A entrevista durou pouco mais de onze minutos,
mas alimentará horas de debates em todo o mundo e certamente ajudará a enxergar
melhor o período tormentoso que vivemos. Aos 81 anos, o sociólogo estadunidense
Immanuel Walllerstein, acredita que o capitalismo chegou ao fim da linha: já
não pode mais sobreviver como sistema. Mas –e aqui começam as provocações– o
que surgirá em seu lugar pode ser melhor (mais igualitário e democrático) ou
pior (mais polarizado e explorador) do que temos hoje em dia.
Estamos, pensa este professor da Universidade de
Yale e personagem assíduo dos Fóruns Sociais Mundiais, em meio a uma
bifurcação, um momento histórico único nos últimos 500 anos. Ao contrário do
que pensava Karl Marx, o sistema não sucumbirá num ato heróico. Desabará sobre
suas próprias contradições. Mas atenção: diferente de certos críticos do
filósofo alemão, Wallerstein não está sugerindo que as ações humanas são
irrelevantes.
Ao contrário: para ele, vivemos o momento preciso
em que as ações coletivas, e mesmo individuais, podem causar impactos decisivos
sobre o destino comum da humanidade e do planeta. Ou seja, nossas escolhas
realmente importam. “Quando o sistema está estável, é relativamente determinista.
Mas, quando passa por crise estrutural, o livre-arbítrio torna-se importante.”
É no emblemático 1968, referência e inspiração de
tantas iniciativas contemporâneas, que Wallerstein situa o início da
bifurcação. Lá teria se quebrado “a ilusão liberal que governava o
sistema-mundo”. Abertura de um período em que o sistema hegemônico começa a
declinar e o futuro abre-se a rumos muito distintos, as revoltas daquele ano
seriam, na opinião do sociólogo, o fato mais potente do século passado –
superiores, por exemplo, à revolução soviética de 1917 ou a 1945, quando os EUA
emergiram com grande poder mundial.
As declarações foram colhidas no dia 4 de outubro
pela jornalista Sophie Shevardnadze, que conduz o programa Interview
na emissora de televisão russa RT. A transcrição e a tradução
para o português são iniciativas do sítio Outras Palavras,
15-10-2011.
Eis a entrevista:
Há exatamente dois anos, você disse ao RT
que o colapso real da economia ainda demoraria alguns anos. Esse colapso está
acontecendo agora?
Não, ainda vai demorar um ano ou dois, mas está
claro que essa quebra está chegando.
Quem está em maiores apuros: Os Estados
Unidos, a União Europeia ou o mundo todo?
Na verdade, o mundo todo vive problemas. Os
Estados Unidos e União Europeia, claramente. Mas também acredito que os
chamados países emergentes, ou em desenvolvimento – Brasil, Índia, China –
também enfrentarão dificuldades. Não vejo ninguém em situação tranquila.
Você está dizendo que o sistema
financeiro está claramente quebrado. O que há de errado com o capitalismo
contemporâneo?
Essa é uma história muito longa. Na minha visão,
o capitalismo chegou ao fim da linha e já não pode sobreviver como sistema. A
crise estrutural que atravessamos começou há bastante tempo. Segundo meu ponto
de vista, por volta dos anos 1970 – e ainda vai durar mais uns vinte, trinta ou
quarenta anos. Não é uma crise de um ano, ou de curta duração: é o grande
desabamento de um sistema. Estamos num momento de transição. Na verdade, na
luta política que acontece no mundo — que a maioria das pessoas se recusa a
reconhecer — não está em questão se o capitalismo sobreviverá ou não, mas o que
irá sucedê-lo. E é claro: podem existir dois pontos de vista extremamente
diferentes sobre o que deve tomar o lugar do capitalismo.
Qual a sua visão?
Eu gostaria de um sistema relativamente mais
democrático, mais relativamente igualitário e moral. Essa é uma visão, nós
nunca tivemos isso na história do mundo – mas é possível. A outra visão é de um
sistema desigual, polarizado e explorador. O capitalismo já é assim, mas pode
advir um sistema muito pior que ele. É como vejo a luta política que vivemos.
Tecnicamente, significa é uma bifurcação de um sistema.
Então, a bifurcação do sistema
capitalista está diretamente ligada aos caos econômico?
Sim, as raízes da crise são, de muitas maneiras,
a incapacidade de reproduzir o princípio básico do capitalismo, que é a
acumulação sistemática de capital. Esse é o ponto central do capitalismo como
um sistema, e funcionou perfeitamente bem por 500 anos. Foi um sistema muito
bem sucedido no que se propõe a fazer. Mas se desfez, como acontece com todos
os sistemas.
Esses tremores econômicos, políticos e
sociais são perigosos? Quais são os prós e contras?
Se você pergunta se os tremores são perigosos para
você e para mim, então a resposta é sim, eles são extremamente perigosos para
nós. Na verdade, num dos livros que escrevi, chamei-os de “inferno na terra”. É
um período no qual quase tudo é relativamente imprevisível a curto prazo – e as
pessoas não podem conviver com o imprevisível a curto prazo. Podemos nos
ajustar ao imprevisível no longo prazo, mas não com a incerteza sobre o que vai
acontecer no dia seguinte ou no ano seguinte. Você não sabe o que fazer, e é
basicamente o que estamos vendo no mundo da economia hoje. É uma paralisia,
pois ninguém está investindo, já que ninguém sabe se daqui a um ano ou dois vai
ter esse dinheiro de volta. Quem não tem certeza de que em três anos vai
receber seu dinheiro, não investe – mas não investir torna a situação ainda
pior. As pessoas não sentem que têm muitas opções, e estão certas, as opções
são escassas.
