Leda
Maria Paulani, no último
Boletim Controvérsia nos presenteia com um
brilhante ensaio com o título de “A crise do regime
de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil”.
Reproduzo abaixo alguns trechos que acho
fundamentais para uma compreensão do estágio atual do capitalismo e seus
reflexos por terras tupiniquins.
“(...) A VERTENTE CONHECIDA como "escola francesa" da
teoria da regulação, que tem em Aglietta (1976) seu trabalho seminal (daqui por
diante apenas "teoria da regulação"), busca forjar um instrumental
teórico capaz de explicar como se dá a reprodução regular de relações sociais
que são contraditórias, ou seja, como explicar de que modo, sendo constituídas
socialmente por conflitos imanentes, as economias capitalistas são capazes de
manter a acumulação. Para tanto, parte do princípio de que, em cada momento
histórico determinado, o processo de acumulação capitalista assume uma forma
específica. A partir daí, desdobra o conceito marxista de modo de produção em
duas categorias: o regime de acumulação (RA), constituído pelo conjunto das
regularidades econômicas e sociais que, em cada momento histórico, são capazes
de garantir a acumulação no longo prazo, e o modo de regulação (MR), que vem a
ser o conjunto dos procedimentos e comportamentos individuais ou coletivos
capazes de reproduzir as relações fundamentais ao processo de acumulação,
sustentar e pilotar o regime de acumulação em vigor e garantir a
compatibilidade de um conjunto de decisões descentralizadas. Este último papel
do modo de regulação implica que essa compatibilidade seja feita sem que seja
necessária a interiorização dos princípios de ajustamento do sistema como um
todo por parte dos atores econômicos, ou seja, esse conjunto de procedimentos
indica a incorporação do social nos comportamentos individuais. Nesse sentido,
o modo de regulação figura como a materialização do regime de acumulação em
vigor...
... Baseando-se nas características que marcam o capitalismo dos anos 1980 e
da primeira metade dos anos 1990 (baixo crescimento do produto, redução de
salários e desemprego em boa parte dos países, enorme crescimento do valor dos
ativos financeiros, conjuntura instável entrecortada por sobressaltos
monetários e financeiros com alto poder de contágio entre os países), François
Chesnais, em trabalhos de 1996 e 1997, passa a defender a tese de que, desde o
início dos anos 1980, o capitalismo vive sob um regime de acumulação com
dominância da valorização financeira, tendo constituído um modo de regulação
adequado a esse tipo de acumulação. Combinando os conceitos regulacionistas com
o approach marxiano, Chesnais (1997,
p.21) diz:
Resultado dos impasses nos quais desembocou a acumulação de longo período
dos "trinta gloriosos", esse modo baseia-se nas transformações da
"relação salarial" e em um agravamento muito forte da taxa de
exploração [...], mas seu funcionamento é ordenado sobretudo pelas operações e
pelas escolhas de formas de capital financeiro mais concentradas e
centralizadas do que em qualquer período anterior do capitalismo...
... A ideia básica é que os detentores das ações e de volumes
importantes de títulos de dívida privados e públicos são efetivamente
proprietários situados numa posição de exterioridade à produção, e não
"credores" como normalmente se caracteriza, o que leva à distinção
entre finanças intermediadas, que caracterizariam o regime de acumulação
anterior, e finanças diretas, que prevalecem no regime atual. Para Chesnais, o
termo "credor" remete a "empréstimo" e a um papel das
finanças que é em última instância o de direcionar as poupanças para quem
deseja investir. Mas a finança atual não é, como essa, movida pelas
necessidades da produção e da criação de riqueza nova. Sua instituição central
é o mercado secundário de títulos, o qual só negocia ativos já emitidos. A
existência e a difusão desses mercados fazem que os aplicadores de recursos
jamais conheçam quem são seus devedores, não lhes importando "[saber]
'quem pagará o mico', mas saber se os mercados permanecerão líquidos"
(Chesnais, 2005, p.49)...
