Para dar
uma pausa em crises econômicas e eleições mal resolvidas, republico no domingo
este artigo, um ‘recuerdo’ postado inicialmente em março de 2007 no Pensatas e
neste Novas Pensatas em outubro de 2008.
A primeira
vez que fui à Guaíba, ainda era uma aventura. Antes de mais nada esclareço que
Guaíba neste caso não é o rio gaúcho, e sim uma fazenda em pleno recôncavo
baiano, dos meus primos de sobrenome Prisco Paraíso (1).
Uma
aventura que começava na forma de se chegar até lá. A gente madrugava para ir
até o “Cais do Mercado”, na cidade baixa de Salvador para pegar o “vapor”,
aquele mesmo que o Caetano cantou, o de Cachoeira.
A
embarcação singrava os mares, atravessando a Baía de Todos os Santos, e
adentrava o rio Paraguassú numa viagem inesquecível. “Quando chegar no meio da
baía, o navio vai balançar muito”, preveniu tia Edith, com o ar professoral que
os seus cabelos brancos e um passado de muitas idas à fazenda lhe
proporcionavam. Dito e feito, quando o paquete chegou ao meio da travessia,
jogou pra dedéu.
Coisa
mais linda! Quando chegamos ao rio Paraguassú, sua largura, sua grandiosidade.
A beleza de uma natureza privilegiada às suas margens. Nunca posso me esquecer
daquele primeiro encontro com uma verdadeira lenda familiar. Meu pai me
contava, desde que eu era pequeno, as cavalgadas, os passeios que se faziam na
Guaíba. E estava eu ali, a cada nó navegado me aproximando...
Finalmente
chegamos ao lugar em que íamos desembarcar, a ilha dos Franceses, bem no meio
do rio. Daquele ponto em diante, saíamos do vapor e passávamos para canoas que
nos esperavam para conduzir à fazenda. E o medo? Eu, um bicho de cidade grande,
ali numa piroga, as águas ao lado, na altura do peito. O corpo abaixo do nível
delas. As mãos a tocar o caudaloso rio. A sensação entre a surpresa e o medo.
Dez,
quinze minutos depois, outra escala. Chegamos numa vila à “beira mangue”, onde
morava a população local. Palhoças, casinhas simples enfileiradas, dezenas de
outras canoas quase encostadas umas às outras. E ao fundo cavalos nos
esperando. Nunca havia andado a cavalo. Tudo para mim naquele dia era uma
grande novidade. Montamos os animais e pusemo-nos vagarosamente, em fila
indiana a seguir uma estrada, melhor dizendo uma trilha que nos levaria à sede
da fazenda, à “casa grande”.
O
caminho, aos poucos subia cada vez mais. A casa ficava no alto. Era uma vista
deslumbrante. Abaixo um grande vale em que se via o rio, as ilhotas em seu
meio, e, bem em frente uma cidadezinha chamada Santiago, justo na margem
oposta. Mais ao longe, Maragogipe, cidade maior, mas que podia ser melhor vista
à noite, pelas luzes. Naquele tempo, anterior à CHESF (2), a prefeitura
desligava a iluminação lá pelas 10 da noite. E era um programa, todos ficarem
na larga varanda da casa para assistir a esse espetáculo.
Os
primeiros dias foram excitantes. Passeios a cavalo pela manhã ou à tarde.
Passeios a pé, pelas imediações. O “poço” com o seu jacaré. Cheguei a vê-lo.
Atiramos nele, eu e meus primos André, Bebeto e Tuca. Mas o filho da mãe
mergulhou. E por falar em atirar, caçamos alguns “passarinhos”. Êta maldade!
Somente meu primo Chico tinha a coragem de saboreá-los, devorando suas
cochinhas assadas. “Coi” de lôco!
E
saborear era a melhor coisa. Principalmente no almoço e no jantar. A criadagem
preparava quitutes os mais variados, com requintes dos pratos típicos, como
moquecas de sirí catado, xinxim de galinha, caudinho de sururú e por aí afora.
