David Harvey
afirma: nova oligarquia controla riquezas globais. Para superá-la, é preciso
compreender que Revolução é processo, não evento.
Um dos mais
influentes pensadores marxistas da atualidade, o geógrafo britânico David
Harvey esteve no Brasil em novembro para divulgar o lançamento de seu livro Os
limites do capital. Escrita há mais de trinta anos, a obra ganhou sua
primeira versão em português. Pioneiro em sua análise geográfica da dinâmica de
acumulação capitalista descrita por Marx, o livro, assim como grande parte da
obra de Harvey, tornou-se mais relevante para entender os efeitos da exploração
econômica dos espaços urbanos e suas consequências para os trabalhadores, ainda
mais numa conjuntura marcada pela eclosão de protestos contra as condições de
vida nas cidades, não só no Brasil, mas também na Europa, América do Norte e
África. Nesta entrevista, Harvey faz uma análise dos levantes urbanos que ocorrem
em todo mundo, aponta que não será possível atender às reivindicações por meio
de uma reforma do capitalismo, e defende: é preciso começar a pensar em uma
sociedade pós-capitalista.
Os limites do capital foi escrito há mais de 30 anos.
Desde então o capitalismo sofreu mudanças profundas. Qual é a atualidade dessa
obra para entender o modelo de acumulação capitalista hoje?
O livro
explora a teoria de Marx sobre acumulação de capital para entender as práticas
de urbanização ao redor do mundo em vários lugares e momentos históricos
diferentes. Minha investigação sobre as ideias de Marx se estenderam para uma
análise de coisas como a renda fundiária, preços de propriedades, sistemas de
crédito.
Uma coisa
curiosa aconteceu: a análise de Marx era sobre o capitalismo praticado no
século 19. Na época em que comecei a escrever Os limites do capital, havia
muitos aspectos do mundo ao meu redor que não se encaixavam com a descrição de
Marx: tínhamos um Estado de Bem-estar Social, os Estados estavam envolvidos na
economia de diferentes formas, havia arranjos de seguridade social e movimentos
sindicais fortes em muitos países. Mas aí veio a chamada contrarrevolução
neoliberal depois dos anos 1970, com Margareth Thatcher, Ronald Reagan, as
ditaduras na América Latina, e o capitalismo regrediu para sua forma do século
19. Por exemplo, houve o desmantelamento de muito da rede de seguridade social
em boa parte da Europa e América do Norte; o capital se tornou muito mais feroz
em sua relação com movimentos trabalhistas; as proteções que vinham de Estados
que eram em algum grau influenciados por movimentos políticos de esquerda foram
desmanteladas em boa parte do mundo. O que vimos desde os anos 1970 é um
aumento da desigualdade social, que é precisamente o que Marx disse que aconteceria
caso adotássemos um sistema de livre mercado. Adam Smith postulava que se
tivéssemos um livre mercado seria melhor para todos. O que Marx mostra no O
Capital é que quanto mais perto de um livre mercado mais provável é que os
ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres mais pobres. E essa tem sido a
tendência por grande parte do mundo desde os anos 1970 por conta do
neoliberalismo.
De uma
maneira curiosa, por essa razão, Marx se tornou mais relevante para entender o
mundo hoje do que era na época em que escrevi o livro. Ao mesmo tempo, muitas
das lutas que vemos ao nosso redor agora são lutas urbanas em vez de lutas
baseadas em unidades fabris, de modo que ligar a dinâmica do que Marx descrevia
com a dinâmica da urbanização se tornou mais relevante.
E o papel dos centros urbanos na dinâmica de acumulação
capitalista, como mudou ao longo desse período?
