A capa com ilustração de Norma de Athayde Couto |
Acabei de ler “Memorial da ilha e outras ficções” do Professor Jorge Moreira (1). Além do romance que flui em leitura fácil e gostosa nas suas 127 páginas, existem outros contos e narrativas, alguns deles em espanhol, posto que o Professor, como eu, baiano de nascimento, entretanto morou no México por alguns anos, onde, aliás, pós graduou-se. Mas não o conheci na Bahia, e sim na internet, por intermédio de meu primo André Setaro, também Professor (na UFBa) que considero uma das maiores autoridades em cinema deste país.
Antes de tudo, devo dizer aqui que não sou --nem nunca me propus a ser-- um crítico literário. Longe de mim tal pretensão... No entanto fui impelido a comentar aqui este livro, motivado pelo entusiasmo ao lê-lo.
Vamos começar pelo romance “Memorial da Ilha” e as aventuras de Bromeu em suas férias na Ilha de Itaparica, sua família, seus amigos, suas memórias marcantes de observar o mundo e o viver a vida. Trata-se de um ato realmente saboroso acompanhar o desenrolar das descobertas e experiências de um jovem a despertar para a existência, sua ingenuidade, seu aprender e amadurecer no dia a dia... Na curiosidade do adolescente sedento de conquistas, o vislumbrar de novas etapas em sua vida. Qual de nós não passou por isto?
Sem nunca perder de vista a abordagem social, Jorge Moreira nos remete a esta fase áurea da vida nesta “ficção não tão fictícia” quanto um verdadeiro memorial dos “tempos que não voltam mais”, como se diz no “popular”. Tempos que nossas memórias não apagam, pois aconteceram com cada um de nós, senão em Itaparica, em alguma praia de Cabo Frio, Guarapari ou Pajuçara. Porque um humanista --como o autor-- capta a sensibilidade de momentos que representam os sentimentos e seus reflexos naquele determinado instante, seja ele qual for. Das recordações de um forte sol causticante no verão dos trópicos em inocentes brincadeiras nas águas da praia às de uma suave brisa noturna, vinda magicamente deslocada do mar sereno ajudando a contemplar a beleza suave de seu súbito amor juvenil pela garota mais bonita da turma, mais bonita ainda iluminada pela sutileza do luar. Ou ainda um joguinho de futebol, uma simples pelada, que na Bahia chamamos de “bába”. Coisas singelas, aparentemente banais, mas que representam ar no ar, vida na vida. Pura poesia do viver! “Porreta”!
Leiam abaixo o que um pequeno trecho nos trás à luz, podendo revelar um pouco do seu estilo e da sua narrativa simples e sem rodeios. E digo isto porque acredito mesmo que em se tratando de comunicação “toda ideia simples beira a genialidade ”. E, obviamente, a literatura não foge desta máxima...
"(...) No largo, de frente pra cidade, forma-se uma nova serenata. Sentados, jovens olham pra lua que cai no mar. São veranistas. Alguns estão abraçados e apaixonados. Todos fazem uma roda em torno dos irmãos Gordinho e Louro. Os dois tocam violão e cantam afinados. São veranistas do Jabiru. Gordinho, o mais jovem é moreno e suave; Louro é branco e rústico. Bromeu vê Arthur e Jaime sentados ao lado dos violonistas. Bromeu se aproxima timidamente e cumprimenta os dois amigos. Arthur diz:
"(...) No largo, de frente pra cidade, forma-se uma nova serenata. Sentados, jovens olham pra lua que cai no mar. São veranistas. Alguns estão abraçados e apaixonados. Todos fazem uma roda em torno dos irmãos Gordinho e Louro. Os dois tocam violão e cantam afinados. São veranistas do Jabiru. Gordinho, o mais jovem é moreno e suave; Louro é branco e rústico. Bromeu vê Arthur e Jaime sentados ao lado dos violonistas. Bromeu se aproxima timidamente e cumprimenta os dois amigos. Arthur diz:
– Bromeu, senta aqui do nosso lado.