... Marx chama de capital fictício tudo aquilo que não é, nunca
foi, nem será capital, mas que funciona como tal. Trata-se, em geral, de
títulos de propriedade sobre direitos, direitos de valorização futura no caso
das ações, de renda de juros a partir de valorização futura, no caso de títulos
de dívida privados, e de recursos oriundos de tributação futura, no caso de
títulos públicos. Em todos esses casos, a valorização verdadeira dessa riqueza
fictícia depende da efetivação de processos de valorização produtiva e extração
de mais-valia; em outras palavras, da contínua produção de excedente e da alocação
de parte desse excedente para valorizar o capital fictício. Alguns elementos,
porém, permitem que essa riqueza fictícia crie valorização fictícia e liberte a
valorização dessa riqueza das restrições e limitações impostas pela acumulação
produtiva. O primeiro deles é o fato de esses ativos serem comercializáveis em
bolsas, ou nos mercados secundários de títulos, o que faz que sua
"valorização" decorra do puro jogo da circulação, descolando-se de
qualquer pressuposto vinculado à acumulação produtiva. O segundo é que a fonte
dos juros não precisa necessariamente ser o lucro, podendo estar nos salários
ou nos recursos extraídos pelo Estado.8 O terceiro é o caráter prolífico do
próprio capital fictício, de que dá prova a "produção de direitos" e
de "valorização", que os ativos derivativos possibilitam.
Evidentemente, a fragilidade e a vulnerabilidade da economia e sua propensão a
crises aumentam pari passu com o crescimento da riqueza financeira e o
aprofundamento das contradições sistêmicas que ela implica. Resta recuperar a
história desse crescimento...
... A história da mudança do regime de acumulação em direção a um
regime com dominância da valorização financeira começa em meados dos anos 1960.
Depois de 20 anos de crescimento mundial vigoroso produzido pelas políticas de
cunho keynesiano, com controle de demanda efetiva, Estado do Bem-Estar Social,
reconstrução da Europa e da Ásia e industrialização da América Latina, a
reversão cíclica tem lugar e o crescimento desacelera. Esse processo é mais
intenso nos países europeus, em razão do término do processo de reconstrução do
pós-guerra. As multinacionais americanas espalhadas na Europa optam por não
reinvestir a totalidade de seus lucros na produção, pois as perspectivas de
ganho já não eram tão boas, mas tampouco enviam o excedente não reinvestido aos
Estados Unidos, por conta de uma legislação tributária, à época, considerada
muito dura. Esses recursos (eurodólares) começam então a "empoçar" na
city londrina, o espaço off shore, também conhecido como euromarket, criado no
início dos anos 1950...
... O regime de acumulação com dominância da valorização
financeira tem a formação de crises, ocasionadas pela recorrente geração de
bolhas de ativos, como sua característica mais marcante. Ele é por isso
estruturalmente frágil. Ao longo dos últimos 30 anos, o poder detido pela
riqueza financeira foi moldando as instituições de forma a criar um modo de
regulação compatível com um processo de reprodução capitalista sob seu comando.
Completado esse processo, o sistema encontra-se no auge de sua fragilidade.
Esta é, por isso, uma crise diferenciada, pois tem de ser enfrentada em
condições muito mais adversas que as anteriores (ambiente de operações
completamente desregulado, com alto nível de contágio e amplitude verdadeiramente
global). Além disso, o que torna o cenário nada alvissareiro é que o expediente
de se recorrer ao aumento de liquidez para salvar do incêndio, o assim chamado
lado real da economia, parece estar chegando a seu limite.19 Sinal disso é a
dificuldade que se tem encontrado de reverter os sinais negativos trazidos pela
crise, a despeito da enorme quantidade de dólares derramados nas principais
economias do planeta. Qualquer semelhança com a armadilha da liquidez não é
mera coincidência, mas o que torna a situação ainda mais complicada do que
aquela que inspirou o achado keynesiano é que o eventual sucesso da empreitada
vai jogar para a frente, de modo ampliado, os mesmos descompassos que estão na
origem da crise atual...
...
