A entrevista
abaixo com o promotor de Justiça de São Paulo Marcelo Batlouni Mendroni,
especialista em investigar crimes financeiros e cartéis, para quem somente uma
ampla reforma na legislação diminuirá a ocorrência de casos de corrupção que,
na avaliação dele, é endêmica.
Doutor pela Universidad Complutense de Madrid, na
Espanha, com pós doutorado na Università
di Bologna, na Itália, concedeu esta entrevista ao jornal espanhol El Pais, na sede do Gedec, órgão do
Ministério Público paulista criado em 2008 para investigar delitos de ordem
econômica, Mendroni comparou as empresas envolvidas em escândalos dessa
natureza à máfia italiana.
O promotor é autor da denúncia,
de 2012, um grupo de empreiteiras suspeitas de fraudar concorrências públicas
na Petrobras e em obras do metrô paulista. Embora sejam casos completamente
distintos, um no âmbito federal e o outro no Governo paulista, chama a atenção à
repetição dos “personagens” da esfera privada. Dentre as denunciadas pela
Promotoria de São Paulo há dois anos, seis estão agora sob a mira da Operação
Lava Jato da PF: as construtoras Camargo Corrêa, Mendes Júnior, OAS, Iesa e outras.
El País Por que observamos a repetição de algumas empresas em casos
diferentes de corrupção?
Marcelo Batlouni Mendroni Por causado volume de dinheiro
envolvido nos contratos com grandes estatais. O Brasil parece que,
indiretamente, vai copiando o modelo das atividades mafiosas. Se você for olhar
a Cosa Nostra italiana,
de um tempo pra cá, ela parou de praticar crimes violentos e entendeu que
conseguia ter muito mais sucesso conseguindo ganhar grandes contratos com o
poder público, através da infiltração nas obras públicas, da corrupção de agentes
públicos e intimidação de concorrentes. Então eles ganham grandes contratos com
o Estado, superfaturam essas obras, que foi exatamente o que parece que
aconteceu na Operação Lava Jato e que acontece no Brasil... Aliás, verdade seja
dita: é o que acontece em praticamente todos os municípios, todos os Estados e
na União. É uma corrupção absolutamente disseminada em todo o país. Eu acho que
não existe uma prefeitura nesse país, um Estado, que não tenha esquema de
superfaturamento de contratos de obras e serviços públicos. E a União,
evidentemente, é onde estão os maiores contratos.
Essas
organizações empresariais também são organizações criminosas. Isso tem que
ficar bem claro. Hoje em dia, sabemos de empresas perfeitamente lícitas que
atuam como um modelo de organização criminosa empresarial, que praticam muitos
crimes, além de corrupção, a formação de cartel, os crimes tributários, e
outros por aí... ou seja, elas praticam atividades lícitas, mas se valem da
estrutura empresarial pra praticar crimes.
El País O senhor foi enfático em mencionar que não tem conhecimento
profundo sobre a Operação Lava Jato. Mas, pela sua experiência, é possível que
o esquema que vimos na Petrobras hoje tenha começado há muitos anos, até em
Governos passados?
Marcelo Batlouni Mendroni Sem conhecer o caso, sem opinar
especificamente sobre esse caso, acho que esse é um esquema que já vem de
muitos, muitos anos. (...) A minha opinião é de que sim. Que isso não é um
esquema novo. Não só a Petrobras, mas se fossem investigar a fundo as grandes
estatais, todos esses contratos, a gente ia ver aí que muitos outros bilhões de
reais foram levados através de superfaturamento de obras, de hidrelétricas,
estradas, hidrovias, enfim... Não tenho a menor dúvida. Na verdade, eu diria
que, com 99,99% de chance, sim que esse esquema existe há pelo menos aí uns 30
anos... Meu palpite é que desde os anos 80 a gente tenha aí esses esquemas
atravessando os Governos indistintamente. Talvez tenha sido mais forte em um
Governo que em outro, dependendo muito da ação de Tribunais de Contas, do
Ministério Público, da Polícia Federal, enfim, dos termos de investigação e
repressão à criminalidade. Mas que existe há bastante tempo eu acho que sim.
El País Muitos classificaram como “histórica” as prisões de empresários
na última semana – e recentemente de políticos envolvidos no escândalo do
Mensalão. Qual a sua opinião?
Marcelo Batlouni Mendroni Eu acho que o Brasil vive uma
fase em que deveria rever toda a legislação, a questão da Justiça, pra de
alguma forma passar o país a limpo... É lógico que a corrupção não vai ser
extirpada, mas que fosse dado um golpe violento contra a corrupção, para que as
pessoas tenham mais medo. Porque do jeito que ela existe hoje, eu não tenho
nenhum medo de errar em dizer que a corrupção é absolutamente endêmica no
Brasil. E não acho que só isso vai ser um divisor de águas. Se não se houver
essa reforma processual penal e penal, eu acho que nós vamos viver esse filme
mais algumas vezes, achando que dessa vez vai... E isso pode ter um efeito
rebote muito perigoso, no sentido de que as pessoas fiquem incrédulas,
desestimuladas...
