Entrevistado há poucas semanas pelo cientista político sul coreano Lee Su-hoon, Immanuel Wallerstein avança no exame sobre a crise sistêmica iniciada em 2007, muitas
vezes expressando os seus pontos de vista pouco usuais.
Entrevista publicada originalmente no Boletim
Controvérsia número 101.
Lee Su-hoon: Você disse: “Nos próximos 50
anos o mundo vai mergulhar em uma turbulência econômica séria e, mais tarde, o
capitalismo vai enfrentar uma crise tremenda, como a da Grande Depressão”. As
pessoas dizem que a crise se deve à ganância de Wall Street e à bolha
imobiliária etc. Como você analisa essa crise?
Wallerstein: Faz cinco anos que eu não mudo
de opinião. Basicamente, a meu ver, estamos em uma crise estrutural da economia
capitalista mundial desde os anos 1970, e ela vai continuar. E não vai ser
totalmente resolvida até talvez 2040 ou 2050. É difícil prever a data exata,
mas vai levar muito tempo. No momento, o sistema mundial está bifurcado. Tem
problemas de tal magnitude que não poderá sobreviver, está tão longe do
equilíbrio que não há como voltar atrás. Mas para onde ele vai é totalmente
incerto, porque, como disse, essa bifurcação significa que, tecnicamente, há
duas formas de resolver uma mesma equação, o que não é normal.
Em linguagem leiga, isso
significa simplesmente que o futuro sistema mundial, ou sistemas mundiais
(porque não sabemos se haverá um só) que vai ou vão surgir no final desse
processo podem ter, no mínimo, duas variedades fundamentais. Assim, não se pode
prever qual sistema teremos, porque ele vai ser uma consequência de uma
infinidade de nano-ações, desempenhadas por uma infinidade de nano-atores, em
múltiplos nano-momentos – e ninguém é capaz de elaborar tanta coisa. Mas vai
acontecer. Então, aqui estamos nós, no meio de tudo isso. É caótico, como se
diz.
E o que significa dizer “É
caótico”? Significa que as flutuações são enormes e, portanto, há incertezas
inclusive no prazo muito curto. Isso significa que uma pessoa que preveja qual
será a relação entre o iene, o dólar, o euro e a libra dentro de um ano será
alguém muito corajoso. Não há como saber. Mas os empresários precisam dessa
informação. Eles têm de ter o mínimo de estabilidade, do contrário correm o
risco de sofrer perdas enormes. Isso os deixa paralisados, com muito receio de
se envolver em qualquer tipo de investimento, uma das coisas que está
acontecendo no mundo todo. É por isso que o desemprego explodiu. E é também por
isso que os governos estão em tal dificuldade financeira, pois sem essa
produção adicional não há receitas fiscais, e sem receitas os governos passaram
a sofrer um grande aperto. E então o desemprego aumenta, o que coloca mais
pressão sobre o governo. É o que acontece hoje em praticamente todos os países
do mundo. Os governos têm menos dinheiro e enfrentam demandas para gastar mais.
Isso, naturalmente, é impossível: não se pode ter menos e gastar mais. Então,
eles vêm com tudo quanto é tipo de solução. Nenhuma parece funcionar. É onde
nos encontramos atualmente.
Lee: E muitos países europeus estão
enfrentando uma crise fiscal, uma espécie de moratória, o que os leva a tentar
obter ajuda da UE (União Europeia) e do BCE (Banco Central Europeu).
Wallerstein: Os europeus têm um problema
básico. Possuem pelo menos nove moedas, e 17 países compartilham o euro. Mas
não têm um governo federal. É uma situação muito complicada, pois significa que
os governos não podem intervir em sua própria moeda. Uma dos instrumentos que
os governos utilizam tradicionalmente para lidar com suas dificuldades é
aumentar ou diminuir o valor da moeda. Ao diminuir o valor da moeda pode-se
vender mais; aumentando o seu valor, pode-se comprar mais. Os países da zona do
euro não têm essa opção, porque nenhum país tem moeda própria. E eles estão
enfrentando os mesmos problemas de todos os outros. Ou seja, exigências
crescentes, porque o aumento do desemprego gera mais demandas sobre o governo.
Ao mesmo tempo, a receita do governo diminui, porque não há empregos.
