de desdém às
normas estabelecidas. Aos 84 anos, Escobar continua um contestador.
A sua primeira peça,
“Antígona-América”, teve o mesmo destino de outras obras para o teatro, livros
e músicas produzidos naqueles anos sombrios – o silêncio imposto pela censura.
E foi ainda com a censura no seu encalço que o autor obteve êxito com outra
peça, “A caixa de cimento”, premiada pelo Serviço Nacional de Teatro, em 1977,
e que trazia a atriz Ruth Escobar, sua mulher à época, no papel da protagonista.
Há mais de uma década Escobar vive com a mulher, Ana, e o filho, Emílio, em
Portugal, num exílio voluntário.
JB – 1968 é tido como
culturalmente transformador, mas em termos políticos foi um período negativo
para o Brasil. Como avalia o impacto dos acontecimentos na vida do país?
Carlos Henrique Escobar –
1968 permanece impreciso e até mesmo enigmático para os que querem trabalhá-lo
teoricamente. Entre estes, os que mais se equivocam são aqueles que buscam
envolvê-lo em velhos paradigmas sociológicos ou históricos. Desde logo, em
razão de tudo aquilo que existiu ou é requerido no largo espaço deste
movimento, 1968 acontece e conhecê-lo é se perder.
Há caminhos novos em razão da
implicação destas manifestações com o “cultural”. Junto às questões sociais
enfrentadas pelos diferentes 68, emergiu uma criatividade nas margens e uma
radicalidade anarquista nas palavras de ordem.
Há os que argumentam que 1968
também se insere na flutuação advinda do fim da Segunda Guerra Mundial, isto é,
das promessas e expectativas que nunca se fizeram valer. O rastreamento das
lutas em França, no México, no Brasil, nos EUA e por toda a parte revela a que
ponto se agruparam estas lutas e o quanto se envolveram nas demandas culturais
do 68 francês.
Um outro aspecto inovador foi a
diversidade de pessoas, ou grupos, que apenas em razão de estarem presentes em
1968 fizeram depois uma leitura ficcional deste movimento e nelas se apresentam
como causa ou origem.
No Brasil, o livro “1968: O ano
que não terminou”, do jornalista Zuenir Ventura, começa falando de um réveillon
que o autor suspeita ser a origem do 68 brasileiro. Isso mesmo, a origem de
tudo estaria numa festa. No seu entender, 68 é confundido com liberdade sexual
e prisões de pessoas notáveis. Faltam os estudantes e suas demandas, o povo, os
trabalhadores e as fábricas. A contaminação da Guerra Fria, da URSS, das
evoluções políticas na China, a guerra do Vietnã, a corrida armamentista da
Nato e do Pacto de Varsóvia. A guerra civil e a divisão da Coreia, onde os EUA
acumulavam derrotas militares. Junto a isso um consumo, melhor dizendo, uma
sociedade do consumo e do espetáculo, muito bem trabalhada por Guy Debord.
Como você situa os movimentos
políticos dessa época?
A revolução cultural já vinha
atravessando os estudantes, os intelectuais e os artistas, e até mesmo a
população. Ainda que aquém dos propósitos políticos, os símbolos das
“revoluções” e a imagem dos seus líderes, poderíamos citar Che Guevara, Fidel e
Mao que se tornaram ícones consumidos no mundo inteiro. Estou falando de
representação, de signos. É claro que esta oferta de bens da indústria e do
comércio não passava de uma mera apropriação.
A desobediência se ampliava dos
estudantes aos sindicatos, vestia a juventude de produtos apelativos. É
importante que se diga que esta revolta – “é proibido proibir” – ia se
estetizando tanto quanto se despolitizava, perdia na realidade a sua força
transformadora. Esta desobediência estetizada ou já apropriada –- política de
um lado e mercadoria de outro – fazia parte das agora visíveis contradições da
chamada democracia.
O peso da Guerra do Vietnã, as
ditaduras latino-americanas, a crise da autoridade e dos valores na Europa,
descortinara uma classe média radical. Conseguiu-se na década de 1960 aproximar
os que exigiam mudanças, os movimentos utópicos, os diferentes atavismos que
vão e vêm, e se insurgem contra os hábitos e a ordem.
Gostaria que falasse da sua
experiência pessoal durante esse período.
Na época eu era aluno de cinema
– num curso dado por um cineasta sueco no Rio de Janeiro, implantado pelo
Itamaraty. No bolso tinha um roteiro para um curta-metragem sobre operários
brasileiros que também se apropriaram de uma fábrica.