Feliz, Bromeu se senta ao lado de Bárbara perto das veranistas.
Enquanto Gordinho toca acordes dissonantes, as moças e os rapazes cantam “Eu sou feliz tendo você sempre ao meu lado...”; depois prosseguem com “Chega de Saudade, a realidade é que sem ela não pode ser...”; Emendam com “O barquinho vai...”; “Era uma vez um lobo mal...”; “... Eu sou mais você e eu”. Cantam samba-canções de Silvinha Telles, bossas novas de Tom Jobim, Roberto Menescal, Carlinhos Lira; cantam com a batida do violão e o estilo de cantar de João Gilberto.
Bromeu está embevecido escutando a música e a batida do violão. Também está fascinado com as jovens veranistas. O menino observa aquelas moças de perto. São bonitas, elegantes, cabelos soltos arrumados, roupas novas, pele bronzeada, queimada do sol! Ai quem lhe dera ter uma dessas veranistas como namorada!
Pouco depois, chega Alexandra acompanhada da irmã menor e de dois veranistas. O coração de Bromeu dispara como um tamborim, mas ele se controla. Sabe que Paulinho Baratas e Sandro Babosa, os veranistas que a acompanham, estão competindo ferozmente para conseguir ser escolhido como namorado de Alexandra.
Quando eles se sentam atrás da roda principal, escuta-se uma voz na escuridão:
– Alguém, que acaba de chegar, pisou em bosta de cachorro.
Está empestando a serenata. Babosa se levanta e acende a lanterna de pilha. Tira o tamanco do pé e começa a inspecioná-lo.
Com um gesto brusco se queixa:
– Merda, é meu tamanco! Diz ele.
Chateado, caminha para praia para lavar a sola do tamanco. Quando se retira, Paulinho, contente, começa a rir do papel ridículo que o rival protagonizou em frente de todos. A platéia não teve remédio que rir da chanchada.
Gordinho pára de tocar. Passa o violão ao irmão mais velho. Louro prefere tocar músicas românticas internacionais. Começa tocando e cantando a melodramática “Et maintenant, que vaisje faire? De tout ce temps que sera ma vie” de Gilbert Becaud; emendando com “When somebody loves you, It’s no good unless he loves you all the way” o sucesso de Frank Sinatra.
É tarde. Um casal de namorados levanta, sussurra boa noite e abandona a roda. Logo, outros fazem o mesmo. Bromeu se dá conta de que é hora de voltar pra casa..."
Como a pequena pinçada acima, a obra está repleta de outros momentos inesquecíveis, daí, eu considerar uma sorte o fato de ter-me caído às mãos um livro como este, porque ele não acaba aí. Na verdade, ao terminar o romance, apenas chegamos à segunda parte intitulada “Outras ficções”, com contos e relatos que se dividem em narrativas sobre os anos da ditadura, composto de “Perigoso Marginal Armado” (2), e “A cruzfixação”, além de alguns, escritos em espanhol, como sempre de um grande significado pessoal e social, “Orden del padre: la hermandad de los cangrejos”, “La muerte y el farolito”, “El regalo”, “Un sueño”. E um brilhante jogo de palavras na poesia “Alfabetunar”.
Jorge Moreira viveu aqueles anos de chumbo, os quais uma grande parte de nossa geração sofreu na carne e no mais íntimo do âmago... Traduziu-os em “A cruzfixação” que é algo quase inexplicável pela sua força de expressão e todo o realismo “alucinante” de uma época, mas também em “Perigoso marginal armado”, onde podemos encontrar muito do que foi difícil para qualquer “cidadão” aquele período nesta “republiqueta tupiniquim”. Quanto aos contos em espanhol valem muito a leitura. Primeiro por estarem nesta língua tão próxima a nós, e, no meu entender bastante compreensível. Segundo porque complementam a visão humanista, e mais uma vez aqui repito esta denominação, porque o autor é de fato um escritor alinhado ao pensamento que valoriza, antes de qualquer coisa o ser humano inserido no contexto social. Por isto digo no título que este livro é “mais do que apenas um substantivo”. Porque o seu conteúdo é grande nos pequenos detalhes. E representa o posicionamento do seu autor em sua sensibilidade como um todo...