Sua única opção (da Grécia,
Espanha, Portugal ou Irlanda) é obter ajuda, algum tipo de solidariedade. Então
eles se deparam com a relutância, por parte dos países mais ricos, em “salvar”
os mais pobres. Isso não leva em conta o fato de que o único e maior
beneficiário da zona do euro é, de fato, a Alemanha. E é justamente o país que
está fazendo o maior estardalhaço sobre não querer ajudar outros países, a
menos que façam X, Y ou Z – medidas que, na verdade, só pioram a situação. Essa
é a questão da zona do euro. É o problema enfrentado por todo o mundo, acrescido
do fato de que esses países não podem manipular individualmente suas próprias
moedas. Mas o problema básico não é diferente daquele dos EUA, da Rússia, do
Egito ou de qualquer outro lugar onde haja aperto.
Lee: Aqui na Coreia, os especialistas
e a mídia apresentam dois argumentos diferentes. A Irlanda, a Grécia e outros
gastam muito dinheiro em benefícios sociais – essa é uma linha de argumentação.
A outra é o efeito de contágio, por causa da facilidade de migração na zona do
euro.
Wallerstein: Vamos lidar com os dois
argumentos. O primeiro é “a Grécia está em apuros porque exagerou no bem-estar
social”. Isso é exatamente o que o Partido Republicano diz sobre os EUA. É um
mesmo argumento para todo o mundo, não um argumento especial para a Grécia. A reação
das forças mais conservadoras a essa crise é dizer “corte benefícios”, o que
significa “reduzir os gastos do governo”. Mas se você cortar benefícios reduz
também o poder de compra das pessoas. Cria assim uma demanda menos eficaz. Por
exemplo, uma pessoa que fabrica camisetas, ou algo assim, tem menos clientes.
De forma que essa não parece ser a solução. Para mim, só piora o problema. De
qualquer forma, a questão é que não é um problema específico da Grécia, da
Espanha ou de Portugal. É um problema de todos os países.
Agora, o efeito de contágio. O
que acontece é que, como os governos estão sem recursos, precisam de dinheiro
emprestado. E para obter esse dinheiro, dependem do mercado. As pessoas
emprestam dinheiro com mais facilidade quando veem possibilidades de obter
reembolso. Então há, sim, um efeito de contágio na Europa: a Grécia começa a
ter problemas, Portugal e Irlanda começam a ter problemas, e Espanha e Itália
começam a ter problemas. E agora é a França que está se metendo em encrencas, e
depois a Holanda e a própria Alemanha. É o efeito de contágio, em parte criado
pelas agências de classificação de risco – que não são neutras –, mas também um
problema muito real. O efeito de contágio vai da Europa para os EUA, e da
Europa para o resto do mundo. Vai deixando as pessoas paralisadas. Isso
significa que, quando veem as coisas indo tão mal, dizem “bem, pode dar errado
em outros lugares também, portanto, não vamos emprestar o dinheiro”, ou “vamos
exigir taxas de juro mais elevadas”.
Mas se tomamos o dinheiro
emprestado a taxas de juros mais altas, sobra ainda menos dinheiro para gastar
em outras coisas. Esse é exatamente o problema mundial. Então, novamente, não
vejo isso como um problema especialmente europeu. A questão na Europa, no
momento, é saber se as forças que dizem ”os países europeus estariam em
situação melhor se não houvesse euro” conseguirão aboliro euro e voltar para
suas moedas nacionais. Há um certo movimento nessa direção, tanto da direita
como de alguns setores de esquerda.
A esquerda europeia não gosta do
fato de que Bruxelas, com tanta influência, tenha um viés neoliberal tão forte.
Diz-se (em alguns países escandinavos e mesmo na França): “estaríamos melhor se
estivéssemos livres do controle de Bruxelas”, em oposição ao ponto de vista
ainda dominante – o de que o euro fortalece a posição europeia frente ao resto
do mundo e, mais especificamente, frente aos Estados Unidos.
Está acontecendo uma luta
política, não há dúvida. Tendo a acreditar que, em geral, deve-se separar a
retórica política da realidade e das pressões geopolíticas. A retórica política
é em geral uma resposta a uma circunstância política imediata de um país. Se a
chanceler Angela Merkel diz certas coisas na Alemanha, não é necessariamente
porque ela acredita naquilo, mas porque, na próxima eleição, que pode ser muito
em breve, ela julga que com isso ganharia votos. A mesma coisa vale para Obama.
