Transcrito do Boletim 92 de Controvérsia
Enquanto não conseguir questionar os fundamentos do
sistema, a esquerda seguirá desorientada, e, se aproveitar o “bonde da
administração estatista da crise” para propor suas reformar sociais,
descarrilará com ele, provoca Robert Kurz.
Robert Kurz não faz concessões ao aproximar o
pensamento pós-moderno com a ideologia neoliberal. Agora, diz ele, “a esquerda
pós-moderna se depara com os destroços das suas ilusões e é confrontada com a
dura realidade de uma crise monumental, a qual desde o começo ela não quis
admitir e para a qual ela, por isso, não está preparada”. Incapaz de captar a
“dialética sujeito-objeto do fetichismo moderno”, a esquerda caiu num
“objetivismo tosco ou num subjetivismo igualmente tosco”. As ideias foram
desenvolvidas na entrevista concedida por Kurz, por e-mail,
à IHU
On-Line.
O
rótulo de ‘pós-modernidade’ era fajuto, argumenta, “e, no caso de Negri,
desembocou no conceito totalmente vazio de ‘multidão’, que significa tudo e
nada. O esvaziamento do sujeito tem seu correlato numa virtualização das lutas
sociais, que em grande parte somente ainda têm caráter simbólico, sendo cada
vez menos capazes de intervenção real”. Dessa forma, continua Kurz,
“a esperança pelo ‘renascimento da política’ é a maior de todas as bolhas. Os
danos provocados pela limitação política dos prejuízos serão inclusive maiores
que a crise atual. O Estado somente ainda consegue regulamentar a morte
definitiva do seu capitalismo. Neste aspecto, a esquerda também está
desorientada enquanto não conseguir questionar os próprios fundamentos do
sistema”. Se a esquerda quiser aproveitar “o bonde da administração estatista
da crise” para iniciar suas reformas sociais, ela “acabará descarrilando junto
com ele”, vaticina. “Ela bem que merece esse destino”.
Robert Kurz estudou Filosofia, História e
Pedagogia. É cofundador e redator da revista teórica EXIT! —
Kritik und Krise der Warengesellschaft (EXIT! — Crítica e Crise da
Sociedade da Mercadoria). A área dos seus trabalhos abrange a teoria da crise e
da modernização, a análise crítica do sistema mundial capitalista, a crítica ao
Iluminismo e a relação entre cultura e economia. Publica regularmente ensaios
em jornais e revistas na Alemanha, Áustria, Suíça e Brasil. Entre seus livros
publicados em português, citamos O colapso da modernização (São Paulo: Paz e Terra,
1991), O
retorno de Potemkin (São Paulo: Paz e Terra, 1994) e Os últimos
combates (Petrópolis: Vozes, 1998).
Confira a entrevista:
IHU On-Line - As atuais crises financeira e ecológica estão
relacionadas com o “colapso da modernização”?
Robert Kurz - O termo colapso é um chavão provocativo,
geralmente usado em sentido pejorativo, no intuito de desqualificar como
“apocalípticos”, que não devem ser levados a sério, os representantes de uma
teoria radical da crise. Não só as elites capitalistas, mas também os
representantes da esquerda preferem acreditar que o capitalismo pode renovar-se
eternamente. É claro que um sistema social global não desmorona de uma hora
para outra como um indivíduo infartado. Mas a era do capitalismo passou. Afinal
de contas, a modernização não foi outra coisa senão a implementação e o
desenvolvimento desse sistema, não vindo ao caso se os mecanismos eram do
capitalismo privado ou do capitalismo estatal.
Apesar
de todas as diferenças exteriores, o fundamento comum consiste na “valorização
do valor”, isto é, na transformação de “trabalho abstrato" em “valor
agregado”. Entretanto, esta não é uma finalidade subjetiva, mas um fim em si
mesmo que acabou ficando independente. Tanto os capitalistas quanto os
assalariados, assim como os agentes estatais, não passam de funcionários desse
fim em si mesmo que se soltou e está incontrolável, o qual Marx chamou de
“sujeito automático”. No caso, a concorrência universal força a uma dinâmica
cega do desenvolvimento da capacidade produtiva, a qual constantemente gera
novas condições de valorização para finalmente encontrar uma barreira histórica
absoluta.