El País O Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, disse à Folha de S.Paulo que algumas das
empresas investigadas disseram ter sido alvo de concussão, ou seja, da
exigência de dinheiro para fechar contratos. O que o senhor acha desse
discurso?
Marcelo Batlouni Mendroni É balela. (...) Assim como a
gente não sabe quem veio antes, o ovo ou a galinha, na corrupção a gente também
não sabe quem vem antes, a empresa ou o agente político. Porque é interessante
para os dois. Na verdade, as duas partes se procuram...
El País Qual a dificuldade que o Brasil tem de perseguir e punir os
agentes corruptores?
Marcelo Batlouni Mendroni A corrupção é talvez um dos
casos mais difíceis de se apurar. Porque é um crime silencioso que interessa às
duas partes. Na corrupção, existem dois autores ao mesmo tempo e a vítima é o
Estado, que é quieto, silencioso, não fala... A investigação da corrupção é
dividida basicamente de duas formas cruciais: a primeira é quando as partes não
sabem que estão sendo investigadas, que é quando temos um maior grau de
possibilidade de eficiência, na medida em que nós temos instrumentos como
escutas telefônicas, escutas ambientais, buscas e apreensões... Depois que os
casos chegam à imprensa, corremos contra o tempo.
El País O senhor disse que, depois que a investigação vaza, fica mais
difícil reunir um conjunto de provas ‘diretas’. Isso não facilita, de certa
forma, o trabalho da defesa? Porque grandes empresas têm grandes advogados...
Marcelo Batlouni Mendroni Se você tem poucas provas
diretas, mas tem um conjunto vasto de provas indiretas, é possível que se dê
maior valoração para as provas indiretas. Mas o poder Judiciário no Brasil, de
uma forma geral, ainda é um pouco resistente em analisar as provas indiretas,
coisas que na Europa e nos Estados Unidos, já foi absolutamente superado. Na
Itália, por exemplo, os juízes aplicam nos casos de grandes máfias a questão da
‘máxima de experiência’, que é uma coisa muito nova no Brasil. (...) Mesmo a
colaboração premiada, que é usada há muito tempo na Europa e nos Estados
Unidos, só agora começa a ser usada no Brasil, principalmente depois da Lei de
Organização Criminosa, mas ela já estava na nossa legislação. No Direito as
coisas são um pouco mais lentas que nas outras ciências, porque envolvem uma
adaptação da sociedade. Nós passamos por um período, e ainda passamos de certa
forma, de muita resistência de advogados dizendo a colaboração premiada é
imoral, mas isso é um instrumento absolutamente lícito. Então é um processo
lento.
El País O que pode ser feito para diminuir a ocorrência de crimes
financeiros no Brasil?
Marcelo Batlouni Mendroni Em uma investigação de uma organização
criminosa você precisa de uma engrenagem de três rodas: legislação adequada,
estrutura e treinamento. Pra começar, já passou do tempo de os Estados terem
varas criminais especializadas em crimes econômicos. Os casos de lavagem de
dinheiro e de formação de cartéis, especificamente, e aqueles correlatos, são
extremamente complexos. Quando você manda um caso desses pra um juiz comum, que
na maioria das vezes não está habituado com esse tipo de processo, ele vai ter
que começar tudo do zero.
O outro
ponto é que a punição seja efetiva pra esse tipo de crime. Eu costumo dizer o
seguinte: esses empresários, esses políticos e agentes públicos que praticam a
corrupção não precisam de ressocialização, como os criminosos comuns. Eles
precisam de uma pena com caráter exclusivamente punitivo. Não é permitindo que
ele deixe a prisão depois de cumprir um sexto da pena... Por que hoje é muito
vantajoso o cara praticar o crime, conseguir roubar milhões, e depois sair,
resgatar o dinheiro que eles têm aplicado em outra parte do planeta, e viver
uma vida nababesca. Se você tem um nível baixo de criminalidade em alguns
países da Europa é porque as pessoas têm medo da mão pesada da Justiça, não
porque elas nascem naturalmente boas...
El País Qual a sua opinião sobre o financiamento privado das campanhas
eleitorais?
Marcelo Batlouni Mendroni Eu sou um pouco radical nessa
questão. Eu, por exemplo, me questiono por que tem que ter o financiamento
público ou privado de campanha... Por que as grandes empresas querem financiar
as campanhas? Porque elas têm interesses. Não é de graça. Não é ideológico.
Elas bancam candidaturas indistintamente, de vários partidos, sem nenhuma
ideologia política, dos concorrentes diretos. Isso é o óbvio ululante. Só não
enxerga quem não quer ver. É um ciclo vicioso: eles financiam as campanhas e
depois cobram de alguma forma, seja para facilitar os contratos com essas
empresas, que são superfaturados e é, muitas vezes, a forma como recebem o
dinheiro investido de volta.
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