O filósofo marxista belga François Houtart, em entrevista durante congresso do MST, analisa os motivos da crise global, o impacto das recentes mobilizações de massa na sociedade e a importância da integração latinoamericana para o continente. Confira a entrevista:
Você afirma que as diversas crises que
vivemos estão interligadas. O que conecta essas crises?
O que liga as crises é a lógica do sistema
capitalista, que privilegia o valor de troca, dizendo que tudo deve ser
mercadoria para contribuir na ganância e acumulação do capital.
Essa lógica se aplica a todos os âmbitos da vida
humana, influindo nas políticas agrárias, industriais, na relação com a
natureza e submetendo tudo à lógica de reprodução do capital.
Estamos numa crise global, não só
geograficamente, mas uma crise de sistemas, na relação com a natureza, do
sistema alimentar, energético, climático etc.
A crise não é somente financeira ou econômica, é
geral, e uma das coisas novas é a crise dos ecossistemas e do clima. O
capitalismo desregula o equilíbrio entre a natureza e seres humanos.
O ritmo de reprodução do capital é completamente
diferente do da natureza, e como o capital impõe seu ritmo sobre a natureza,
isso gera catástrofes naturais.
Os países socialistas também destruíram a
natureza como no capitalismo. Porque o socialismo real também tinha esta visão
de um progresso infinito e uma terra inesgotável. Por isso, nos últimos anos se
desenvolveu o ecossocialismo em países da Europa, da América Latina, Venezuela
em particular, com várias experiências de um modelo que respeite a natureza.
É um problema mundial. O capitalismo
monopolístico está hegemonizando grande parte da economia latinoamericana, e a
concepção de desenvolvimento dos líderes políticos, mesmo nos governos ditos
progressistas, não mudou.
Qual é esta concepção?
Há alguns anos moro no Equador, e Rafael Correa,
que é meu amigo e foi meu aluno, tem como concepção de desenvolvimento a
modernização do estado. Muito bem, modernizar a economia em essência é
bom. Mas o que significa isso para ele? Significa investir em agrocombustíveis,
monocultivos, transgênicos.
No Equador também há mais mineração, exploração
do petróleo, grandes vias. Essa é a visão de desenvolvimento, que não pensa na
realidade do país, no camponês, nos povos indígenas, ou como construir pouco a
pouco um desenvolvimento mais respeitoso da natureza e dos povos.
Esses fatores vão criar mais e mais conflitos,
por alguns motivos: primeiro por parte do povo, que não compartilha dessa
concepção de desenvolvimento, mas não tem força política. Segundo, o
esgotamento deste modelo. Já se vê aqui no Brasil, na Argentina, que o modelo
se esgotou, não é sustentável.
Além disso, os novos regimes latinoamericanos se
baseiam em um consenso popular. Houve um melhoramento real da situação dos mais
pobres, mas dentro de uma concepção relativamente assistencialista de programas
ao combate à pobreza, programas que são bem organizados, mas que não fazem do
povo um ator, e sim um cliente.
Assim, o consenso é muito frágil, pois se as
condições econômicas da economia mundial mudam, se o preço das matérias primas
ou das commodities baixam, isso afeta
a possibilidade dos governos de ter políticas sociais, o que põe o consenso em
perigo.
Como as recentes manifestações de jovens
pelo mundo se inserem nesse cenário?
Essas mobilizações massivas são fruto das
contradições do capitalismo. Claro que o Occupy
é diferente dos indignados ou das manifestações no Brasil. Mas apesar de
serem originadas da condição estrutural fundamental do capitalismo, a
consciência desses manifestantes ainda é bastante superficial, não vai às
causas do problema.
São reações justas, mas superficiais, pelo fato
também que os protestos são uma reação mais de classe média ou média baixa
urbana, não indo à raiz do problema. Por essa razão, não exercem um tipo de
ação eficaz contra o sistema.
Esses protestos têm uma concepção anarquista,
individual, e com pouca visão da necessidade de organização e ação política.
Isso pode mudar, mas até agora, por exemplo na Europa, é muito claro que não
houve nenhum impacto político concreto, a não ser reforçar a direita, o que não
era a intenção.
É um sintoma importante, mas que não dá realmente
uma resposta. As respostas vêm com análises mais claras das raízes do problema,
uma formação e uma organização, senão é relativamente fácil de marginalizar
esse tipo de protestos.
A não ser que a repressão a essas manifestações
seja muito violenta para comover a sociedade, geralmente elas são reprimidas e
não afetam a ordem.
É preciso que estes movimentos espontâneos se
formem teoricamente, analisem as coisas mais à fundo e tenham juízo político
mais adequado. Isso pode ajudar a uma transformação futura.
Qual deveria ser o papel das organizações
de esquerda e movimentos sociais nessas mobilizações?
Há uma certa distância dos movimentos sociais com
essas expressões de protesto novas. Me parece que é um pouco difícil dos
movimentos sociais entenderem as manifestações, e os manifestantes não querem
essa aproximação com medo de “serem dominados ou se perder”.