A
barreira econômica interior consiste no fato de o desenvolvimento da força
produtiva levar a um ponto em que o “trabalho abstrato” enquanto “substância”
do “valor agregado” é tão reduzido, mediante racionalização do processo
produtivo, que fica impossível aumentar o valor real [reale Verwertung]. Essa
“dessubstancialização do capital” ou “desvalorização do valor” significa que os
produtos em si deixaram de ser mercadoria, podendo ser representados em forma
monetária como forma genérica de valor, limitando-se a ser meros bens de
consumo. A finalidade da produção capitalista, porém, não é a fabricação de
bens de consumo para satisfazer necessidades, e sim o fim em si próprio que é a
valorização. Por isso, segundo critérios capitalistas, ao se alcançar a
barreira econômica interna é preciso fechar a produção e, portanto, o processo
vital da sociedade, mesmo que todos os meios estejam disponíveis.
Capitalismo virtual
Em
termos reais, essa situação já havia surgido em meados dos anos 80, com a
terceira revolução industrial. O capitalismo prolongou sua vida em forma
“virtualizada”, por um lado, mediante endividamento historicamente sem
precedentes (antecipação de valor agregado futuro, que na realidade jamais
poderá ser resgatado); por outro lado, pelo inchaço, igualmente nunca visto,
das assim chamadas bolhas financeiras (ações e imóveis). Esse pseudoacúmulo de
capital monetário “desprovido de substância” foi usado para alimentar também a
produção real de mercadorias.
Resultou
daí uma conjuntura deficitária global com fluxos de exportação de mão única
principalmente para os Estados Unidos. As zonas de processamento de exportação
da China e da Índia, porém, não representam uma expansão real do “trabalho
abstrato”, porque seu ponto de partida não foi poder de compra real, e sim o
capital monetário “desprovido de substância” representado no endividamento e
nas bolhas financeiras. Por mais de duas décadas se nutriu a ilusão de que o
“crescimento tocado exclusivamente pelas finanças” seria viável. De forma
alguma, o fim dessa ilusão consiste exclusivamente numa crise financeira. A
decantada “economia real”, na verdade, há muito que já não é mais real, e sim
foi alimentada artificialmente com bolhas financeiras “desprovidas de
substância”. Agora o capitalismo é reduzido a seus reais fundamentos de
valorização. A consequência é uma nova crise da economia mundial, sem que se
vislumbrem novos potenciais reais de valorização.
Ao
mesmo tempo, o capitalismo esbarra em sua limitação externa natural. Na mesma
medida em que ficou supérfluo o “trabalho abstrato” enquanto transformação de
energia humana em “valor agregado”, acelerou-se a expansão da aplicação
tecnológica das energias fósseis (petróleo, gás). A dinâmica cega do
desenvolvimento da capacidade produtiva não controlada socialmente levou, por
um lado, ao previsível esgotamento dos recursos de energia fóssil e, por outro,
à destruição do clima global e do meio ambiente natural, em grau igualmente previsível.
A
barreira natural exterior e a barreira econômica interior apresentam horizonte
temporal diverso. Ao passo que o final da real “valorização do valor” já se
encontra no passado e a economia capitalista atravessa sua crise histórica
agora, no espaço de poucos anos (grosso modo ao longo da próxima década), a
barreira natural absoluta ainda se encontra no futuro (num período de no máximo
duas a três décadas). A crise econômica e o concomitante fechamento de
capacidades de produção refreiam o esgotamento dos recursos energéticos – às
custas da crescente miséria social global na forma capitalista.
Simultaneamente, porém, os processos de destruição das bases naturais e do
clima apresentam tamanho avanço, que não chegam a ser detidos pela crise econômica,
sendo que a barreira natural exterior será atingida apesar de tudo.
