Retratos de Memória
de André Setaro
Uma Pensata de Jorge Vital de Brito Moreira sobre André Setaro. Originalmente publicada em:
http://catoverde-cmbryan.blogspot.com.br/
Encontrei
o amigo André Setaro, pela primeira vez, em torno de 1967, durante as filmagens
do filme “Perâmbulo”, um inteligente
curta metragem de autoria dos jovens amigos cineastas José Humberto e José
Carlos Menezes. Éramos um grupo de jovens (amigos e conhecidos), interessados
em cinema e música que estávamos reunidos num restaurante ao lado do Teatro
Castro Alves no largo do Campo Grande (em Salvador-Bahia). Estávamos sentados nas
mesas do restaurante “almoçando”, ou seja atuando como extras para tomadas de
cenas do curta metragem. André Setaro, naquele tempo, era um rapaz jovem,
magro, alto, tímido e muito pálido.
Se
não me falha a memória, encontrei André pela segunda vez em frente à Faculdade
de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBa) que estava situada no
bairro de Nazaré em Salvador. Naquele tempo, eu, Zé Umberto, Chico Sampaio e
outros queridos amigos tínhamos começado a estudar a carreira de Ciências
Sociais na Faculdade de Filosofia depois de aprovarmos o exame vestibular. André,
um ou dois anos mais jovem do que nós, ainda estava se preparando para entrar
na Faculdade de Direito e estudar advocacia, carreira no qual se formou anos
mais tarde, ainda que nunca a tenha exercido. Uma das minhas lembranças recorrentes daquele tempo: observar
André caminhando em frente da Faculdade de Filosofia: frequentemente acompanhado de um guarda chuva
preto na mão direita.
Enquanto estudávamos sociologia, o amigo
Zé Umberto também aprofundava seus conhecimentos sobre a sétima arte, enquanto
eu estudava violoncelo e composição musical nos Seminários de Música da UFBa.
Num determinado momento da nossa jornada universitária, Zé decidiu produzir e
dirigir seu primeiro longa metragem, O
Anjo Negro, convidando-me para compor a música para a letra de “Estou só”,
um poema de sua autoria que dizia:
“Estou só Cada
vez mais estou só Meu barco não navega no mar
Meu aeroplano na linda galáxia não sabe voar Cada vez mais estou só”... Não necessito
ampliar este parágrafo para informar que o convite de Zé e a criação da música
me agradaram imensamente.
Para
o estudante de Sociologia, o filme O Anjo
Negro, de Zé Umberto, também ajudava a observar a sociedade brasileira como
uma complexa totalidade de relações sociais entre diferentes classes sociais, diferentes
raças e etnias, diferentes gênero sexual, diferentes nacionalidades e
diferentes gerações. Como estudante de sociologia também aprendemos como a
existência da ditadura militar com sua política de repressão, de tortura, de
assassinato de cidadãos brasileiros, era uma ameaça não só para a nossa sócio-econômica-cultural
posição de classe média, como também para a maioria da população da sociedade
brasileira. Todas as contradições e conflitos políticos, sociais, econômicos e
culturais entre as classes sociais, raças, sexos e entre as gerações antigas e
novas no Brasil caminhavam para uma confrontação decisiva a favor do nascimento
de uma nova sociedade porem a ditadura
militar brasileira surgiu na sociedade brasileira
para (de forma violenta, opressiva e criminosa) suprimir as diferenças e as contradições
da nossa historia social.
Depois
de formado em Ciências Sociais, eu, pessoalmente, tratei de conseguir um
emprego como um profissional especializado em Sociologia, mas nunca fui capaz
de encontrar trabalho como Sociólogo na cidade de Salvador, porque, nessa época,
os militares não permitiam. Do ponto de vista da ideologia dos ditadores, a Sociologia
era uma carreira inútil e/ou subversiva.
