domingo, 24 de agosto de 2014

Pensatas de domingo



Manuel Sacristán Luzón e Francisco Fernández Buey, dois imprescindíveis comunistas democráticos que amaram Jenny Marx, Antônio Gramsci, Ernesto Guevara e Bartolomé  de Las Casas (1)


Salvador López Arnal (2)


                                   Para Jorge Moreira, intelectual admirável e comprometido, grande
                                   conhecedor da obra de Manuel Sacristán



¡Arden las pérdidas!, escreveu o poeta castelhano Antônio Gamoneda. Ele estava certo, muito certo. Agosto, já faz muitos anos, é um mês doloroso para a tradição marxista hispânica. No dia 27 de agosto de 1985 morreu em Barcelona, ​​na cidade de Teresa Pàmies e Giulia Adinolfi, Manuel Sacristán Luzón pouco antes de seu aniversário de 60 anos. Vinte e sete anos depois, em 25 de agosto de 2012, faleceu seu discípulo, amigo, companheiro e camarada Francisco Fernández Buey, aos 69 anos. Não foram só. Há poucos dias, também em agosto, nos deixou outra companheira essencial, outra lutadora inquebrantável que os amou, os estudou e  os admirou: Carme Conill Vall.

A marca de ambos no marxismo ibérico e latinoamericano (sem cegueira) tem sido extremamente importante. Sua influência política e cultural tem sido decisiva para várias gerações de cidadãos universitários e não universitários. Os escritos mais importantes de Manuel Sacristán estão reunidos em cinco volumes de "Panfletos y materiales" (e em sete obras póstumas). Francisco Fernández Buey é o autor de um imprescindivel Marx (sin ismos), de La gran perturbación, de La ilusión del método y Para la tercera cultura, su libro póstumo. O conjunto de seus prefácios, introduções, notas, artigos, entrevistas e magníficos panfletos  é quase inabarcável.

Seu marxismo, aberto a outras tradições emancipatórias (especialmente libertária) e outras escolas de pensamento, nunca foi uma filosofia fechada, dogmática, escura, difícil de entender, cheio até a fadiga e a exaustão de citações e nomes de autores. A clareza, profundidade, o pensamento crítico, que não se senta em assentos confortáveis, a documentação de teses defendidas foram características permanentes em ambos os casos.poucas obras de epistemologia marxista tão brilhantes como a que dedicou Sacristán a "O trabalho científico de Marx e sua noção de ciência" (inicialmente uma palestra proferida na Fundação Miró, em Barcelona, em 1978). Há poucos trabalhos calmos, argumentados e corajosos culturalmente como o dedicado por Francisco Fernández Buey "As virtudes do marxismo" (publicado na revista que mais fez sua durante muitos anos: Mientras Tanto), numa época em que quase todo o mundo, especialmente os intelectuais bem remunerados, considerava a Marx um cachorro morto que havia que enterrar com urgência e de noite ... e sem restos.

Em ambos os casos, é mais do que notável o interesse de Manuel Sacristán e Francisco Fernández Buey no trabalho do revolucionário da Sardenha, Antônio Gramsci, um autor que eles leram, estudaram, traduziram, comentaram e amaram. Sacristán dedicou-lhe um livro interrompido El orden y el tiempo. Fernández Buey publicou em meados da primeira década do século XXI um dos seus ensaios mais fundamentais: Leyendo a Gramsci.

Seu interesse permanente pela mortífera, criminosa colonização espanhola e anglo-saxã das terras e populações americanas se plasmou, no caso de Sacristán, na tradução e aproximação à vida de Gerônimo (sua apresentação e notas foram recentemente reeditadas pela editora El Viejo Topo). No caso de Fernández Buey, em uma de suas obras-primas: La gran perturbación. A homenagem à coragem política e filosófica de Bartolomé de Las Casas percorre todas as páginas do livro, um clássico do pensamento hispânico que cresce com o tempo.

Mas eles não eram apenas grandes teóricos, professores inesquecíveis, conferencistas admirados por todos os conhecedores de questões epistemológicas e da história da ciência, amantes da poesia, da arte e da boa literatura. Eles também foram, naturalmente, dois lutadores anti-Franco que arriscaram suas vidas mil vezes, dois comunistas democráticos que pagaram com a perseguição, a repressão, a fiscalização, várias punições, detenções, prisão, multas e expulsão da Universidade na sua luta contra a ditadura fascista  espanhola,  o seu compromisso com um socialismo democrático e libertário que realmente merecera este nome.

