terça-feira, 14 de agosto de 2012

Caminhos para uma nova democracia no século 21. Parte 2


Este texto bastante abrangente que publico abaixo é o trecho de um ensaio de autoria de Fernando Marcelino, um economista brasileiro que escreve no Correio da Cidadania (1) e tem um blogue (2), que já marquei em meus favoritos na coluna ao lado. Continuo com o ensaio abaixo a série “Caminhos para uma nova democracia no século 21”, que aborda a busca de um novo socialismo e a essencial democracia que dele fará parte, tudo isto à luz de Marx, que jamais separou um fator do outro (3).

“Considerando que devemos repensar o socialismo à luz das experiências do século XX, é preciso enfatizar que o socialismo do século XXI não é uma mecânica radicalização progressiva da democracia-liberal. Esta visão se aproxima não de Karl Marx, Lênin, Mao ou qualquer outro revolucionário, mas de Francis Fukuyama, o teórico que vislumbrou que, com a crise do “socialismo real” soviético, iríamos adentrar num período de “fim da história” e a democracia-liberal se tornaria o horizonte ontológico da humanidade.

Por mais paradoxal que seja isso, é normal escutar que a moeda corrente que circula hoje em todas as lutas e movimentos de libertação do mundo é o “desejo de democracia”. A expansão da democracia seria a única resposta para sair do estado de guerra e conflitos permanentes. Infelizmente, como pontua Zizek, sob este horizonte democrático-liberal as formas diversas de resistência ao capitalismo acabam por reproduzir os antagonismos que fundam o próprio capitalismo.

Essas “resistências” são formas de luta social que, sob a naturalização do Estado e do capital, acreditam que a democracia-liberal é espaço político vazio onde as multiplicidades de lutas poderiam conquistar diversas formas de barganha com uma suposta possibilidade de barrar os imperativos mais destrutivos do capitalismo. Essa crença se sustenta numa noção binária, entre democracia como força de resistência e globalização capitalista como força de opressão. A antiga idéia comunista do século XX sai de cena com a generalização dos novos “ideais democráticos” nos anos 1990 e 2000.

Para Alain Badiou, a democracia-liberal é hoje a principal organizadora do consenso. Em seu nome se reúne tanto o desmoronamento dos Estados socialistas, o suposto bem-estar dos nossos países e as cruzadas humanitárias do Ocidente. Tudo que é espontaneamente considerado como normal é democrático e assim vice-versa. Ela se encaixa no que ele chama de opinião autoritária: é proibido não ser democrata. Aqueles que não aspiram pela democracia são tidos supostamente como sujeitos patológicos.

Vale a impressão de Zizek: “Fidelidade ao consenso democrático” significa a aceitação do atual consenso liberal-parlamentar, que impede qualquer questionamento sério da forma como essa ordem democrático-liberal é cúmplice nos fenômenos que ela oficialmente condena, e, é claro, qualquer tentativa séria de imaginar uma ordem sócio-política diferente. Em suma, significa: diga e escreva o que quiser – desde que não se questione ou perturbe, na prática, o consenso político dominante. (...) No momento em que questionamos seriamente o consenso liberal existente, somos acusados de abandonar a objetividade científica em troca de posições ideológicas ultrapassadas. Esse é o ponto “leninista” do qual não se pode nem se deve abrir mão: hoje, a verdadeira liberdade de pensamento significa liberdade para questionar o consenso democrático-liberal “pós-ideológico” dominante – ou não significa nada (Zizek, 2005, p. 173, 174).

Nesse ponto não podemos mais nos enganar sobre o caráter estrutural que a democracia desempenha na sustentação da ordem simbólica capitalista. Hoje, o inimigo não é o Império e sim a democracia: “o que impede o questionamento radical do próprio capitalismo é exatamente a crença na forma democrática da luta contra o capitalismo” (Zizek, 2008, p. 420).

