Ilustração de Gabriel Ferreira para o livro |
Este conto faz parte do livro “Memorial da Ilha e Outras Ficções” de autoria do professor Jorge Moreira editado em 2007.
Num sábado ensolarado, minha mulher, minha filha de 2 anos e eu estávamos em roupa de banho preparados para ir à praia de Pituassu, a 200 metros à frente da nossa casa. Pouco antes de sair, percebemos que já não temos gás para cozinhar no fim de semana. Sabendo que o caminhão da companhia não distribui combustível nos sábados e domingos, decidimos, antes da praia, passar na companhia e comprar um bujão.
Entramos no Volkswagen laranja e ligo o carro. Saio dirigindo e tomo a avenida Antônio Carlos Magalhães. Na banca de revistas, paro e compro o Jornal do Brasil. Enquanto espero troco, abro o diário e passo os olhos nos titulares da página internacional. Concentro-me por segundos no título de uma notícia: “Governo dos Estados Unidos envolvido no golpe militar do Brasil”. Na parte inferior, uma nota chama minha atenção: “USA aumenta ajuda à ditadura brasileira.”
Fecho o jornal e ligo o motor. Coloco a primeira e dirijo o carro para a companhia de gás. Lá chegando, compro o bujão e coloco o pesado volume na mala dianteira do veiculo. Entro, ligo o Volkswagen e recomeço a dirigir. Adiante, para encurtar o caminho de casa, decido cruzar pelo bairro de Brotas. Quando estou atravessando a sinaleira do cruzeiro de Campinas, perto do cemitério, um militar ordena que pare o carro.
Sem entender a razão da ordem, desligo o motor e espero no acostamento. Mal humorado, o militar caminha em nossa direção e diz:
— Desça do carro, pois o senhor está preso!
No princípio, penso que ele está brincando e amavelmente lhe pergunto:
— Posso saber o que está acontecendo?
Ele repete mais alto:
— Já disse e tá falado. O senhor e o carro ficam detidos.
Agora, já perturbado, pergunto:
— Posso saber qual foi a infração que cometi?
Ele responde:
— De agora em diante, está proibido andar de carro nu.
— Nu? — Replico.
— Estou, como todos os baianos, dirigindo de short e sem camisa porque hoje é sábado e estamos, minha mulher, minha filha e eu, indo para a praia tomar banho de mar.
— Não quero saber. Você está preso e o carro também.
Argumento que se existe uma lei da qual não tenho conhecimento, que me informe e eu não vejo problema em acatar as ordens. Enquanto argumento, noto que ele está se zangando. Finalmente, sem mais palavras, tira o revólver e me diz:
— Desça do carro, já!
Trato de explicar-lhe que estou com a mulher, a filha pequena e o bujão de gás; que não posso deixá-las sozinhas, sem transporte e em roupa de banho, no meio da rua. Solicito ao militar que me permita, pelo menos, deixa-las em casa e, logo, eu o acompanharia à delegacia policial. Nesse momento, sem nenhuma explicação, coloca o revolver na minha cabeça, puxa o gatilho do revólver, e diz:
— Seu filho da puta, desça já do carro, senão vou estourar os seus miolos!
Nesse ponto, minha mulher, aterrorizada e com os nervos à flor da pele, grita e minha filha, sem entender nada, chora, assustada pelos gritos da mãe. Atraídos pela situação surrealista, os transeuntes baianos, curiosos, vão se aproximando para saber o que está acontecendo. Temendo a reação da população o policial, de revólver à mão direita apontando para mim, toma o walkie-talkie e pede ao comando um pelotão da polícia militar com 20 soldados para ajudar a prender um “perigoso marginal armado” que está resistindo a ordem de prisão e ameaçando a autoridade policial.
Humilhado e indefeso, sou forçado a subir num caminhão da polícia militar, escoltado pela arrogância e pelos insultos dos soldados armados e do insano policial. Transportam-me para a delegacia da Ladeira do Galés, em Brotas, Salvador, Bahia, Brasil.
Depois de 6 horas incomunicável detrás das grades, posso dar meu depoimento e provar (com a ajuda de um advogado e do meu sogro, que conhecia o delegado), que o “perigoso marginal armado”, acusado de ameaçar a autoridade policial, era em realidade um jovem sociólogo, funcionário da Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador, que transportava um botijão de gás em companhia da mulher e da filha menor de dois anos.
No carro, nada foi encontrado alem do bujão e do jornal com a noticia: “USA aumenta ajuda à ditadura brasileira.”
10 comentários:
Este conto nos trás o clima dos chamados "anos de chumbo" quando a barra era pesada mesmo. E a polícia se aproveitava deste ar de repressão agravando-o.
Sem dúvida Eunice. E veja bem que isto foi apenas o início. Depois as coisas ainda pioraram muito!
gostei do conto, alguns amigos meus (professores e afins) contam cenas traumaticas e horripilantes dessa epoca, não tenho duvidas de que esse cara teve sorte de conseguir escapar, pois muitas historias que me contam n terminam com um final tão bom.
O que me chamou atenção é a chamada da reportagem no jornal, n consigo ver pq o EUA investiu na ditadura.....
Um conto que expõe bem o que aconteceu no Brasil dos tempos dos generais no poder: um verdadeiro abuso das autoridades e até das "otoridades" sobre o cidadão comum.
E isto com o cidadão comum, porque com o incomum, ou saja o proletariado era "duro pra matar" mesmo!
O proletariado morria mesmo, Mário.
Aliás não precisa ir muito longe. Com todos os avanços de nossa "democracia" ainda continua indo pro "beleléu". Seja nas mãos da polícia legal ou da ilegal (as chamadas milícias) que vão tomando cada vez mais conta dos espaços do povo.
Isto sem contar o tráfico, mas aí nós temos que inverter o pensamento e julgar os marginais sem uniforme e os uniformizados, que são da polícia.
Simey. Estranho mas o seu comentário demorou a chegar.
Mas é isso mesmo... Os casos nesta época eram dramáticos. Pessoas que desapareciam e outras coisas mais horríveis como a própria morte pela tortura.
Um conto 'enragé' do célebre Professor Jorge Moreira. Tenho a honra de ter o livro autografado pelo próprio autor, que pescava em sua juventude na sua querida Ilha de Maré. Tenho vontade de dar um passeio por lá.
Tenho um prometido também, Professor Setaro. Mas enquanto isso estou lendo na tela.
Porém já expliquei ao Professor Jorge Moreira que o romance só mesmo sentado numa poltrona dando uma boa cachimbada!
E com fume Bulldog.
"E com fume..." Num entendi, André. Mas conclui que seria que eu estaria fumando um tabaco Bulldog.
Por acaso para a leitura do romence seria um "Dunhill" dos que me restam, pois não são mais importados aqui no Brasil.
Daí, encomendo a quem vai à Europa para me trazer algum!
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