Tudo sempre muito bem acompanhado de saborosíssima farofa de dendê.
À noite,
sentávamos na varanda, antes do jantar, e tio João (3) comandava o espetáculo
de comer ostras. Aprendi que ao abri-las, tirando do fogo, espremia-se o limão
bem no meio da concha. Observava-se o seu movimento. Caso ficasse parada, podia
jogar fora. Tinha que ser sorvida ainda viva, e para tal precisava contrair-se
quando a acides do limão a atingisse. A princípio era estranho, mas como nunca
tive preconceitos com comida, logo estava fazendo tudo conforme os conformes.
Depois o
jantar, e após a fila para jogar com tia Maria e tio João partidas de “Palavras
Cruzadas”. Aquele das pedrinhas, também conhecido como “Mexe-Mexe”. As partidas
começavam lá pelas oito e terminavam quase sempre de madrugada.
Quem
ganhasse ficava na mesa, o mesmo valendo para o dia seguinte. O problema era
ganhar do tio João, cuja cultura e vocabulário iam muito além de nossos reles
conhecimentos. Ao lado o dicionário da Língua Portuguesa. Não valia inventar
palavras. Qualquer dúvida, um dos contendedores podia consultar o dicionário
para comprovar se a dita palavra existia de fato. As regras eram
respeitadíssimas. Não valiam nome próprio, nem verbos conjugados. Estes, só no
infinitivo.
Havia um
detalhe. O tio César, marido de tia Edith, já falecido, havia construído com
sua engenhosidade uma pequena hidrelétrica, apesar de ter se formado em direito
e não em engenharia. Esta, lá pelas onze, onze e meia era desligada. Daí em
diante o jogo continuava à luz de lampiões.
Hora de
dormir. Hora de falar de fantasmas e aparições. Hora de falar de “mula-sem-cabeça”,
de “curupira”. Hora de ficar com medo de adormecer, de se cobrir inteiro no
quarto escuro, deixar só o nariz de fora das cobertas, apesar do calor
reinante.
De manhã, galos cantando, tomava-se um lauto café da manhã, também regrado com quitutes bahianos, e mais ovos fritos, pães caseiros. Hummm, até lembrar dá água na boca. Em seguida começava tudo de novo.
De manhã, galos cantando, tomava-se um lauto café da manhã, também regrado com quitutes bahianos, e mais ovos fritos, pães caseiros. Hummm, até lembrar dá água na boca. Em seguida começava tudo de novo.
Anos
depois, morei em Salvador, no ano de 1982, quando fui trabalhar na DM9. Já
casado, com meu filho à época com cinco anos. A Guaíba já não era mais a mesma.
Para começar, a gente chegava lá de automóvel, parando-se entre a cozinha e a
“casa grande”. Sinal dos tempos, tinha-se que implorar para alguém da aldeia ir
fazer um “almoçozinho” pra gente. A peso de ouro. O progresso havia chegado, o sistema
semi-feudal acabado. Era outra época. Por um lado, um tanto melhor. Mas, que
ficava a saudade da fartura e dos quitutes de outrora, lá isso ficava.
(1) Meu
avô paterno tinha muitas irmãs. Estas, ao se casarem adotaram os sobrenomes de
outras famílias na Bahia. Como o acima citado Prisco Paraíso, e também Valente,
Gordilho, Tourinho... e outros.
(2) Companhia Hidro Elétrica do São Francisco.
(3) Tio
João. Ou João Borges de Figueiredo, então deputado federal pelo PL, não
confundir com o Partido Liberal, tratava-se do Partido Libertador. Depois,
força da lei, transferiu-se para o MDB. Era casado com a prima a quem chamo
“tia” Maria.
irmã de tio César, este último casado com a
prima dele e irmã de meu pai tia Edith. Tia esta que, aliás, em junho de 2007
completou um século de existência. Ufa!
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