Democracia e socialismo
Texto originalmente publicado em Marxismo21 (1)
A controvérsia suscitada
pela Revolução Russa ainda não chegou ao fim, e até hoje existem os que temem a
supressão da democracia em troca da igualdade social. Ora, igualdade sem
liberdade não corresponde ao ideário e à utopia do socialismo, tão bem
encamados por Rosa Luxemburgo e Antonio Gramsci. Ao contrario de pensadores
social-democratas ou marxistas, ambos compreenderam, como mais tarde o fariam
Bobbio, Colletti e Gorz, que as condições de atraso econômico, cultural e
político da Rússia pré-revolucionária acarretavam consequências que impediam a
conversão da ditadura do proletariado em uma forma mais avançada e completa de
democracia. Tumultuosa e contraditória, ela teria de nascer da emergência do
auto governo coletivo da maioria.
Desvendada resumidamente
por Marx nos escritos de 1840, essa forma de democracia foi examinada com
extrema objetividade e crueza na Crítica ao Programa de Gotha. Havia, no
entanto, confiança no futuro e a certeza de que a revolução se desencadearia na
Europa, irradiando-se em seguida para sua periferia e países coloniais, o que
acabou se mostrando inviável.
Tanto Rosa quanta Gramsci
julgavam que a estatização e a socialização dos meios de produção conduziriam
aos ideais democráticos e igualitários do socialismo e do comunismo. Sua
crítica é positiva: acreditavam nos sovietes – ou conselhos – e promoviam a
exaltação de sua autonomia contra os desvios burocráticos, registrados por
Lenin e, posteriormente, denunciados com veemência por Trotsky.
É interessante voltar a
Rosa Luxemburgo, dolorosamente lúcida no ataque ao “revisionismo” e no
diagnóstico da social democracia. Sem o sarcasmo e a virulência de Lenin, ela
se limita a desvendar as misérias do partido, no momento em que a liderança
política e a burocracia aliavam-se contra a revolução, atraiçoando o
socialismo, fortalecendo as classes dominantes e conferindo
legitimidade ao Estado capitalista. O Partido Social Democrático (SDP) mantinha
a reverência por seus símbolos, bandeiras e valores marxistas. Simples fachada…
Como letras mortas ou um poema sem encantos, o marxismo, o lassalleanismo e,
mesmo, o bernsteinismo ficaram para trás. Esse processo de degradação
aburguesada do socialismo e dos seus fundamentos teóricos e políticos não era
localizado. Grassava por toda a Europa e repudiava sua corrente revolucionaria
como pura verborragia. As dificuldades e a adulteração do marxismo, por causa
do isolamento e das consequências imprevistas da Revolução Russa, conferiam uma
aparência de verdade as versões da “democracia acima de tudo” emanadas do
farisaísmo pequeno-burguês e intelectualista. Se, de fato, a democracia
estivesse em jogo, ela jamais poderia ser dissociada do socialismo. Em relações
compassivas e comprometedoras com a ordem existente, ser cruzado da democracia
equivalia a abandonar o socialismo e atribuir ao capitalismo a faculdade de
assegurar liberdade, igualdade e solidariedade juntamente com a perpetuação da
propriedade privada, a expropriação do trabalhador dos meios de produção e a
intangibilidade da sociedade civil. Tratava-se do avesso do que fora a social democracia
anteriormente, em especial até o Kautsky revolucionário (do final do século XIX
até cerca de 1910).
Dois movimentos
históricos simultâneos reforçaram, ampliaram e aprofundaram a tendência
apontada. De um lado, a União Soviética necessitava de um “respiro histórico”
para sobreviver através da coexistência pacifica, alternada com eclosões
ocasionais de hostilidade programada com as nações capitalistas. As “frentes
populares” puseram em primeiro plano a democracia como valor final. Deixaram a
parte, porem, o questionamento fundamental: que tipo de democracia? A
capitalista, que institucionaliza a classe como meio social de dominação e
fonte de poder, ou a socialista, que deve tomar como alvo a eliminação das
classes e o desenvolvimento da autogestão coletiva, passando por um período de
dominação da maioria, tão curto quanto possível? De outro lado, a expansão do
capitalismo – com um prolongado espaço de tempo de prosperidade, dissuasão
policial militar das divergências dos que poderiam ser representados como
“inimigos” internos e externos, coalescência de um sistema mundial de poder e
alternância de promessa e repressão – forjava novas condições de aburguesamento
dos assalariados qualificados, dos intelectuais e da “solução negociada” dos
conflitos por emprego, níveis de salários, padrões de vida ou oportunidades
educacionais.
Pela própria impulsão das
transformações democráticas da civilização, a “reforma capitalista do
capitalismo” brotava como alternativa ao socialismo e como “via de transição
gradual” até ele. Willy Brandt personifica essa objetivação da liquidação da
social democracia como partido socialista stricto sensu. A presença
norteamericana e aliada na Alemanha justificaria a evolução. Contudo, poderia,
por si só, servir como ingrediente revolucionário, se o socialismo proletário
marxista se tivesse mantido vivo no SDP. E o resto da Europa? Ali o processo
ocorreu generalizadamente, o que implicava uma opção contra o socialismo revolucionário,
em favor do aburguesamento. Essas considerações nascem de uma convicção:
enfrentamos o perigo de ver abater-se sobre nós o restabelecimento da confusão
entre democracia e socialismo.
3 comentários:
O único problema de Florestan foi que FHC (que foi orientado por ele em seus trabalhos acadêmicos), estabeleceu uma forte relação afetiva, mantida até sua a morte.
Mas a sua brilhante linha de trabalho foi marcada pelo estudo das perspectivas metodológicas da sociologia.
Florestan Fernandes foi uma das maiores e melhores cabeças que passaram por este país.
Agora se o FHC -enquanto sociólogo- admirava-o, temos que, primeiro admitir que ele admirou quem merecia ser admirado. E segundo lembrar que ele (FHC) pediu para que a gente esquecesse tudo o que ele disse ou escreveu no passado.
Eu esqueci. Para mim ele é apenas o presidente que doou a riqueza do país!
Aqui se procuram caminhos para um futuro melhor e mais saudável para a humanidade.
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