Vale também, tenho certeza, para o presidente da Coreia. Os políticos têm de se
preocupar com a próxima eleição. Isso não significa que: (a) eles querem
realmente dizer o que falam, e (b) o que dizem tem importância. Não acho que
importe muito.
Ainda que, numa situação muito
volátil, a estupidez possa prevalecer. Em geral, o que acontece é decorrente de
pressões geopolíticas. Então, penso que a pressão para manter o euro, os
benefícios em termos de geopolítica, são muito maiores do que a pressão para
voltar às moedas individuais.
A chanceler Merkel está dizendo
às pessoas, em toda a Europa, “deixem-me fazer isso, e então terei cacife
político para convencer os políticos e eleitores alemães a me acompanhar”.
Penso que a Europa vai concordar com um aumento do federalismo, ainda que não
chamem isso de federalismo, porque não gostam dessa palavra. Mas um
fortalecimento do poder central e, em consequência, um aumento do fluxo de
dinheiro. Nos EUA, um estado como o Mississippi só não vai à falência porque o
governo federal pode redirecionar dinheiro para lá. É disso que a Europa
precisa. É isso o que querem realmente dizer as pessoas que estão clamando por
“solidariedade”.
Se você me pedir que faça
previsões, penso que a probabilidade de vermos, em três anos, não apenas um
euro, mas um euro fortalecido, é muito maior do que o contrário. E algum tipo
de mecanismo que permita enfatizar menos a prosperidade e mais a volta de
recursos, ter o dinheiro fluindo novamente, é a única solução de curto prazo
para os problemas europeus, assim como para os dos EUA.
Lee: Gostaria de acrescentar algo em
sua análise da situação da zona do euro. Você mencionou os países escandinavos,
que são mais fortes em termos de benefícios sociais. São os que mais gastam com
bem-estar social e os que pagam mais impostos. Mas não estão em crise, embora
se argumente que o chamado “populismo do bem-estar” social é inteiramente
errado.
Wallerstein: Sim, evidente. Isso pode
ser demonstrada de várias maneiras. É claro, existem cinco países nórdicos
diferentes, cada um com uma situação um pouco diferente, inclusive aqueles que
estão e aqueles que não estão na zona do euro, e os que estão e os que não
estão na OTAN. Mas, em geral, você tem toda a razão ao dizer que aqueles cinco
países nórdicos ainda são estados de bem-estar fortes, com impostos
relativamente altos.
Lee: Sim, na verdade o problema
fiscal da Europa é um problema mundial. Quando você olha para países
específicos, há diferenças. Em alguns países, a corrupção é mais grave do que
em outros.
Wallerstein: Vamos nos deter um pouco na
corrupção. Penso que a corrupção é mais grave nos EUA, na Grã-Bretanha, na
França e na Alemanha, do que em alguns casos de países muito citados em todo o
mundo. Eles são fichinha, perto da corrupção real. Temos escândalos o tempo
todo nos EUA, França e Grã-Bretanha. Quando você se depara com esses
escândalos, de repente descobre que se trata de trilhões de dólares. Já quando
ocorre algo do tipo em Myanmar ou no Iraque, por exemplo, estamos lidando com
milhões, nem sequer com bilhões de dólares.
Assim, a corrupção é uma arma
deveras etnocêntrica. Os países do Norte tendem a dizer que os do Sul são
imorais, porque são corruptos. Mas não dizem que somos imorais porque somos
corruptos. A corrupção é geral em nosso sistema. É geral porque, se você tem um
sistema em que o principal objetivo é a acumulação de capital, a corrupção é
simplesmente um aluguel que as pessoas que estão no lugar certo cobram, da
acumulação sem fim do capital. Dizer que “eles não deveriam” é uma posição
moral correta, mas retórica, porque eles irão até onde der, já que a opinião
pública não gosta de enxergar a corrupção. E talvez uma ou duas pessoas sejam
presas por um tempo relativamente pequeno, mas, basicamente, nada mais é feito
contra a corrupção. Quando foi a última vez que uma pessoa corrupta dessas foi
mandada para uma prisão de verdade, por um período realmente longo e teve de
devolver todo o dinheiro que levou? Isso simplesmente não acontece.
