domingo, 19 de janeiro de 2014

Uma pensata de domingo em tempos filosóficos


Tem sido difícil disponibilizar um tempinho para escrever. Primeiro por falta de tempo mesmo... Em segundo porque estou em meio a crises de coluna que fazem com que o que me resta de tempo disponível, tem sido para procurar descansar das dores. Ossos da idade!
Mas às vezes, me lembro de alguma postagem antiga que mereça uma republicação. Como esta a seguir.

Havia um sujeito cujo apelido era “Filósofo”. Meio baixinho, o cabra circulava pelas noites cariocas, sempre nos bares freqüentados pela esquerda, a “festiva” (1), em particular. O dito personagem, lá pras tantas, já de pileque subia numa cadeira e fazia discursos “inflamados”. No final, todos aplaudiam.

Mas, como o “Filósofo” havia todo um folclore que pairava pelas madrugadas da cidade. Quando falei do Cinerama, o barzinho que ficava ao lado do cinema Paissandu, lembrei-me das figuras que iam sempre, mas sempre mesmo com “Ulisses” ou “O Capital” debaixo do braço. “Ulisses” era a grande coqueluche da época. Em tradução da Civilização Brasileira, a leitura do livro de James Joyce era quase que obrigatória. Acontece que a simbologia do autor em sua narrativa, embaralhava demais corações e mentes nem sempre preparadas para compreendê-la. O resultado é que virou moda mesmo.  Poucos entendiam, mas todos discutiam. A pergunta “... você já leu Ulisses?” era das mais comuns naqueles finais dos anos 60.

Quem carregava “O Capital” sob o suvaco, naturalmente queria dizer e mostrar ao público circunvizinho que entendia Marx, e era íntimo de suas ideias.

Tudo isto contado assim, parece simples. Mas, olha, a coisa era pra lá de complicada. Porque no auge das bebedeiras, chegavam a dar medo algumas reações e discursos numa época de repressão e violência com os militares no poder. Certamente que eles (os milicos) encaravam tudo aquilo como uma espécie de “gueto”, e, certamente vigiavam, somente vindo a tomar medidas repressoras mais violentas à medida que sentissem a coisa extrapolar a área circunscrita, e, logicamente demarcada da “porralouquice” etílica, de uma esquerda que falava para a própria esquerda, num círculo vicioso, quase um moto contínuo.

Mas, além do Cinerama, ia-se muito ao Lamas. Não muito longe dali, uns três longos quarteirões e se chegava lá, em pleno Largo do Machado, entre a garagem dos bondes da Light e do cinema São Luis. As caras eram as mesmas, mas o lugar era muito mais charmoso. Existiram poucos bares como o Lamas. Pensando bem, muito mais do que isso, um restaurante. E o melhor filé (2) da cidade.

Na frente, a tabacaria e a banca de frutas. Frutas de todos os tipos e origens, algo precioso e colorido. Na tabacaria, desde o Continental (sem filtro) até o mais sofisticado fumo para cachimbos Dunhill, sem contar os charutos cubanos. Mas, detalhe, ali você também comprava um Pimentel ou uma cigarrilha Talvis da vida.

No meio o restaurante, café e bar. Não era enorme, mas ao adentrar sentia-se o peso da história. Naquelas cadeiras (hoje estariam com quase 140 anos de existência), sentaram os traseiros, em outros tempos, Getúlio Vargas, Monteiro Lobato, Oswaldo Aranha ou Machado de Assis, personalidades que fizeram história na política e na cultura deste país.

Nos fundos, passando uma porta de molas no melhor estilo “saloon” de faroeste, a maior sala de sinuca que eu conheci. Pelo menos que eu conheci... E o mais engraçado, ou até desgraçado, o banheiro ficava após aquela gigantesca sucessão de mesas de bilhar. Triste é que quando se chegava lá, às vezes ainda tinha que se enfrentar uma fila para tirar a bendita “água do joelho”.

Não me lembro de ter saído do Lamas sóbrio, a não ser depois que casei e fomos algumas vezes jantar; algo bem mais civilizado. Naqueles tempos de antanho, geralmente comprava uma maçã, saia trôpego do local, e, sabe-se lá como, acordava em casa no dia seguinte. Porém, foram longas e acirradas discussões sobre o futuro do Brasil e do mundo. Muita polêmica com o pessoal do “partidão” a ouvir discursos do “Filósofo” em cima de uma cadeira naquele burburinho de vozes que só as casas noturnas teem.

Havia também os bares do Leblon e Ipanema. O Degrau, o Alvaro’s, o Jangadeiro, o Zepellin. Mais uma vez, as mesmas caras, os mesmos debates as mesmas propostas de uma época de filósofos e filosofadas.

Uma época rica em minha memória.

1. Esquerda “festiva” era aquela que vivia apenas de discurso, geralmente não militava, e se opunha ao regime e/ou sistema de forma descompromissada, em bares e festinhas.

2. O Lamas mudou-se para a rua Marques de Abrantes, quando o prédio foi demolido para a construção do metrô. Até hoje serve o seu filé, que continua famoso, mas que, cá entre nós, eu acho que não é mais como aquele. Ou será puro romantismo?

5 comentários:

André Setaro disse...

Cheguei a conhecer o velho Lamas no Largo do Machado. Quando ao outro, menos charmoso, fui várias vezes, principalmente nos anos 80 e 90, quando ia ao Rio com mais assiduidade. Um registro que é, na verdade, um documento de uma época, que o vento, implacável, já levou. 'Tempus fugit'

Joelma disse...

Mas antes lembrar de alguma coisa boa com esta. Muito interessante ler recordações de um tempo que não vivi, de forma tão presente!

Jonga Olivieri disse...

Alias, estivemos lá, quando veio ao Rio em 2009, lembra-se?
Infelizmente para almoçar numa véspera de natal... Os garçons doidinhos para sair!

Mário disse...

Só me lembro de um tio meu falando o quanto o velho Lamas era melhor do que o atual.
Afinal, uma "velha" história unânime...

Misael disse...

Gostei muito da postagem... e dos 'ossos do ofício'!