Na Europa
medieval, os monarcas absolutistas ordenavam a tortura ou a execução dos
criminosos em praça pública, com um claro objetivo político, ou melhor,
biopolítico, diria Michel Foucault: tratava-se de propiciar um espetáculo,
tanto na acepção banal do termo criar cenas impactantes, de apelo visual, emocional
e afetivo – quanto no sentido de imprimir no imaginário de cada espectador o
temor face à possibilidade de, no futuro, ser ele o punido. O espetáculo
servia, em resumo, como entretenimento e advertência.
A Idade
Média ainda não foi superada no Brasil contemporâneo, onde os criminosos
continuam sendo expostos e humilhados em praça pública. Mas, claro, não todos
os criminosos, apenas aqueles que, pela cor de sua pele, por sua origem social
e/ou pela ideologia que defendem - ou que, pelo menos, parecem defender -
incorrem na ira do rei. Não há outra maneira de entender a fúria que se abateu
contra os réus condenados do mensalão. Um manifesto divulgado no dia 19 de
novembro, assinado por centenas de juristas, intelectuais, dirigentes sindicais
e de movimentos sociais resume um pouco do que foi o grande espetáculo:
“A decisão
do presidente do STF de mandar prender os réus da Ação Penal 470 no dia da
proclamação da República expõe claro açodamento e ilegalidade. Mais uma vez,
prevaleceu o objetivo de fazer do julgamento o exemplo no combate à corrupção.
Sem qualquer razão meramente defensável, organizou-se um desfile aéreo,
custeado com dinheiro público e com forte apelo midiático, para levar todos os
réus a Brasília. Não faz sentido transferir para o regime fechado, no presídio
da Papuda, réus que deveriam iniciar o cumprimento das penas já no semiaberto
em seus estados de origem. Só o desejo pelo espetáculo justifica. Tal medida,
tomada monocraticamente pelo ministro relator Joaquim Barbosa, nos causa
profunda preocupação e constitui mais um lamentável capítulo de exceção em um
julgamento marcado por sérias violações de garantias constitucionais.”
Não foi a
fúria da justiça contra o transgressor que se abateu sobre os réus: foi a fúria
da Casa Grande contra a Senzala, mas numa situação à primeira vista esdrúxula,
repleta de contradições e paradoxos, dificilmente compreensível, mesmo para um
observador que conheça razoavelmente a história do Brasil. Os casos mais
espetaculares e dramáticos de fúria punitiva, explorados à exaustão por uma
mídia sedenta de sangue e vingança, envolveram os três principais réus que, não
por acaso, ocuparam postos importantes no PT - José Dirceu, José Genuíno e
Delúbio Soares – partido ao qual é filiada a presidente Dilma Rousseff.
Joaquim
Barbosa, o seu principal e mais furioso algoz – que agiu com requintes sádicos,
no caso de José Genoíno - foi integrado ao STF por ninguém menos que o então
presidente Luís Inácio Lula da Silva. E os réus, por sua vez, estão longe de
representar uma ameaça ao capital: ao contrário, sob sua direção, o PT
curvou-se às determinações dos
banqueiros e sufocou o quanto pode a organização independente dos
trabalhadores. Fiéis escudeiros dos patrões, os réus não deveriam ser objeto de
um ódio tão grande.
Tudo, enfim,
parece estar fora de lugar nessa história, que mais se assemelha a um conto
narrado por um louco, repleto de sons e fúria, sem sentido algum – para tomar
de empréstimo a definição que Macbeth dá ao ato de existir. Mas não é assim.
Uma lógica muito sólida e implacável costura os fatos, até compor um mosaico
perfeitamente coerente e legível.
Em primeiro
lugar, a expressão da burguesia como classe econômica – a detentora dos meios
de produção – nem sempre coincide com a expressão da burguesia como produtora
de ideologia. Os patrões, sem dúvida, estão contentes com o PT. Quando se
tratou de gerir os negócios burgueses, o partido que nasceu como porta-voz da
Senzala aceitou o lugar a ele designado pela Casa Grande. “Lula é o cara”, diz
Barack Obama. Mas os centros produtores da ideologia burguesa odeiam o PT,
apesar de tudo. Os arrogantes, reacionários, conservadores e podres senhores de
engenho simplesmente nunca aceitaram a ideia de entregar o Planalto a um
retirante nordestino ou a uma ex-integrante da guerrilha. Ter o PT como capataz
eficiente do latifúndio é uma coisa; aceita-lo como convidado à mesa principal
é outra, bem diferente. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Segundo, por
uma série bem conhecida de circunstâncias históricas, o STF foi levado à
condição de promover contra o PT a guerra que os partidos burgueses foram
incapazes de travar no âmbito do Congresso. Dado que a burguesia ideológica
encontra-se destituída de seus partidos políticos próprios – reduzidos à mísera
insignificância do PSDB e do DEM -, o STF foi levado a agir como o carrasco do
rei, para lembrar à ralé miúda o que acontece quando ela começa a acreditar que
deixou a Senzala para se tornar parte da Casa Grande. O fato de o principal
feitor ser negro, de berço bastante pobre e “amigo” de Lula só acrescenta
ironia aos fatos, mas não terá sido nem a primeira e certamente nem a última
vez que alguém devota ódio semelhante às suas próprias origens sociais.
Por fim, o
PT paga o preço da conciliação de classe. A impotência política frente aos
ataques do STF tem a sua raiz no processo de desorganização que o próprio PT
criou, fazendo da CUT uma reunião de eunucos sindicais e de boa parte dos
movimentos sociais meras plateias que, vez ou outra, encenam algumas críticas
ao governo federal. Isso tudo foi claramente demonstrado pela “jornadas de
junho”, que dispensaram solenemente o concurso do PT e da CUT, quando não os
hostilizaram abertamente.
Como
resultado, as características mais arcaicas do estado brasileiro manifestam sua
força e impõem suas regras e formas à esfera pública. O rei estala a chibata.
Um comentário:
Hoje mesmo, Roseana Sarney declarando que não existe oligarquia no Maranhão! Só rindo pra não chorar!
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