O Brasil de 1968 já existia
antes, em 1965, quando participei em passeatas no Rio e a polícia política (no
governo estadual de Carlos Lacerda) era agressiva e temida. Da mesma maneira
que ocorreu na França, onde o 1968 era observado com desconfiança pelos
comunistas, as manifestações estudantis no Brasil eram hostilizadas pelo
Partido Comunista Brasileiro. A espontaneidade e a temática da desobediência,
durante esses anos no Brasil tornou-se uma crítica ao stalinismo.
O caráter poético dos slogans e
das palavras de ordem foram fundamentais como ensejo de mundos outros e
manifestações mais abertas e criativas. A poesia de palavras de ordem como
“debaixo das pedras, a praia”, “é proibido proibir”, “sejam realistas, exijam o
impossível”, almejavam um mundo descontraído onde estudantes, operários e a
classe média queriam viver. Talvez eles já soubessem o que procuramos hoje
pensar, que em meio dos empenhos para nos sobrepormos ao capitalismo, a ordem
seja transversalizar a luta e a festa, a causa e a sensibilidade, os
trabalhadores e a cultura.
A partir da década de 1970 se
realizaram esforços em torno de novas causas: ecologista, feminista, racial, a
loucura e os manicômios, a homossexualidade, as prisões, etc., porém
experimentou-se também a sensação de uma larga derrota daquilo que em 1968 se
exibia como urgência. Mas isso não significa a extinção daqueles ideais, as
diferentes reivindicações, a difícil espera da transformação do mundo.
Podemos falar em uma
filosofia brasileira, assim como se diz filosofia francesa ou alemã?
Acho que não podemos falar de
uma filosofia brasileira. Numa outra época, se fôssemos alunos da USP com a
“Folha de S. Paulo” nos chamando de filósofos, seríamos iludidos por nossa
ignorância. Cito exemplos: Gianotti jamais filosofou. Repetia sempre um Hegel,
uma fenomenologia, um marxismo sartreano. Bento Prado – por quem tinha imenso
carinho pessoal – foi aos poucos se diluindo como filósofo, tornou-se um
pensador en passant e sem obra.
Marilena Chauí retoma vazias
posições de esquerda, na retórica francesa de que seguidamente se apropria. Ela
acredita que Lula é o demiurgo. Não nego seu sucesso em livros de introdução à
Filosofia.
Em uma das suas teses, Marx
afirmou o seguinte: “Até hoje os filósofos não fi zeram mais que interpretar o
mundo; cabe agora transformá-lo.” Que leitura você faz dessa afirmação. O
mundo não estaria em processo de transformação?
Em Marx, significa uma crítica
ao excessivamente abstrato. Marx e Engels ao projetarem toda uma teoria já
estavam plenamente envolvidos numa prática política, numa revelação concreta da
história. Eles militam e pensam nas forças que se conflitam. Todos estavam
então envolvidos numa aspiração de transformação do mundo.
A suposição de uma filosofia
contemplativa – que foi para eles toda a filosofia do passado – se mantinha em
estreita dependência dos valores vigentes e das práticas do capital. É fácil
compreender tudo isso se soubermos que uma ação política e radical (comunista,
anarquista, utópica) nos obriga à convivência por inteiro no momento em que
nela nos engajamos.
Mas, afinal esta frase de Marx
exigiria hoje uma longa análise e explicação. São muitos os filósofos,
sobretudo Heidegger e alguns outros, que fazem uma crítica desta observação de
Marx, presumindo falta de clareza na relação teórica e política. No propósito
mais imediato de Marx não vejo o porquê desta preocupação. Mas lembro que de
certa forma ela é até mesmo grega, e mais do que nunca contemporânea. Eu não
diria que Marx está ou estava errado, mas que a frase pode equivocar caso a
tomemos à letra.
A sua peça “A caixa de
cimento” faz uma crítica ao poder militar que então governava o país. Hoje,
como se manifestam as novas formas de dominação?
Produzi uma peça contra o
despotismo e a convicção do Estado. Você tem razão em que esta tese estatal de
fazer do sofrimento e da morte um espetáculo continua. Os americanos acreditam
que o medo freia a revolta, e a ditadura brasileira levou prisioneiros
políticos à televisão para discursar um texto que saudasse o regime em vigor.
Formas de poder torturam e até se aperfeiçoam na dor produzida. Em parte elas
diminuiriam se acabasse a luta de classes. Digo, em parte. Se olho um homem me
digo, obrigatoriamente, em parte. Afinal, a vida em si também nos embosca.
(M.S.)
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