O capital
produz constantemente excedentes, e uma das coisas que aconteceu é que a cidade
se tornou um local para a absorção de capital excedente. Muito desse dinheiro
foi para construção de estruturas, em alguns casos para a construção de
megaprojetos. O capital adora esses megaprojetos, como os envolvidos em Copas
do Mundo e Olimpíadas, porque são uma ótima oportunidade para gastar muito
dinheiro na construção de novas infraestruturas, o que levanta uma questão
interessante: essas novas infraestruturas acrescentam algo à produtividade do
país? Se você for para a Grécia, vai ver um país essencialmente falido, com
esses estádios vazios ao redor, que foram construídos para um evento que durou
algumas semanas. A maioria dos lugares que sediam esses eventos tem problemas
financeiros sérios depois mas, no processo, as empreiteiras, construtoras e
financiadoras ganham muito dinheiro. Ao longo dos últimos 40 anos, o capital
excedente foi cada vez mais canalizado para mercados de ativos, como os
direitos de propriedade intelectual, em que você investe no controle de
patentes e vive da renda, sem fazer nada. E, da mesma forma, as cidades, as
propriedades urbanas, se tornaram ativos muito lucrativos. O que vemos hoje nos
mercados imobiliários é que é quase impossível para a maioria da população
encontrar um lugar para viver que não absorva mais da metade de sua renda. Esse
é um processo mundial: tivemos uma crise na habitação nos Estados Unidos, na
qual o mercado de propriedade entrou em colapso. Em Nova York, Los Angeles e
São Francisco os preços estão subindo, e vemos o mesmo fenômeno na Europa:
tente achar um lugar para morar em Londres, em Paris. Mais e mais dinheiro está
sendo extraído das pessoas na forma de aluguel. Isso é interessante, porque há
um deslocamento da exploração do trabalho e da produção para explorar as
pessoas em termos de extração de aluguel de seu local de moradia. O capital
consegue inclusive fazer concessões aos trabalhadores e recapturar esse
dinheiro que o trabalhador ganha aumentando o valor do aluguel.
Você trabalha atualmente em um livro que lista 17 contradições do
capital: pode falar um pouco sobre elas a partir da crise de 2008?
A forma como
as contradições funcionam é que elas estão interconectadas. O que houve em 2008
foi uma serie de contradições: entre valor de uso e de troca, entre a forma do
dinheiro e o valor que ele deveria representar e entre aspectos da propriedade
privada e o poder do Estado. Todas essas contradições se juntaram para criar um
ambiente propício ao acontecimento da crise na habitação. Por exemplo: você
olha uma casa, e há uma contradição entre encará-la em termos de valor de uso e
valor de troca. Em algum ponto a casa se torna uma forma dupla de valor de
troca, porque as pessoas que compram a casa a veem como uma forma de poupança.
E mais tarde eles compram uma casa como uma forma de investimento, uma forma de
ganhar dinheiro. Em vez de comprar uma casa para morar, as pessoas compram
casas para reformá-las e vendê-las, para ganhar dinheiro em cima disso. Então
se o mercado imobiliário está em alta, é possível ganhar muito dinheiro muito
rápido com esse processo, e o resultado disso é que as vizinhanças se tornaram
instáveis, porque ninguém mora e cuida do local, só usam a casa para ganhar
dinheiro. E ao mesmo tempo, há muita especulação para tentar elevar o valor da
casa por meio de ajustes superficiais, o que não é um problema em si, até que o
mercado imobiliário despenque, porque as coisas não podem subir para sempre. Se
começa a cair, todo mundo vende rapidamente e você tem o crash que vimos nos
Estados Unidos em 2007-2008, e também na Espanha, Irlanda e em muitas partes do
mundo. Essa tensão entre valor de troca e de uso é importante, mas é importante
olharmos também para a forma como tudo é monetarizado. Há uma forma
interessante com que o dinheiro começa a gerar mais dinheiro, esse aspecto
especulativo do dinheiro. Eu poderia ter uma casa em Nova York sem a menor
ideia de quem é o proprietário porque as hipotecas são divididas em pedacinhos
e uma parte dela está na Alemanha, outra em Hong Kong e ninguém consegue
descobrir de quem é a dívida. Isso é uma ficção que aconteceu por causa da
maneira como o sistema monetário evoluiu.