Lee: Quando ouvi o discurso de
feito por Obama ao se candidatar à reeleição, anotei o que ele apresentou como
receitas para salvar os EUA dos tempos difíceis: criar mais postos de trabalho
na indústria, reconstruir a classe média, enfatizar a educação, cortar tributos
sobre a riqueza, uma nova política energética, a redução das importações e
benefícios sociais que incluíssem assistência médica – um tema sempre muito
controverso nas eleições norte-americanas. Mas eu me surpreendi ao ouvir as
mesmas coisas dos candidatos presidenciais aqui na Coreia do Sul. Claro, a
Coreia tem uma situação peculiar: a divisão da península, razão pela qual a
questão da paz e a questão nuclear são importantes. Fora isso, os programas e
políticas socioeconômicas eram mais ou menos idênticos. Isso me levou a pensar
se a Coreia do Sul seria como os EUA socioeconomicamente. Cerca de vinte anos
atrás a Coreia do Sul foi saudada como modelo para os países de Terceiro Mundo,
uma vez que alcançou o crescimento econômico com relativa igualdade. Mas após
as crises de 1997 e 2008 a Coreia do Sul revelou-se muito parecida com os EUA,
e então as receitas políticas são quase idênticas nos dois países, penso eu.
Wallerstein: Bem, não discordo. Dentre os
países mais ricos do mundo, a Coreia do Sul não está no topo, mas não está
muito mal. As opiniões sobre o bem-estar social parecem estar divididas entre
os conservadores e as pessoas de esquerda. Mas penso que, na verdade, a divisão
pode ser mais ampla. Quando se olha para o papel do governo nos países mais
pobres do mundo, ainda há a questão de quanto eles têm de benefícios sociais.
Uma das coisas que o neoliberalismo, como um movimento atuante desde os anos
1980, tem prescrito para os países do Sul é: “Vejam, ocês têm todos esses
problemas econômicos. Querem emprestar dinheiro de nós? Então reduzam os
benefícios sociais, porque isso é dinheiro jogado fora”. A teoria age como uma
força conservadora contra o governo local, que está atuando mais à esquerda. É
o mesmo tipo de debate.
Você se lembra da
chamada ”crise da dívida asiática” de 1997? De repente, uma série de
países do Leste e do Sudeste da Ásia se viu encrencado economicamente. Ou seja,
o dinheiro desapareceu. Os governos viram-se em apuros. Alguns buscaram ajuda,
dizendo: “emprestem-nos dinheiro.” E esses governos contaram que a resposta
recebida em geral foi: “emprestar dinheiro para vocês? Sim, desde que façam
assim e assado”.
O único país que se recusou a
tomar dinheiro emprestado nesses termos foi a Malásia — e ela foi o que se
recuperou mais rapidamente, por ter recusado. Ao aceitar as exigências, a
Indonésia provocou a queda de Suharto. E eu gostaria de citar este episódio.
Trata-se de uma famosa atuação de Henry Kissinger, um político reconhecidamente
de direita. Após a queda de Suharto, ele escreveu: ”como vocês (FMI e
governo dos EUA) podem ser tão estúpidos? Vocês prescrevem para o governo de
Suharto medidas que provocam sua queda e colocam, no seu lugar, um governo à
esquerda dele. É mais importante manter Suharto no poder do que negar-lhe
dinheiro. Vocês não entenderam suas prioridades. A prioridade é geopolítica, e
não econômica”. Ele os repreendeu por fazer o que vinham fazendo há dez ou
vinte anos em países menos importantes que a Indonesia.
A Coreia ficou no meio, tendo em
vista o modo como respondeu. Teve uma atuação melhor do que a dos países que se
entregaram completamente ao FMI, mas não tão boa quanto a da Malásia. Uma das
coisas que se aprende com isso, e depois do que aconteceu na Argentina, é que
esses países têm mais poder geopolítico do que acreditam ter e são mais capazes
de reagir contra agências tipo FMI. Naturalmente, o FMI e o Banco Mundial
aprenderam a lição. E começaram a falar em programas contra a pobreza. De
repente, sua linguagem mudou, como resultado da crise da dívida asiática,
porque se deram conta daquilo que Kissinger estava lhes dizendo: precisam ser
mais astutos politicamente; não podem ser estritamente econômicos em suas
exigências.
