Tem sido difícil disponibilizar um tempinho
para escrever. Primeiro por falta de tempo mesmo... Em segundo porque estou em
meio a crises de coluna que fazem com que o que me resta de tempo disponível,
tem sido para procurar descansar das dores. Ossos da idade!
Mas às vezes, me lembro de alguma postagem
antiga que mereça uma republicação. Como esta a seguir.
Havia
um sujeito cujo apelido era “Filósofo”. Meio baixinho, o cabra circulava pelas
noites cariocas, sempre nos bares freqüentados pela esquerda, a “festiva” (1), em particular. O dito
personagem, lá pras tantas, já de pileque subia numa cadeira e fazia discursos
“inflamados”. No final, todos aplaudiam.
Mas,
como o “Filósofo” havia todo um folclore que pairava pelas madrugadas da
cidade. Quando falei do Cinerama, o barzinho que ficava ao lado do cinema Paissandu,
lembrei-me das figuras que iam sempre, mas sempre mesmo com “Ulisses” ou “O
Capital” debaixo do braço. “Ulisses” era a grande coqueluche da época. Em
tradução da Civilização Brasileira, a leitura do livro de James Joyce era quase
que obrigatória. Acontece que a simbologia do autor em sua narrativa,
embaralhava demais corações e mentes nem sempre preparadas para compreendê-la.
O resultado é que virou moda mesmo. Poucos entendiam, mas todos discutiam. A
pergunta “... você já leu Ulisses?” era das mais comuns naqueles finais dos
anos 60.
Quem
carregava “O Capital” sob o suvaco, naturalmente queria dizer e mostrar ao
público circunvizinho que entendia Marx, e era íntimo de suas ideias.
Tudo
isto contado assim, parece simples. Mas, olha, a coisa era pra lá de
complicada. Porque no auge das bebedeiras, chegavam a dar medo algumas reações
e discursos numa época de repressão e violência com os militares no poder.
Certamente que eles (os milicos) encaravam tudo aquilo como uma espécie de “gueto”,
e, certamente vigiavam, somente vindo a tomar medidas repressoras mais
violentas à medida que sentissem a coisa extrapolar a área circunscrita, e,
logicamente demarcada da “porralouquice” etílica, de uma esquerda que falava
para a própria esquerda, num círculo vicioso, quase um moto contínuo.
Mas,
além do Cinerama, ia-se muito ao Lamas. Não muito longe dali, uns três longos
quarteirões e se chegava lá, em
pleno Largo do Machado, entre a garagem dos bondes da Light e do cinema São Luis. As caras
eram as mesmas, mas o lugar era muito mais charmoso. Existiram poucos bares
como o Lamas. Pensando bem, muito mais do que isso, um restaurante. E o melhor
filé (2) da cidade.
Na
frente, a tabacaria e a banca de frutas. Frutas de todos os tipos e origens,
algo precioso e colorido. Na tabacaria, desde o Continental (sem filtro) até o
mais sofisticado fumo para cachimbos Dunhill,
sem contar os charutos cubanos. Mas, detalhe, ali você também comprava um
Pimentel ou uma cigarrilha Talvis da vida.
No meio
o restaurante, café e bar. Não era enorme, mas ao adentrar sentia-se o peso da
história. Naquelas cadeiras (hoje estariam com quase 140 anos de existência), sentaram
os traseiros, em outros tempos, Getúlio Vargas, Monteiro Lobato, Oswaldo Aranha
ou Machado de Assis, personalidades que fizeram história na política e na cultura
deste país.
Nos
fundos, passando uma porta de molas no melhor estilo “saloon” de faroeste, a maior sala de sinuca que eu conheci. Pelo
menos que eu conheci... E o mais engraçado, ou até desgraçado, o banheiro
ficava após aquela gigantesca sucessão de mesas de bilhar. Triste é que quando
se chegava lá, às vezes ainda tinha que se enfrentar uma fila para tirar a
bendita “água do joelho”.
Não me
lembro de ter saído do Lamas sóbrio, a não ser depois que casei e fomos algumas
vezes jantar; algo bem mais civilizado. Naqueles tempos de antanho, geralmente comprava
uma maçã, saia trôpego do local, e, sabe-se lá como, acordava em casa no dia
seguinte. Porém, foram longas e acirradas discussões sobre o futuro do Brasil e
do mundo. Muita polêmica com o pessoal do “partidão” a ouvir discursos do
“Filósofo” em cima de uma cadeira naquele burburinho de vozes que só as casas
noturnas teem.
Havia
também os bares do Leblon e Ipanema. O Degrau, o Alvaro’s, o Jangadeiro, o
Zepellin. Mais uma vez, as mesmas caras, os mesmos debates as mesmas propostas
de uma época de filósofos e filosofadas.
Uma
época rica em minha memória.
1. Esquerda “festiva” era aquela que vivia
apenas de discurso, geralmente não militava, e se opunha ao regime e/ou sistema
de forma descompromissada, em bares e festinhas.
2. O Lamas mudou-se para a rua Marques de
Abrantes, quando o prédio foi demolido para a construção do metrô. Até hoje
serve o seu filé, que continua famoso, mas que, cá entre nós, eu acho que não é
mais como aquele. Ou será puro romantismo?
5 comentários:
Cheguei a conhecer o velho Lamas no Largo do Machado. Quando ao outro, menos charmoso, fui várias vezes, principalmente nos anos 80 e 90, quando ia ao Rio com mais assiduidade. Um registro que é, na verdade, um documento de uma época, que o vento, implacável, já levou. 'Tempus fugit'
Mas antes lembrar de alguma coisa boa com esta. Muito interessante ler recordações de um tempo que não vivi, de forma tão presente!
Alias, estivemos lá, quando veio ao Rio em 2009, lembra-se?
Infelizmente para almoçar numa véspera de natal... Os garçons doidinhos para sair!
Só me lembro de um tio meu falando o quanto o velho Lamas era melhor do que o atual.
Afinal, uma "velha" história unânime...
Gostei muito da postagem... e dos 'ossos do ofício'!
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