A outra
contradição é entre o Estado e a propriedade privada. O que vemos é que, em
países como os Estados Unidos, o Estado vem incentivando a compra de casa
própria nos últimos 40 anos, criando novas instituições financeiras para apoiar
a aquisição da casa própria, dando isenções de impostos se você é proprietário,
a um ponto que todo mundo tem que se tornar um proprietário, quando isso não é
economicamente racional em mercados especulativos desse tipo. Entre quatro e
seis milhões de pessoas foram despossuídas de suas casas nos Estados Unidos
através dessa crise de execução de hipotecas. Quando perguntaram para as
pessoas por que elas achavam que isso tinha acontecido, quem elas culparam?
Elas mesmas. É exatamente o que os neoliberais dizem que você deve fazer.
Vivemos num mundo em que o modo de pensar neoliberal se tornou profundamente
arraigado: essa ideia de que nós como indivíduos somos responsáveis por sermos
pobres. Como dizer para as pessoas que não é culpa delas, que é um problema sistêmico?
É como o capital funciona, especialmente na sua forma de livre mercado, e se
você é pobre você é um produto deste sistema. A única maneira de solucionar
isso é mudando o sistema, o que quer dizer que é preciso tornar-se
anticapitalista.
Na sua avaliação, as manifestações que acontecem no Brasil apontam
uma insatisfação da população brasileira aos efeitos concretos dessas
contradições?
Eu acho que
em vários lugares do mundo atualmente você vai encontrar um sentimento de
profunda insatisfação. Há um grande descontentamento, mas acho que em nenhum
desses lugares emergiu um movimento consolidado em termos de um entendimento de
para onde esse descontentamento deve ser canalizado e o que deve ser feito para
mudar esse quadro. Como resultado, o que você vê são essas erupções contínuas
ao redor do mundo. Eu vejo que há um sentimento de descontentamento mundial que
não está sintetizado, mas é interessante notar como ele entra em erupção e
ninguém espera.
Ninguém
esperava o que aconteceu no Brasil, foi uma surpresa. Ninguém esperava o que
aconteceu na Praça Taksim, em Istambul, em Estocolmo, em Londres. O que se vê é
um padrão global de expressões de descontentamento, que não localizaram o
problema central, mas que são indicações de um descontentamento profundo com a
maneira como o mundo caminha. Para mim, a melhor forma de se analisar isso é
olhar quão bem o capital está indo. A maneira mais simples de ilustrar isso é
olhando para a desigualdade de renda. Dados de vários países ao redor do mundo
mostram que os 2% de maior renda entre a população saíram da crise muito bem e
na verdade ganharam muito dinheiro com ela, enquanto o padrão de vida do resto
encolheu.
Isso varia
de um país para outro, mas dados da Oxfam apontam que os 100 maiores
bilionários do mundo aumentaram sua riqueza em US$ 240 bilhões só em 2012. O
número de bilionários aumentou dramaticamente nos últimos cinco anos, não só
nos Estados Unidos: esse número dobrou na Índia nos últimos três anos, há
muitos bilionários no Brasil, o mais rico do mundo é Carlos Slim, do México, há
bilionários surgindo na Rússia, na China. Os dados mostram que o capital está
indo extremamente bem.
É possível atender às reivindicações das ruas com uma reforma no
capitalismo?
As opiniões
variam na questão de o quanto podemos extrair das dificuldades atuais e ainda
termos um capitalismo dinâmico. Minha análise é que será muito difícil desta
vez. Certamente é possível acabar com alguns dos excessos do capitalismo
neoliberal e certamente podemos ter um tipo de capitalismo mais socialmente
justo, com redistribuição modesta de riqueza das classes abastadas para as
classes médias e baixas. Há possibilidades de reforma do sistema e eu
obviamente as apoiaria. Mas não acho que elas vão resolver o problema. Acho que
a quantidade de riqueza que pode ser redistribuída é relativamente limitada. Em
segundo lugar, falta poder político para fazê-lo. Temos uma situação agora em
que essencialmente o poder político, a mídia, estão completamente capturados
pelo grande capital, e a barreira política para fazer algo além de medidas
pontuais é imensa. Temos uma oligarquia global que controla essencialmente toda
a riqueza mundial, a mídia, os partidos políticos, o processo político.