Lee: Na convenção do Partido Democrata
norte-americano deste ano, Joseph Biden afirmou, repetidamente, que “os EUA não
estão em declínio”, e Obama disse que “os EUA são um país do Pacífico”. Isso
pode ser interpretado como um retorno dos EUA à zona asiática do Pacífico,
inclusive sugerindo a contenção da China.
Wallerstein: Aqui há duas questões. Uma
delas é afirmar que os EUA não estão em declínio. A outra é o que eles estão
tentando fazer com essa ênfase na Ásia e no Pacífico.
“Os EUA não estão em declínio” é
um mantra nos Estados Unidos. Nenhum político pode dizer que os EUA estão em
decadência. Na verdade, todos eles se esforçam para negar essa realidade,
porque a população dos EUA não está preparada para aceitar o fato de que os EUA
não são mais o “Número 1”, um exemplo admirado no mundo inteiro. Eles
não vão dizer isso publicamente. É uma pena porque, a meu ver, uma das coisas
importantes é tornar a população dos Estados Unidos mais consciente da
realidade geopolítica e do fato de que os EUA são um país muito forte – mas não
mais, em nenhum sentido, acima dos demais. Há vários países com avaliação
melhor que os EUA em determinadas questões. E a capacidade de os EUA para
influenciar a situação em várias partes do mundo diminuiu enormemente. Então,
penso que é preciso separar a retórica política da realidade política.
E agora, o que os Estados Unidos
estavam fazendo na Ásia? A primeira coisa a notar é que os EUA não têm força
econômica e militar suficiente para engajar-se por completo, como costumavam,
na Europa e na Ásia. Se eles dizem publicamente “vamos estar fazer isso na
Ásia”, querem dizer ao mesmo tempo que não vão fazer isso na Europa. Isso não
está sendo ignorado pelos europeus. Está sendo ignorado pela opinião pública
dos Estados Unidos. Ou seja: isso, em parte, é admitir o declínio.
Agora, a segunda parte
é ”conter” a China. Os comunistas chegaram ao poder em 1948. A China não
tem sido politicamente popular nos EUA. A Guerra da Coreia, entre o Norte e o
Sul da península, foi também uma guerra entre os EUA e a China. Não a
denominamos assim, mas essa é a realidade. E a linha de armistício não é tão
diferente da linha anterior à guerra. Considero que houve um empate militar
entre a China e os EUA. Nenhum dos lados ganhou. No entanto, a retórica era
muito forte nos dois lados, China e EUA denunciando um ao outro de todas as
maneiras possíveis, até que Nixon foi à China, guiado por seus instintos geopolíticos
e os de Henry Kissinger. A combinação era bastante forte. Ambos eram muito
cínicos e muito inteligentes. Naquele momento, a China travava uma grande
disputa com a União Soviética. Tinham um terreno comum. Uniram-se contra a
União Soviética, é simples assim.
Agora, a Guerra Fria acabou, e a
União Soviética não existe mais, e há algo chamado Rússia, que é o mesmo país e
ao mesmo tempo um país extremamente diferente. A China ficou mais forte do que
era antes – militarmente e economicamente. Mas não se deve exagerar. A China
está se afirmando geopoliticamente como líder da Ásia. Mas, trinta anos atrás,
ninguém na África ou na América Latina pensava na China. A China simplesmente
não fazia parte da cena. Agora, mudou. A China ambiciona ser uma potência, e
uma potência mundial precisa interessar-se por todas as partes do mundo, da
mesma forma que os EUA e a Grã-Bretanha, que são potências mundiais, estão
interessados em todas as partes do mundo. Nesse sentido, a União Soviética era
uma potência mundial.
A China e os Estados Unidos têm
muitas diferenças sobre questões imediatas, e esfregam isso na cara um do
outro, de modo errado, de tempos em tempos. E atualmente há um monte de
difamadores da China nos EUA. Os políticos gostam de culpá-la por tudo. Isso irrita
os chineses, mas é um jogo. Se você olhar para a realidade das políticas dos
Estados Unidos e a realidade das políticas chinesas ao longo dos últimos trinta
anos, verá que eles nunca fizeram nada que ultrapassasse os limites um do
outro. Têm sido muito cuidadosos em manter boas relações geopolíticas.