Destruição capitalista da natureza
O
fim da modernização significa, portanto, que, além de ter que superar a forma
capitalista da reprodução, durante muito tempo uma sociedade mundial pós-capitalista
terá que sofrer e lidar com as consequências da destruição capitalista da
natureza. Para a análise e crítica teórica da crise, é importante enxergar a
interconexão interna das duas barreiras históricas do capitalismo. Existe,
porém, o perigo de jogar um contra o outro esses dois aspectos da crise
histórica; isto vale para ambos os lados: para as elites capitalistas bem como
para os representantes de um “reducionismo ecológico”, que somente admitem a
barreira natural exterior. A gestão capitalista da crise e o reducionismo
ecológico poderiam entrar em aliança perversa, que redundaria em negar a
barreira econômica e, em nome da crise ecológica, pregar às massas depauperadas
e miseráveis uma ideologia da “renúncia social”. Contra isso, é preciso sustentar
que a crise, a crítica e a superação da estrutura capitalista têm prioridade,
porque a destruição da natureza é consequência, e não causa da barreira
interior desse sistema.
IHU On-Line - Por que o senhor diz que o vexame da crise é também
o vexame da esquerda pós-moderna?
Robert Kurz - A crise não é nenhum vexame,
mas um processo objetivo, resultante da dinâmica cega da concorrência e do
desenvolvimento descontrolado da capacidade de produção. No que tange à
esquerda pós-moderna, pode-se falar de vexame na medida em que descartou, em
sua maior parte, a crítica da economia política. O “economismo” dos
tradicionais marxistas de partido só foi criticado para eliminar de vez a
objetividade negativa das categorias capitalistas de “trabalho abstrato” e “valorização
do valor”. A dinâmica de crise inerente ao capitalismo passou totalmente
despercebida, tendo sido traduzida para “possibilidades ilimitadas”. Tal como
as elites neoliberais, a esquerda pós-moderna acreditava no “crescimento tocado
a finanças” e se transformou na expressão ideológica do capital fictício. O
virtualismo econômico foi complementado pelo virtualismo tecnológico da
internet. O Second Life do espaço virtual sofreu a mutação de tornar-se a
forma de vida “propriamente dita”, o suposto “trabalho imaterial” de Antonio
Negri, acabou sendo a continuação da ontologia capitalista do trabalho.
O
real problema de substância do “trabalho abstrato” foi negado; um
“antissubstancialismo” ideológico (ou “antiessencialismo”) a contrastar com
Marx denunciou esse problema de substância como mera metafísica de um
pensamento ultrapassado, em vez de nele reconhecer uma “metafísica real” do
capitalismo, a qual não deixa de ser bastante material. Concomitantemente,
ocorreu uma orientação pela esfera da circulação. A ilusão financeira
capitalista de que atos de compra e venda também poderiam gerar crescimento,
como a real produção de mercadorias, também constituiu a premissa implícita do
pensamento pós-moderno. O endividado sujeito de mercado e consumo aparecia como
portador da reprodução e de uma possível emancipação, sendo que nem mais se
podia dizer em que esta consistiria.
O
falso virtualismo econômico e tecnológico teve seu correlato filosófico numa
epistemologia que não mais queria criticar e superar a fetichista “aparência
real” da relação de capital, mas seduzia para a crença de a pessoa poder
“realizar-se a si própria” nessas condições. Seguindo as ilusões virtualistas,
a “gaiola de ferro” (Max Weber) do sistema produtor de mercadorias foi
redefinida como “ambivalência” e “contingência” abertas para tudo e a qualquer
hora. Verdade, mesmo a verdade negativa da crítica, não teria mais base
objetiva nas condições reinantes, mas podia ser “produzida” e “negociada”. Para
a esquerda pós-moderna, a natureza negativa do capital se dissolvia numa
indefinível “pluralidade” [“Vielfalt”, “diversidade”] de fenômenos, a qual se
apresentaria como desconexa “pluralidade” de movimentos sociais, sem focalizar
o âmago concreto do capital.