Vivemos hoje
no que eu chamaria de democracias totalitárias, e acho que é muito difícil
quebrar isso porque a oligarquia não está interessada em abrir mão desse poder.
Então há uma barreira política e há também uma barreira econômica, porque se
você realmente começa a redistribuir riqueza no modo que precisaríamos para
resolver esses problemas e ter educação, saúde e transporte público decente
para todos, se realmente fôssemos fazer isso, teríamos que tirar muito do
dinheiro que hoje vai para os projetos que interessam ao grande capital.
Por que você acha que vai ser difícil sair da crise atual?
O capital
tem que crescer, e crescer a uma taxa composta, que tem uma curva de
crescimento exponencial. Isso significa que cada vez mais somos empurrados a
encontrar oportunidades de investimento lucrativas, mais e mais. Meu cálculo,
de maneira grosseira, é que nos anos 1970, globalmente, era preciso achar
oportunidades de investimento lucrativas para algo em torno de US$ 600 bilhões.
Hoje é preciso encontrar canais lucrativos para investimentos na ordem de US$ 3
trilhões. Em 20 anos, falaremos em canais lucrativos de investimento para US$ 6
trilhões e assim por diante. Acho que manter o capital ativo tornou-se um sério
problema, e se houver um crescimento zero, há uma crise. O crescimento composto
se torna cada vez mais problemático. Temos tido esse problema desde os anos
1970 e é por isso que mais e mais capitalistas estão vivendo de renda ao invés
de procurar oportunidades de investimento lucrativas produzindo coisas
materiais, que já não é tão lucrativo. E se todo mundo investe no rentismo,
ninguém produz nada, o que também é um problema.
Você fala da importância de uma imaginação pós-capitalista. Fale
sobre a sua visão do que seria uma sociedade pós-capitalista.
É preciso
haver uma revolução nas percepções, nas práticas, nas instituições. E essas
revoluções levam muito tempo para se concretizarem. Quando você pensa na
história do neoliberalismo, vê que foi uma transformação revolucionária que
aconteceu num período de 30, 40 anos. Se foi possível mudar daquilo para isso,
por que não podemos mudar do que vemos hoje para outra coisa? Mas temos que
pensar não simplesmente em termos de fazermos barricadas, mudarmos governos.
Temos que pensar nisso como um processo de 40 anos de mudança de mentalidades,
concepções. Por exemplo, como as pessoas pensam a solidariedade social com seus
vizinhos. Nos anos 1970 havia muito mais solidariedade social, e hoje o mundo
se tornou muito mais individualista. Uma revolução é um processo, não um
evento, estamos falando de transformações de longo prazo, e isso requer que as
pessoas comecem a formular ideias sobre como mudar o mundo. Há muitos elementos
que estão sendo praticados atualmente, o problema é que a maioria em pequena
escala. Por exemplo, economias solidárias sendo praticadas ao redor do mundo,
no Brasil, nos Estados Unidos. Há grupos tentando desenvolver modos de vida
alternativos, ambientalistas, por exemplo, o movimento de recuperação de
fábricas por trabalhadores na Argentina, há muitos movimentos desse tipo
acontecendo, alguns em meio à crise. Na Grécia vemos o desenvolvimento de
sistemas monetários alternativos e por aí vai. Há muitas coisas acontecendo
atualmente que podem ser consideradas experimentos-piloto. Acho importante
olhá-las e analisar quais são os elementos para se pensar um tipo diferente de
sociedade no futuro.
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