Então, não considero tão
significativa a nova ênfase dos EUA na Ásia e no Pacífico. Primeiro, vejo isso
como um show de retórica, em parte para os EUA e em parte para os outros países
da Ásia, porque há que se preocupar com a Coreia do Sul, Japão, Vietnã e
Filipinas. Estes países são ambivalentes com relação aos EUA. Eles gostam dos
EUA, porque Washington os ajuda em certas coisas. Por outro lado, não querem
realmente os EUA. Então, têm relações complicadas. E os EUA sentiram que
precisavam reassegurar a esses aliados que não os haviam excluído da cena
completamente. Não acho que seja mais do que isso. Penso que, quanto a isso, os
dois lados não vão cruzar a linha, a não ser a linha retórica, no máximo.
Agora, a península coreana é de
fato uma das questões cruciais nas relações EUA-China, porque temos um país
chamado Coreia do Norte e outro chamado Coreia do Sul. Ambos são muito
coreanos, e o nacionalismo coreano é muito forte. A pressão geopolítica pela reunificação
é enorme. E agora os EUA e a China têm de se preocupar com isso. Se as tropas
americanas tiverem que sair, isso significa que a Coreia reunificada possuiria
armas nucleares? E se eles tiverem armas nucleares, o que os japoneses diriam
sobre isso? E Taiwan? Penso que a pressão para nuclearizar, para acabar com a
abstenção de armas nucleares na Coreia do Sul, no Japão e em Taiwan é muito
forte. Não acho que os EUA estejam felizes com isso. Nem a China. O que leva à
aproximação, não ao distanciamento dos EUA e da China. E ambos estão tentando
descobrir, “podemos parar este processo?”
Não posso enxergar o que têm em
mente, mas suspeito que isso está no topo da sua lista de preocupações. O fato
é que eles antecipam, não que a Coreia do Norte vá se desnuclearizar, mas que a
Coreia do Sul, o Japão e Taiwan venham a se nuclearizar. Se você me pedir
novamente uma previsão, diria que em dez anos, todos eles estarão
nuclearizados. E não acho isso desastroso. O fato de os EUA e a União Soviética
terem, ambos, armas nucleares, foi um fator importante para garantir que não
haveria guerra entre eles. Foi uma coisa positiva, e não negativa.
Agora, é claro, com armas
nucleares existe sempre a possibilidade de desastre. As armas nucleares
estão em determinado lugar, sob um comandante militar. Ele pode apertar um
botão qualquer e dispará-las. Nossa aposta é que ele, como indivíduo, irá
obedecer ao comandante-em-chefe do seu país. Em 999 das vezes, é possível
contar com isso. Mas há sempre uma chance em mil de haver um oficial
descontrolado. Ademais, é bem verdade que, havendo mais armas nucleares no
mundo, as pessoas podem roubá-las. Isso vem sendo discutido com relação ao
Paquistão. Continua-se a dizer: ”Você sabe, o Paquistão tem de 70 a 80
armas nucleares e bombas” e “Será que os lugares onde estão armazenadas
são realmente bem protegidos?”, “Alguém, afiliados à Al Qaeda ou talvez a outro
grupo, poderia atacá-los e roubá-los?”
Assim, não excluo o potencial
negativo da nuclearização generalizada. Mas não penso que isso significa que o
Irã irá bombardear alguém. Na verdade, os governos usam as armas nucleares como
um mecanismo de defesa, e não um mecanismo agressivo. Usam como um modo de se
safar de ser bombardeados. Os EUA foram para o Iraque não porque ele tinha armas
nucleares, mas porque ele não tinha. Os EUA sabiam que, portanto, Bagdá não
poderia responder com uma arma nuclear.
Penso que essa é a lição que o
Irã e a Coreia do Norte tiraram imediatamente do que aconteceu no Iraque. Na
verdade, do ponto de vista da Coreia do Norte, essa é a única proteção real que
eles têm militarmente, no momento. Minha previsão é de que, em dez anos, todos
os países da Ásia Oriental terão essas armas. E também muitos outros países,
como Brasil e Argentina. Suécia, Egito e Arábia Saudita as terão. Sempre pelas
mesmas razões: para evitar de ser bombardeado pelos outros.