É uma pena que não mais encontremos no Brasil a publicação, que quase se esgotou, quando de seu lançamento na Bahia em 2007. Mas ainda pode ser encontrado na internet (3) e, quem sabe um dia, e apesar de morar fora do país, o Professor Jorge Moreira possa nos presentear com uma nova edição? Aguardemos!
1. Jorge Vital de Brito Moreira graduou-se em Ciências Sociais na UFBa (1971). Fez estudos de pós-graduação em Sociologia na “Universidad Nacional Autonoma de Mexico” (1985) e recebeu o titulo de doutor (Ph.d) em 1996 na “University of Minnesota” (EUA), com uma tese sobre o escritor Antonio Callado.
Nos EUA desde 1986, lecionou na “University of California San Diego (La Joya)”, “University of Minnesota”, “Washinton University”, “Lawrence University”, “University of Wisconsin” e "Fox Valley Technical College".
Tem publicado ensaios (sobre diferentes escritores brasileiros e latinoamericanos) sendo autor colaborador do livro “Notable Twenty Century Latin America Women” (2001).
Em 2007, publicou na Bahia o livro “Memorial da Ilha e Outras Ficcões” (romance e contos).
Atualmente escreve artigos e ensaios para o destacado diário “rebelion.org” de grande circulação na Espanha e América Latina. É tambem colaborador neste blogue.
2. Este conto foi publicado neste blogue. Para lê-lo, clique no link abaixo:
3. O livro (em português) ainda pode ser encontrado na Amazon.com
8 comentários:
Que beleza deve ser este livro, e aqui entre nós, que crítica! Apesar de você não querer assumir és um crítico literário sim senhor!
Muito interessante o trecho que você publicou do livro do professor Moreira. Mostra mesmo descobertas e os sabores da juventude e da pré-adolescência como você bem disse, quem não passou por experiencia assim?
Tive o prazer de ler 'Memorial da Ilha e outras ficções' há algum tempo. O Professor Jorge Moreira, seu autor, que colabora no 'Novas Pensatas' com suas lúcidas análises, mo-lo enviou por meio de uma conhecida em comum.
As suas recordações da aprazível Ilha da Maré, que, como bom baiano, apesar de carioca de nascimento, conheço-a 'in loco', são testemunhas de um tempo feliz no qual o professor na sua meninice desfrutava dos terrenos baldios e da pescaria, sem saber que viria, um belo dia, tornar-se um professor brasileiro numa universidade americana. Rapaz, depois de sua meninice debaixo do sol 'caliente ' da ilha, Moreira se destacou como coadjuvente em alguns filmes de celebrados cineastas baianos como Edgard Navarro do qual, até hoje, é amigo fraterno.
Um sociológo-pescador ou um pescador-sociólogo? Esta a dolorosa interrogação. Os peixinhos inspiraram o menino Moreira a penetrar na área do conhecimento, tornando-se um 'schoolar' de alto nível. Mas, tenho certeza, ainda hoje, quando pratica o seu ofício, não deixa de pensar naquele peixe grande fiscado há décadas com o qual tirou uma bela fotografia em branco e preto. A sua 'madeleine proustiana', talvez.
Joelma, o livro é bom e está à venda na amazon.com a U$ 12.00...
Verdade...
Interessante, mas não sabia destas incursões cinematográficas do Professor...
Gostei demais também do link com o conto do professor.
L.P.
Que já foi publicado faz tempo... Mas vale a pena dar uma olhada. Para quem quiser, é só clicar na postagem.
Postar um comentário