Pensamento pós-moderno e neoliberalismo
Em
termos sociais, a esquerda pós-moderna foi um trendsetter da
individualização e flexibilização capitalista. O flexi-indivíduo abstrato não
foi reconhecido como forma do sujeito burguês em crise, mas recebeu o nimbo de
antecipação da individualidade liberta já no seio do capitalismo. Em vez de
aparecer como forma última de existência do mercado totalitário e como
ameaçadora “guerra de todos contra todos” na concorrência universal da crise, a
individualização aparecia como forma atomizada da “autorrealização”, e o “ser
humano flexível” (Richard Sennet) se apresentava não como objeto indefeso
ao sabor das imposições capitalistas, mas como seu próprio “soberano”, que
poderia conquistar novos espaços e transformar a si próprio no que quisesse. A proximidade
do pensamento pós-moderno para com a ideologia neoliberal sempre foi
inquestionável, apesar dos contrastes exteriores. Agora a esquerda pós-moderna
se depara com os destroços das suas ilusões e é confrontada com a dura
realidade de uma crise monumental, a qual desde o começo ela não quis admitir e
para a qual ela, por isso, não está preparada.
IHU On-Line - A esquerda de hoje vive uma crise existencialista?
Antes de sugerir alternativas para as crises atuais, a esquerda mundial teria
de resolver seus próprios impasses? Para o senhor, há atualmente um vazio
teórico das esquerdas ou um “desencontro metodológico” na busca de bases comuns
para uma teoria?
Robert Kurz - A crise existencial da esquerda
de hoje consiste justamente no fato de ela não ter conseguido transformar o
marxismo e reformular a crítica da economia política dentro dos padrões do
século XXI. Pois naturalmente não existe volta para os paradigmas de uma época
passada. O rótulo de “pós-modernidade” era fajuto, porque a real transformação
social do capitalismo não inaugurou novos espaços sociais, mas justamente
marcou a transição para sua ruína histórica. Nem o fim do antigo movimento
operário nem o naufrágio do “socialismo real” foram digeridos criticamente. A
transição pós-moderna não superou o marxismo tradicional, apenas lhe deu
continuidade numa forma esvaziada. Enquanto desaparecia totalmente de vista o
objetivo socialista e se dissolvia aquela falsa “pluralidade” de aspirações
meramente particulares, o paradigma da “classe operária” se transformou numa
insustentável multidão de sujeitos sociais postiços; no caso de Negri,
desembocou no conceito totalmente vazio de “multidão”, que significa tudo e
nada. O esvaziamento do sujeito tem seu correlato numa virtualização das lutas
sociais, que em grande parte somente ainda têm caráter simbólico, sendo cada
vez menos capazes de intervenção real.
Caracterizar
essa situação com “impasses” da esquerda é um eufemismo. A esquerda antiga
tanto quanto a pós-moderna acabaram. Não existe mais sujeito ontológico do
“trabalho”, porque o “trabalho” acabou revelando ser substância histórica do
capital e ficou obsoleto. Com isto, também o paradoxal conceito marxista de
“sujeito objetivo” em si, que somente precisaria chegar “a si”, está liquidado
em termos históricos e não pode ser continuado em sucedâneos. Neste aspecto, o
“vazio teórico” da esquerda é idêntico com o “desencontro metodológico”. A
esquerda nunca conseguiu captar a dialética sujeito-objeto do fetichismo
moderno. A consequência foi cair num objetivismo tosco ou num subjetivismo
igualmente tosco. A oscilação entre esses dois pólos do fetichismo perfaz boa
parte das discussões de esquerda que não conseguiram deixar para trás essa
polaridade.
4 comentários:
Excelentes as posições coerentes deste Robert Kurz. Muito boas mesmo!
Robert Kurz provou que o marxismo ainda é a grande linha filosófico-política-econômica até hoje.
Muito demais este Robert Kurz.
Tudo D+ mesmo!
L.P.
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