Lee: E se todo mundo desistisse
das armas nucleares, inclusive aqueles que já as possuem?
Wallerstein: Isso seria o ideal, se você
considera possível convencer os EUA ou o Paquistão, Índia, Israel, França e
Grã-Bretanha. Mas não há política que possa persuadir esses países a reduzir os
armamentos nucleares a zero. Você poderá persuadi-los a reduzir o número de
bombas que têm, em certas condições. Mas voltar a zero não seria prático. Pela
simples razão de que é difícil verificar se os outros estão de fato reduzidos a
zero. Há muitas maneiras de esconder essas coisas. É por isso que eles não vão
aceitar.
Mas essa é a razão porque o
tratado de não-proliferação nuclear é uma farsa, pois basicamente o que ele diz
é que ninguém deve possuir armas nucleares, exceto os cinco membros permanentes
do Conselho de Segurança da ONU. O resto de vocês, o mundo todo, deve renunciar
a qualquer tentativa de ter armas nucleares, e em troca disso nós prometemos
duas coisas: (1) vamos reduzir significativamente o nosso estoque, e (2) vamos
permitir que você desenvolva a energia nuclear para fins pacíficos.
Desde que o tratado entrou em
vigor, não houve uma redução significativa, e agora todo o mundo está falando
novamente em renovar e expandir. Os três únicos países que se recusaram a
assinar o tratado são a Índia, o Paquistão e Israel. E isso agora está
praticamente aceito. Eles desafiam o mundo, desafiam todas as regras, e agora
são membros do clube. Os EUA têm boas relações com os três países, e nenhum foi
penalizado por ter armas nucleares.
Lee: Então, o que você diz sobre
a nossa tentativa de persuadir a Coreia do Norte a desistir das armas
nucleares…
Wallerstein: É que é impossível. Se eu estivesse
dirigindo a Coreia do Norte, certamente não concordaria.
Lee: Se for esse o caso, acha
que o impasse atual entre os EUA e a Coreia do Norte vai continuar? E o que
dizer da China?
Wallerstein: Mais uma vez, há a retórica
e a realidade. De fato, os diplomatas norte-americanos sabem, todos, que essa
proibição é impossível. Mas não sabem o que fazer. Eles certamente não podem
dizer, por razões políticas internas, que “não há esperança”. Então imaginam
que, colocando pressão sobre a China, estão, por tabela, pressionando a Coreia
do Norte. E usam um mecanismo de retardo, não um mecanismo sério. Os militares
dos EUA dizem “não vamos enviar tropas ao Irã em hipótese nenhuma”. Por
outro lado, os EUA estão comprometidos com Israel e Israel, por sua vez, está
dizendo: “Temos que bombardear o Irã”. Então, o que fazem os EUA? Operam com
seu mecanismo de retardo. Isso reflete as limitações essenciais do poder dos
EUA, o que revela parte de seu declínio. Houve um tempo em que eles não
precisavam retardar. Houve um tempo em que podiam tomar decisões fortes sobre
outros países. Já não podem. Aqui estamos. Separemos a retórica da realidade
geopolítica.
Lee: Isso deixa muitos coreanos
progressistas, que são-aliança, pró-negociações, pró-diplomacia, pró-processo
de paz, muito pessimistas.
Wallerstein: Por que? Há muitos
possíveis acordos entre as Coreias do Norte e do Sul, a começar pelas questões
econômicas. Veja, se você está no comando de um regime como o da Coreia do
Norte, tem que levar em conta a realidade geopolítica. Por outro lado, quer
permanecer no poder. Até agora, eles contaram com um regime de mão pesada,
muito repressivo, e o apoio do exército. Podem tentar continuar a reprimir a
maioria, os famintos, podem tentar ludibriá-los com a ideologia, tentando
fazê-los acreditar que vivem maravilhosamente bem. Mas hoje é cada vez mais
difícil fazê-los acreditar nisso. Então é preciso dar-lhes um pouco de
bem-estar social – o que significa que deve haver algumas mudanças na política
econômica da Coreia do Norte, na linha das que foram feitas pela China e
Vietnã. Tanto a China quanto o Vietnã mostraram a eles um modelo, no qual um
partido único pode permanecer no poder e ainda assim promover uma abertura
econômica. E acho que o novo líder está tentado pela idéia, mas é um caminho
difícil. Ele tem as mesmas dificuldades em negociar com o seu público interno
que a chanceler Merkel tem, que Obama tem, e certamente todo o mundo precisa se
preocupar em manter a retórica satisfatória, internamente. Assim, ele pode ser
capaz de ter algo equivalente ao que os chineses fizeram, como as Zonas
Econômicas Especiais.