A
situação e as perspectivas do Brasil no contexto da crise do regime de
acumulação financeira
O
Brasil foi personagem da história da financeirização do capitalismo desde seu
começo. Inicialmente o país constituiu parte expressiva da demanda por crédito
que ensejou a primeira bolha global de ativos do capitalismo financeirizado,
consubstanciada na crise das dívidas latino-americanas da primeira metade dos
anos 1980. Mais à frente, a partir da segunda metade dos anos 1990, tornou-se
potência financeira emergente, tendo, para tanto, realizado todas as reformas
estruturais necessárias, da estabilização monetária à abertura financeira
incondicional, da reforma da previdência às mudanças na lei de falências.
Posicionou-se assim como plataforma internacional de valorização financeira,20
ou seja, economia emergente na qual era possível obter elevadíssimos ganhos em
moeda forte, por vezes os mais elevados do mundo. Na época do câmbio fixo, isso
foi possível graças às enormes taxas de juros e, depois da crise de 1999, mais
particularmente depois de 2003, graças também ao processo recorrente e
autorreferenciado de valorização da moeda brasileira, alavancado, como não
poderia deixar de ser, pelas apostas com derivativos...
... Não por acaso, os primeiros impactos da crise
sobre a economia brasileira estiveram relacionados ao próprio setor financeiro...
...
Os impactos pelo lado real têm chegado aos poucos e têm vindo principalmente da
deterioração das expectativas, que poderão reverter os indicadores relativos à
formação bruta de capital fixo (ou seja, investimento) que, a duras penas,
estavam se recuperando, depois de duas décadas de estagnação. Os investimentos
governamentais como o PAC e o pacote habitacional poderão substituir em parte o
investimento privado, mas dificilmente serão suficientes para compensar a
redução deste último. Do lado do consumo, o crédito não foi tão afetado, apesar
de certa retração no início, particularmente no que tange a financiamento de
bens de alto valor, como automóveis. Sobre isso vale notar a importância que
hoje tem o crédito, particularmente o crédito consignado, na sustentação dos
níveis de consumo, o que só ratifica a tese da proeminência da finança, ou
seja, de uma acumulação produtiva que se dá sob os auspícios e o comando da
acumulação financeira...
...
A referência aos capitais de não residentes operando em nossa economia obriga a
analisar o retorno dos capitais externos observado nos últimos meses e o que
isso significa no contexto da crise. Inicialmente é preciso lembrar que, apesar
dos últimos cortes definidos pelo Copom, a taxa básica brasileira está ainda
entre as maiores do mundo, o que, evidentemente, retomados níveis mínimos de
confiança, volta a trazer divisas ao país, em particular porque as taxas de
juros são hoje, em boa parte do mundo, negativas. Isso faz lembrar a fábula de um
suposto "Bretton Woods 2" que começou a correr nos meios financeiros
internacionais em 2005...
...
A tese sobre o suposto arranjo pressupunha que ele duraria um tempo
substantivo, pressuposto que a crise abalou, mas que países como o Brasil não
deixam destruir inteiramente. Encontramos assim um novo papel para nossa
economia no capitalismo financeirizado, qual seja, o de absorver a escassez de
poupança americana, o que permite que o comando da finança não fique tão
abalado no centro do sistema, e continue firme por aqui. O afluxo de dólares
volta a girar a roda da valorização do real e a reinflar a bolha que havia
murchado com a crise. A sustentabilidade desse "arranjo" e, mais
ainda, sua capacidade de reconstituir por aqui um círculo virtuoso de crescimento
capitalista são tão seguras quanto a ordenação macroeconômica invertida que
resultou do Brasil pós-crise.
4 comentários:
Uma excepcional análise. Qual o link para a leitura completa?
Jô, o endereço na 'web' é:
http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=13576
Leda Maria Paulani detecta perfeitamente os custos da crise para a classe trabalhadora, como redução de salários, desemprego e um agravamento muito forte da taxa da mais-valia.
E a definição do capitalismo hoje está nas palavras de Marx, que "chama de capital fictício tudo aquilo que não é, nunca foi, nem será capital, mas que funciona como tal. Trata-se, em geral, de títulos de propriedade sobre direitos, direitos de valorização futura no caso das ações, de renda de juros a partir de valorização futura, no caso de títulos de dívida privados, e de recursos oriundos de tributação futura, no caso de títulos públicos", como muito bem cita a Sra. Dra. Leda Maria Paulani.
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