Sem alternativa, comecei a trabalhar como jornalista no conhecido jornal Tribuna da Bahia da cidade de Salvador. Anos
depois, deixei a Tribuna da Bahia e fui
trabalhar na floresta Amazônica, porque foi o único lugar onde pude conseguir um emprego como sociólogo
profissional.
Foi
durante esta época (desde 1974), que André Setaro se desenvolveu como colunista
profissional de cinema do jornal Tribuna da Bahia. Durante 40 anos, escreveu comentários
de cinema de grande qualidade analítica e crítica (numa frequência extraordinária)
e se transformou num dos mais importantes críticos cinematográficos da Bahia e
do Brasil.
Perdi
quase todo o contato com André Setaro, Zé Humberto, José Carlos Menezes, Edgard
Navarro e outros amigos ligados ao cinema baiano, durante os anos em que estive
trabalhando como sociólogo rural em Rondônia (na região Amazônica), em
Pernambuco e Bahia, nas margens do rio São Francisco, nas áreas posteriormente
inundada pela Barragem Sobradinho da CHESF.
O
distanciamento aumentou quando emigrei para estudar um mestrado no Mexico e um
doutorado nos EUA e comecei a trabalhar e a viver no exterior. Mesmo viajando
esporadicamente (nas férias) a cidade de Salvador para ver e visitar minha família,
parentes e amigos nunca tive a oportunidade de rever André.
Em
2008 viajei ao Brasil para lançar (nas cidades de Salvador, Feira de Santana e
Lençóis) meu livro Memorial da Ilha e
Outras Ficções, um volume composto de um pequeno romance sobre a viagem de
veraneio a Ilha de Itaparica e alguns contos sobre o período da ditadura
militar e os anos 60.
Foi
durante esse período que um grande amigo, o cineasta Edgard Reis Navarro Filho,
me contou da sacanagem que fizeram com o filme Revoada do diretor Zé Umberto e me informou da grave omissão de
cineastas baianos: foram incapazes de sair em defesa do diretor de Revoada e que André Setaro era um dos
poucos críticos de cinema que estava tendo o valor e a valentia de enfrentar o
grupo de Rex Schindler e escrever, quase diariamente, em defesa do diretor e
autor José Umberto Dias.
A falta de solidariedade, a
indiferença e covardia da classe cinematográfica baiana para apoiar Zé Umberto
me indignou e decidi escrever uma carta publica dirigida ao jornalista André
Setaro apoiando-lhe na sua luta para denunciar aquela absurda situação. André decidiu
publicar a minha carta no Setaro’s bloque com o título “A questão ‘Revoada’ vista de fora do Brasil” dado que eu estava
vivendo e trabalhando nos EUA. Na introdução a minha carta André escreveu: “Recebi de Jorge Vital, que conheci, quando a Bahia era a Bahia e não a cidade engarrafada, congestionada e enfartada dos tempos atuais, esta mensagem que coloca bem a questão Revoada, principalmente por um estudioso que mora há algum tempo nos Estados Unidos. Vital acompanhou todo o imbróglio por este blog e pelas publicações do espaço virtual que deram conta do terrível castigo imposto a um cineasta idealista como José Umberto.”
Depois
desta carta, voltamos a conversar com frequência, via telefonema internacional,
sobre o filme Revoada e diversos outros
temas que incluíam preferentemente o cinema (nacional, americano e europeu), a situação
de mediocridade e pobreza social-econômica-politica-cultural no estado da Bahia
e Brasil, a decadência dos serviços de saúde publica nacional, e o estado de
saúde pessoal.
Quando informei a André que
estava escrevendo sobre temas sócio-econômico-culturais, cinema e música em língua
castelhana para Rebelion.org, ele me perguntou se eu não
tinha interesse em escrever um texto em português sobre cinema para ser
colocado no Setaro’s Blog. Aceitei o convite e a primeira colaboração de Jorge Vital de Brito
Moreira para o Setaro’s Blog apareceu no 07 outubro 2009
e intitulou-se: "Capitalism: A Love Story, de
Michael Moore”. Esta colaboração era uma
tradução ao português de um texto meu originalmente escrito e publicado em
espanhol por Rebelion.org. A partir deste momento, nunca
parei de colaborar com o Setaro’s Blog, tanto com textos escritos
originalmente em português como com aqueles traduzidos do espanhol.