A expectativa angustiada de revolucionar o capitalismo com a exigência desesperada de fazer “alguma coisa” sob o horizonte democrático-liberal é falsa. A vontade de mudança revolucionária surge como uma ânsia, como um “não posso agir de outro modo”, ou não tem valor. A revolução autêntica realiza-se, por definição, como um “tem de”, não algo que “devamos fazer”, como um ideal pelo qual nos esforçamos para atingir, mas algo que é impossível não fazer, já que não podemos agir de outro modo. Estas formas de auto-sabotagem da esquerda ocorrem sob a forma de um “obedecer ao capital sem saber”. As sanções contra o comunismo e a revolução (“a história mostra que todas as revoluções acabaram em totalitarismo”, “não existem mais agentes sociais que fariam uma revolução comunista”, “o poder global é tão fragmentado que é impossível lutar contra ele”, “a luta por uma democracia de alta intensidade é o que nos resta” etc.) acabam por se distanciar de qualquer objetivo que vá além dos limites do próprio capitalismo, contendo, dessa forma, sua ação nos meandros da democracia-liberal, repetindo de forma ininterrupta o “fim da história” – por mais que o próprio Fukuyama já fale de fim do fim da história.

Até mesmo a forma mais avançada de Estado do sistema do capital – o Estado liberal-democrático com sua representação parlamentar e suas garantias democráticas formais e institucionalizadas de “justiça e imparcialidade” - fracassou em todas as promessas que a auto-legitimavam. Contra a postura fetichista que fala que o Estado se tornou um lugar vazio para que democraticamente todos os movimentos civis lutem pela hegemonia social, talvez seja necessário, mais do que nunca, avaliar novamente a apropriação revolucionária do Estado.

Afinal, por que aceitar que esse terreno costumeiramente considerado “burocrático”, “infértil” e “lento” deve ser deixado para o inimigo tão facilmente? Zizek também nos pergunta: por que a esquerda deveria respeitar sempre e incondicionalmente as regras formais do jogo democrático? Por que não deveria, em algumas circunstâncias, pelo menos, questionar a legitimidade do resultado de um procedimento democrático formal?

É claro que não estamos defendendo aquela parte da esquerda que muitas vezes ignora a democracia-liberal, considerando-a como uma mera fachada, cuja substituição pelo fascismo ou por uma ditadura militar é uma questão menor. É claro que, sendo necessariamente limitada e limitadora, no interior do capitalismo, a democracia não deve ser venerada ou fetichizada pelos socialistas e é de se lastimar que muitos socialistas transformem-se hoje, na prática, em zelosos sacerdotes da democracia-liberal. De qualquer forma, o valor da democracia política na ordem do capital reside nas possibilidades abertas para os trabalhadores e camadas populares se organizarem melhor politicamente e combaterem a hegemonia cultural e ideológica da burguesia (inclusive o consenso da via democrática de transformação do capitalismo).

A tarefa dos socialistas é fazer uma crítica permanente às limitações e falhas da democracia burguesa, à sua estreiteza e seu formalismo, às suas tendências e práticas autoritárias e reacionárias. Mais do que isso, a crítica socialista deve revelar sempre o caráter substantivamente não-democrático da sociedade burguesa: não são apenas os arranjos políticos que devem ser alvos de críticas sérias e convincentes, mas também a forma de exercício do poder arbitrário em todos os aspectos da vida - nas fábricas, canteiros de obras, universidades, na burocracia, nos escritórios, nas escolas, onde quer que o poder afete as pessoas. Nossa tarefa é questionar a crença generalizada na forma democrática da luta contra o capitalismo, apontando novas formas de ação coletiva.”



3. Quando Marx pregou a “Ditadura do Proletariado”, jamais referiu-se à “ditadura de um só partido”, como veio a acontecer na URSS e em todo o mundo do chamado “socialismo real” no século 20. Em 15 de fevereiro de 2009 publiquei um ensaio intitulado “De ditadura, contradições e variantes” em que explico este ponto de vista. Leia clicando no link:

3 comentários:

Joelma disse...

Simplesmente muito lúcido e bom este Fernando Marcelino, embora às vezes seja confuso ao embaralhar um pouco 'democracia' e 'democracia-liberal' o que nos faz ter que redobrar a atenção na leitura do texto.
Mas o que fica, sem dúvida, é o seu compromisso com o pensamento marxista.
Gostei demais. Aliás estou amando esta série sobre uma nova democracia, desatrelada do que o mundo burguês julgou chamar de forma distorcida de "democracia" - entre aspas, como você costuma dizer.

Mário disse...

Muito profunda e analítica esta matéria de Fernando Marcelino.
Ao contrário, acho que ele diferencia muito bem democracia de democrecia-liberal. Ele está de parabéns pelo brilhantismo de tudo o que escreveu.
E parabéns pra você também que o divulgou.

Anônimo disse...

Muito boa e lúcida esta matéria.
L.P.