E isso até o final de seus dias. Sacristán deu sua última conferencia em julho de 1985, o ano da sua morte. Ele falou sobre os novos movimentos sociais de então (feminismo, ambientalismo, anti-militarismo). Alguns meses antes tinha dado outra conferencia sobre um dos seus grandes clássicos: Georg Lukács. Naquela que foi a sua última carta, Sacristán escreveu: "Se você [Felix Novales, que estava prisioneiro na cadeia de Soria] é um produto estranho dos anos 70, outros somos dos anos 40 e posso assegurar-lhe que não éramos muito mais realistas. Mas, sem querer justificar a falta de sentido da realidade, eu acho que das duas coisas tristes que você começa a sua carta - a falta de realismo de alguns e a sujeira de outros - é mais triste a segunda que a primeira. E tem menos concerto: porque você pode obter a compreensão da realidade, sem muito esforço ou mudança de pensamento; pois me parece difícil que aquele que aprende a desfrutar metendo-se no lodo tenha um possível renascimento. Uma coisa é a realidade e outra a merda que é apenas uma parte da realidade, feita precisamente por aqueles que aceitam a realidade moralmente, não apenas intelectualmente."

Eles nunca se meteram nesta imundície. Nunca.

Muito doente, Francisco Fernández Buey participou em 14 de abril de 2012 de um ato público (foi seu último ato)  para lembrar e comemorar a proclamação da Segunda República Espanhola, em 1931. Ele estava acompanhado por sua irmã Charo Fernández Buey. Júlio Anguita, um de seus grandes amigos, lhe havia dedicado naquela manhã uma entrevista sobre a tradição republicana e a necessidade de uma Terceira República de todos os povos da Espanha que pusera fim às tentativas de uma nova restauração borbôsnica. Estamos nisso agora.

Depois do assassinato do revolucionário argentino internacionalista, Manuel Sacristán escreveu um obituário (que emocionou a seu amigo e discípulo) que apareceu sem assinatura na revista teórica
Nous Horitzons, então clandestina, do Partido Socialista Unificado de Cataluña (PSUC) o partido dos comunistas catalães. Ele dizia no obtuario:

"Não deve importar muito, o covarde e satisfeito sadismo com que a reação de todo o mundo absorveu os detalhes sombrios de dissimulação, talvez voluntariamente tosco, do assassinato de Ernesto Guevara ... é importante saber que o nome de Guevara não poderá ser excluído das histórias, porque a história futura será daquilo pelo qual ele morreu. Isto é importante para os que continuam vivendo e lutando ... Na montanha, na rua ou na fábrica, buscando o mesmo objetivo em diferentes condições, os homens que neste momento reconhecem a Guevara entre seus mortos pisam toda a terra, igualmente nas palavras de Maiakovski, ‘na Rússia, entre as neves’, ou nos delírios da Patagônia’. Esses homens também chamarão de Guevara’, a partir de agora, ao fantasma de tantos nomes que viajam pelo mundo e que o nosso poeta, em nome de todos, chamou: Camarada".
Alguns anos mais tarde,  nestes nossos dias, nas montanhas, nas ruas, nas fábricas, nas nossas cidades, nas nossas lutas, servindo "a mesma finalidade em diferentes condições", as mulheres e os homens que ao redor do mundo estão ainda de pé pela paz, dignidade, luta e rebelião, reconhecem a Manuel Sacristán e Francisco Fernández Buey entre seus mortos, entre os mortos que pisam e continuarão pisando em toda a terra, uma terra que queremos justa, em paz, em equilíbrio, dando sus frutos para todas e todos como queria e escrevia o poeta gaditano (da cidade de Cádiz) assassinado Federico García Lorca em "Poeta em Nova York".

1)Este texto, escrito originalmente em espanhol, foi traduzido pela professora Catherine M. Bryan da Universidade de Wisconsin- Oshkosh.


2) Salvador López Arnal tem colaborado com textos (traduzidos do espanhol) sobre os professores Manuel Sacristán Luzón e Francisco Fernández Buey para o blog Novas Pensatas tais como: “Manuel Sacristán, o compromisso do filósofo”, de 8 de março de 2011 http://novaspensatas.blogspot.com/2011/03/manuel-sacristan-o-compromisso-do.html     

“Por que devemos continuar a ler a obra de Manuel Sacristán?” de 26 de agosto de 2013 http://novaspensatas.blogspot.com.br/2013/08/por-que-devemos-continuar-ler-obra-de.html   

Francisco Fernández Buey, um marxista que amava Gramsci e Simone Weil”, de  9 de maio de 2013. http://novaspensatas.blogspot.com/2013/05/francisco-fernandez-buey-um-marxista.html

Salvador Lopez-Arnal (Professor-tutor de Matemáticas na UNED é instrutor de informática dos ciclos formativos no IES Puig Castellar de Santa Coloma de Gramenet, Barcelona) também escreve textos para a revista "El Viejo Topo", rebelion.org e é co-roteirista e co-editor, junto con Joan Benach y Xavier Juncosa, do filme documentário "Integral Sacristán" (El Viejo Topo, Barcelona). Salvador tem sido um dos mais destacados discípulos do filósofo, lógico, tradutor, professor e escritor Manuel Sacristán Luzón e é, atualmente, um dos mais proeminentes e constantes divulgadores da sua obra: sua produção de diversos livros e de mais de três dezenas de artigos sobre Sacristán dão testemunho veemente da importância dos seus textos para o conhecimento da obra do brilhante filósofo marxista espanhol.  Atualmente tem escrito frequentemente sobre a vida e a obra do professor e filósofo Paco Fernández Buey.


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