Tempo depois, André me apresentou
(por escrito) ao editor do blog Novas
Pensatas, o criativo artista Jonga Olivieri que além de ser um reconhecido
profissional da área de publicidade é também um lúcido escritor e primo querido
de André Setaro. Para minha surpresa e alegria, Jonga me convidou para
colaborar escrevendo para o blog Novas
Pensatas. Aceitei o convite dele e
até hoje continuo colaborando com Novas
Pensatas, além de desfrutar da amizade e generosidade de Jonga e sua
família.
Sempre
tive uma cálida admiração por André, pelos seus conhecimentos da arte
cinematográfica, pela forma ampla e
profunda com que ele preparava seus artigos sobre cinema para sua coluna na Tribuna da Bahia, para o seu Setaro’s
Blog e para Terra Magazine.
Com
o passar do tempo, na medida em fomos nos aproximando e que nosso
relacionamento e conhecimento se ampliaram, minha admiração por sua pessoa
também foi crescendo: admirava sua valentia e seu inconformismo quando falava
das características predominantes (caos, a violência, e degradação) que tomaram
conta da atual cidade de Salvador (a nossa querida terra natal); a sua compreensão
e generosidade para aqueles cineastas que dependiam dos editais públicos para
poderem realizar seus filmes, sua indignação contra a mediocridade e o
mercantilismo de autoridades cinematográficas ligadas ao governo brasileiro e
baiano e à maior parte da produção cinematográfica, a sua revolta contra as
altas taxas de juros impostas pelos bancos capitalistas contra a população
brasileira.
Era
gratificante observar a sua fortaleza na defesa dos seus pontos de vistas; era
estimulante constatar a sua resistência machadiana ao abrandamento e
aburguesamento politico (de amplos setores da classe média) decorrente da
realidade sócio-econômico-ideológica de 21 anos de ditadura militar, de discursos
liberais/populistas e de mitos nacionais tais como o do povo brasileiro como
homem cordial isento de racismo. Por estas (e outras) admiráveis qualidades de
André Setaro, sinto-me honrado de ter sido seu amigo, um admirador e um colaborador
do seu blog de cinema.
Tínhamos
planejado nos reunir na Salvador na minha próxima viagem ao Brasil. Então
viajaríamos de barco à Ilha de Itaparica para, junto ao mar azul, à areia
branca e às palmas dos coqueiros, conversar, bebendo cerveja e tomando banho de
mar, no Mar Grande (a cidade onde minha mãe nasceu e minha família veraneava).
Infelizmente, seu falecimento tornou estes planos inviáveis.
Mas
não me conformo: com tantos indivíduos (bilionários, políticos e militares) que,
no poder capitalista, tem sido reconhecidos e declarados como criminosos de
guerra no Vietnã, no Iraque e na Palestina, como indivíduos responsáveis pelo
genocídio de milhões de seres humanos indefesos, como indivíduos que mereceriam
estar, desde sempre, debaixo da terra em que semeiam tanto ódio, tanta guerra,
tanta miséria e destruição, não posso me conformar que a morte leve as pessoas
como André Setaro: pessoas que ainda jovens e produtivas (tinha apenas 63 anos)
que deveriam continuar vivas neste mundo para semear melhores frutos e reparti-los
entre os autênticos seres humanos.
Um comentário:
No conocí al crítico de cine, André Setaro personalmente, pero por lo que pude aprender de sus escritos y por lo que leí del ensayo del profesor Jorge Moreira,
creo que André era una persona admirable y no debería haber desaparecido tan temprano.
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