E como é um movimento urbano, é difícil para
muitas entidades intervirem. Os sindicatos perderam muito de seu caráter
revolucionário, e não vão poder trabalhar com estes jovens, pois isso é uma
coisa nova.
Acho que talvez elementos jovens de um movimento
mais radical, como o MST, possam ter um certo encontro com esses jovens, para
ajudar a entender melhor a situação social que nos encontramos, e também fazer
com que esses jovens entendam a situação do campo.
As organizações devem pensar em novas
formas de luta e atuação?
Sim. Pensar nisso é uma reação contra a
burocratizção dos movimentos sociais. Esses protestos são uma chance para as
organizações se autocriticarem frente ao problema de organização, e é necessário
para entender esses novos fenômenos que ocorrem agora.
É um processo que pode ajudar a uma transformação
interna dos movimentos organizados, pois estes jovens chegam com novas ideias e
valores que não devem ser condenados.
Você é um grande defensor da integração
latinoamericana. É possível hoje realizar essa integração, e como ela poderia
alterar essa conjuntura de crises?
Devemos ser realistas. A Comunidade dos Estados
Latinoamericanos e Caribenhos (Celac) é um milagre de Chávez, por conseguir
reunir países com ideias tão opostas como México, Chile e Bolívia.
Devemos conhecer os limites dessas organizações
latinoamericas que existem, mas é possível tomar várias medidas importantes.
Por exemplo, seria possível fazer regras em conjunto no setor da mineração.
Não vamos impedir as transnacionais e a China de
explorar minas, pelo menos por ora, mas podemos colocar regras. No Equador, as
mineradoras canadenses se retiraram. Foram ao Peru porque há menos regras. Se
existisse um acordo latinoamericano de regras frentes as transnacionais de
mineração, isso seria considerado uma força. O Equador sozinho não é
nada.
Organismos como a CELAC não têm muito poder. A
União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul) são
mais expressivos. A ALBA seria o ideal, pois é a única organização com um
pensamento pós-capitalistas.
As outras organizações são pós neoliberais. A
Alba tem princípios diferentes, mas é muito marginal. Tem 10 países, e 5 são do
Caribe. A Alba não tem poder grande, e sua tendência, com Equador, Nicarágua,
Bolívia, é ser menos anticapitalista.
Pois como eu disse, esses governos são pós
neoliberais, mas não pós capitalistas. Ao mesmo tempo, penso que devemos
insistir sobre a importância da integração e dos organismos, não sobrevalorizando
ou deslegitimando seu papel.
Como você avalia a decisão da Organização das
Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) de considerar 2014 o ano
da agricultura familiar?
Como todo organismo dentro das nações unidas, a
FAO ela não vai ser revolucionária. A influência das forças econômicas e
políticas nesse órgão é tal que a relação de forças não é a favor das ideias
mais avançadas.
Mas devemos sempre aproveitar. É muito bom que
uma parte da FAO apoie iniciativas de agricultura campesina. Em outubro
fizemos uma reunião de agricultura camponesa na Bolívia, que contou com 40
especialistas e apoio dos movimentos camponeses e indígenas. O representante da
FAO esteve presente e foi muito positivo.
O Papa Francisco também tem declarado
apoio aos camponeses e à luta pela terra...
Todo novo papa é uma mudança séria. Mas não
podemos esperar que um grupo de cardeais muito conservadores pudesse eleger um
papa revolucionário, era impossível. Mas elegeu o melhor entre os piores
(risos).
Ele não vai pregar a teologia da libertação, mas
é pastor, quer uma proximidade afetiva com os movimentos e os pobres, isso é
uma grande mudança. A adoção do nome de Francisco, para um jesuíta é um passo
forte.
É um sinal positivo. Podemos esperar que ele abra
espaços, como esta reunião dos movimentos sociais e dos mais pobres em Roma. É
positivo, mas não podemos esperar uma mudança revolucionária. Há sinais que
demonstram o contrário, como eleger o cardeal de Honduras [Oscar Rodríguez
Madariaga] como homem chave da reforma da igreja.
Por que?
O cardeal tomou posição a favor do golpe militar,
e é odiado pelos movimentos sociais. Ele é um homem da oligarquia tradicional,
apesar de um discurso muito progressista e anticapitalista, suas práticas
internas são problemáticas. Ele ser o eixo fundamental da reforma da igreja é
um problema.
Alguns sinais desse tipo mostram uma ambiguidade,
especialmente política. Os discursos do papa são anticapitalistas, mas contra o
capitalismo selvagem, o que significa que há um capitalismo civilizado.
É típico da doutrina social da igreja, mas não da
teologia da libertação, que analisa a sociedade em termos de classes sociais. A
doutrina da igreja prega a união e colaboração de todos para chegar a um bem
comum, sem ver a oposição estrutural das classes sociais.
Se condena o capitalismo mais pelos seus efeitos
que pela sua lógica. Mas não devemos ser pessimistas, devemos estar felizes de
que há mudanças e estar presentes nos espaços que se abrem, porque às vezes
esses espaços podem ser mais importantes do que eles pensam.
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