Lee: Se você fosse o presidente da
Coreia do Sul, interessado em desenvolver boas relações com a Coreia do Norte,
se esforçaria mais para ajudá-la nesse esforço?
Wallerstein: Se eu fosse o presidente da
Coreia do Sul é o que eu faria, até onde fosse politicamente possível. Você
precisa assegurar um equilíbrio, mantendo o poder político na sua base e as
demandas geopolíticas. Mas penso que esse vai ser o caminho a seguir. Sei que a
resposta das forças mais conservadoras na Coreia do Sul seria dizer ”bem,
nós tentamos uma política de diálogo e não funcionou.” E a resposta
é ”sim, não funcionou, em parte porque os tempos eram diferentes, o líder
era diferente, com uma atitude diferente. E em segundo lugar porque as coisas
foram feitas sem entusiasmo. Talvez a gente tenha que fazer ainda
mais.” Esse tipo de debate acontece o tempo todo na política.
Lee: Tocamos em muitas questões
hoje. Uma última questão é sobre o capitalismo fundamentalista. Depois da crise
de 2008, houve uma volta à abordagem keynesiana do mercado. Pessoalmente, acho
que eles não estão certos, mas isso levanta a questão do futuro do capitalismo.
Wallerstein: Algumas reformas vão
resolver esse problema. Mas as pessoas estão muito reformistas na sua abordagem
dos problemas. É muito difícil para elas aceitar o fato de que há alguns
dilemas insolúveis. Quando digo que alguma coisa é insolúvel, elas dizem “oh,
nós gostamos do seu argumento até aqui, mas esse ponto nos incomoda.” Os
sistemas têm vida. Nenhum sistema dura para sempre. Seja o universo, o maior
sistema que possamos conhecer, ou o menor dos nano-sistemas que não podemos
ver, nenhum deles vai durar para sempre. Em sua vida, os sistemas se movem
gradualmente para mais e mais longe do equilíbrio até atingir um ponto em que
já não podem equilibrar-se novamente. E nós somos um sistema. É o chamado
sistema mundial moderno. Foi um sistema bem sucedido, mas atingiu o limite das
possibilidades. Quando comecei a dizer isso, trinta anos atrás, as pessoas
riam. Agora elas não riem, argumentam contra. Já é um progresso. Penso que
daqui a vinte anos as pessoas vão estar bem conscientes disso. Pelo menos assim
espero, porque é muito difícil empenhar-se em políticas inteligentes para
tentar empurrar o mundo para a direção certa, sem que se esteja ciente da
realidade.
3 comentários:
Alem de fazer uma análise geral da situação mundial, principalmente na questão EUA-China, Wallerstein deixa clara uma questão: a Alemanha, que entrou em duas guerras porque começou tarde sua expansão Colonialista no século XIX, conseguiu agora as suas colônias [bem ao seu lado].
O sonho de Hitler de ter uma Europa unificada sob o comando germânico [o chamado "espaço vital"] é hoje uma realidade contundente.
Ironias da história! Die Dame Merckel conseguiu isso de leve, jogando pesado.
Que senhora entrevista!
Todos os seus raciocínios são precisos, mas quando ele fala que:
"A reação das forças mais conservadoras a essa crise é dizer “corte benefícios”, o que significa “reduzir os gastos do governo”. Mas se você cortar benefícios reduz também o poder de compra das pessoas. Cria assim uma demanda menos eficaz. Por exemplo, uma pessoa que fabrica camisetas, ou algo assim, tem menos clientes. De forma que essa não parece ser a solução. Para mim, só piora o problema. De qualquer forma, a questão é que não é um problema específico da Grécia, da Espanha ou de Portugal. É um problema de todos os países."
Explica o capitalismo tal e qual ele é.
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