Então, estamos nesse processo de abalos,
e não existem prós ou contras, não temos opção, a não ser estar nesse processo.
Você vê uma saída?
Sim! O que acontece numa bifurcação é que, em
algum momento, pendemos para um dos lados, e voltamos a uma situação
relativamente estável. Quando a crise acabar, estaremos em um novo sistema, que
não sabemos qual será. É uma situação muito otimista no sentido de que, na
situação em que nos encontramos, o que eu e você fizermos realmente importa.
Isso não acontece quando vivemos num sistema que funciona perfeitamente bem.
Nesse caso, investimos uma quantidade imensa de energia e, no fim, tudo volta a
ser o que era antes. Um pequeno exemplo. Estamos na Rússia. Aqui aconteceu uma
coisa chamada Revolução Russa, em 1917. Foi um enorme esforço social, um número
incrível de pessoas colocou muita energia nisso. Fizeram coisas incríveis, mas
no final, onde está a Rússia, em relação ao lugar que ocupava em 1917? Em
muitos aspectos, está de volta ao mesmo lugar, ou mudou muito pouco. A mesma
coisa poderia ser dita sobre a Revolução Francesa.
O que isso diz sobre a importância das
escolhas pessoais?
A situação muda quando você está em uma crise
estrutural. Se, normalmente, muito esforço se traduz em pouca mudança, nessas
situações raras um pequeno esforço traz um conjunto enorme de mudanças – porque
o sistema, agora, está muito instável e volátil. Qualquer esforço leva a uma ou
outra direção. Às vezes, digo que essa é a “historização” da velha distinção
filosófica entre determinismo e livre-arbítrio. Quando o sistema está
relativamente estável, é relativamente determinista, com pouco espaço para o
livre-arbítrio. Mas, quando está instável, passando por uma crise estrutural, o
livre-arbítrio torna-se importante. As ações de cada um realmente importam, de
uma maneira que não se viu nos últimos 500 anos. Esse é meu argumento básico.
Você sempre apontou Karl Marx como uma de
suas maiores influências. Você acredita que ele ainda seja tão relevante no
século 21?
Bem, Karl Marx foi um grande pensador no século
19. Ele teve todas as virtudes, com suas ideias e percepções, e todas as
limitações, por ser um homem do século 19. Uma de suas grandes limitações é que
ele era um economista clássico demais, e era determinista demais. Ele viu que
os sistemas tinham um fim, mas achou que esse fim se dava como resultado de um
processo de revolução. Eu estou sugerindo que o fim é reflexo de contradições
internas. Todos somos prisioneiros de nosso tempo, disso não há dúvidas. Marx
foi um prisioneiro do fato de ter sido um pensador do século 19; eu sou
prisioneiro do fato de ser um pensador do século 20.
Do século 21, agora.
É, mas eu nasci em 1930, eu vivi 70 anos no
século 20, eu sinto que sou um produto do século 20. Isso provavelmente se
revela como limitação no meu próprio pensamento.
Quanto – e de que maneiras – esses dois
séculos se diferem? Eles são realmente tão diferentes?
Eu acredito que sim. Acredito que o ponto de
virada deu-se por volta de 1970. Primeiro, pela revolução mundial de 1968, que
não foi um evento sem importância. Na verdade, eu o considero o evento mais
significantes do século 20. Mais importante que a Revolução Russa e mais
importante que os Estados Unidos terem se tornado o poder hegemônico, em 1945.
Porque 1968 quebrou a ilusão liberal que governava o sistema mundial e anunciou
a bifurcação que viria. Vivemos, desde então, na esteira de 1968, em todo o
mundo.
Você disse que vivemos a retomada de 68
desde que a revolução aconteceu. As pessoas às vezes dizem que o mundo ficou
mais valente nas últimas duas décadas. O mundo ficou mais violento?
Eu acho que as pessoas sentem um desconforto,
embora ele talvez não corresponda à realidade. Não há dúvidas de que as pessoas
estavam relativamente tranquilas quanto à violência em 1950 ou 1960. Hoje, elas
teem medo e, em muitos sentidos, têm o direito de sentir medo.
Você acredita que, com todo o progresso
tecnológico, e com o fato de gostarmos de pensar que somos mais civilizados,
não haverá mais guerras? O que isso diz sobre a natureza humana?
Significa que as pessoas estão prontas para serem
violentas em muitas circunstâncias. Somos mais civilizados? Eu não sei. Esse é
um conceito dúbio, primeiro porque o civilizado causa mais problemas que o não
civilizado; os civilizados tentam destruir os bárbaros, não são os bárbaros que
tentam destruir os civilizados. Os civilizados definem os bárbaros: os outros
são bárbaros; nós, os civilizados.
É isso que vemos hoje? O Ocidente
tentando ensinar os bárbaros de todo o mundo?
É o que vemos há 500 anos.
2 comentários:
Fora de série esta entrevista de Immanuel Walllerstein, talvez o maior pensador marxista de nossos tempos.
Sem dúvida, minha querida amiga Joelma, Immanuel Walllerstein é dos maiores pensadores marxista atuais.
Wallerstein é um sociólogo estadunidense, mais conhecido pela sua contribuição fundadora para a teoria do "Sistema-Mundo".
Seus comentários bimensais sobre questões globais são distribuídos para publicações como "Le Monde Diplomatique" e ""The Nation.
No Brasil, seus artigos são publicados na revista "Fórum" e na revista virtual "Outras Palavras"...
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