A frase inserida no título acima é de Immanuel Wallerstein (1), que sustenta a tese de que o capitalismo chegou ao fim da linha e já não pode sobreviver como sistema. Para ele, vivemos o momento preciso em que as ações coletivas, e mesmo individuais, podem causar impactos decisivos sobre o destino comum da humanidade e do planeta. Ou seja, nossas escolhas realmente importam. “Quando o sistema está estável, é relativamente determinista. Mas, quando passa por crise estrutural, o livre arbítrio torna-se importante.”
As declarações, em grande parte e aspectos bastante polêmicas, foram colhidas em 4 de outubro pela jornalista Sophie Shevardnadze, que conduz o programa Interview na emissora de televisão russa RT.
Leiam, a seguir, a entrevista:
Sophie Shevardnadze - Há exatamente dois anos, você disse ao RT que o colapso real da economia ainda demoraria alguns anos. Esse colapso está acontecendo agora?
Immanuel Wallerstein - Não, ainda vai demorar um ano ou dois, mas está claro que essa quebra está chegando.
Sophie - Quem está em maiores apuros: Os Estados Unidos, a União Europeia ou o mundo todo?
Immanuel - Na verdade, o mundo todo vive problemas. Os Estados Unidos e União Europeia, claramente. Mas também acredito que os chamados países emergentes, ou em desenvolvimento – Brasil, Índia, China – também enfrentarão dificuldades. Não vejo ninguém em situação tranquila.
Sophie - Você está dizendo que o sistema financeiro está claramente quebrado. O que há de errado com o capitalismo contemporâneo?
Immanuel - Essa é uma história muito longa. Na minha visão, o capitalismo chegou ao fim da linha e já não pode sobreviver como sistema. A crise estrutural que atravessamos começou há bastante tempo. Segundo meu ponto de vista, por volta dos anos 1970 – e ainda vai durar mais uns 20, 30 ou 40 anos. Não é uma crise de um ano, ou de curta duração: é o grande desabamento de um sistema. Estamos num momento de transição. Na verdade, na luta política que acontece no mundo — que a maioria das pessoas se recusa a reconhecer — não está em questão se o capitalismo sobreviverá ou não, mas o que irá sucedê-lo. E é claro: podem existir dois pontos de vista extremamente diferentes sobre o que deve tomar o lugar do capitalismo.
Sophie - Qual a sua visão?
Immanuel - Eu gostaria de um sistema relativamente mais democrático, mais relativamente igualitário e moral. Essa é uma visão, nós nunca tivemos isso na história do mundo – mas é possível. A outra visão é de um sistema desigual, polarizado e explorador. O capitalismo já é assim, mas pode advir um sistema muito pior que ele. É como vejo a luta política que vivemos. Tecnicamente, significa é uma bifurcação de um sistema.
Sophie - Então, a bifurcação do sistema capitalista está diretamente ligada aos caos econômico?
Immanuel - Sim, as raízes da crise são, de muitas maneiras, a incapacidade de reproduzir o princípio básico do capitalismo, que é a acumulação sistemática de capital. Esse é o ponto central do capitalismo como um sistema, e funcionou perfeitamente bem por 500 anos. Foi um sistema muito bem sucedido no que se propõe a fazer. Mas se desfez, como acontece com todos os sistemas.
Sophie - Esses tremores econômicos, políticos e sociais são perigosos? Quais são os prós e contras?
Immanuel - Se você pergunta se os tremores são perigosos para você e para mim, então a resposta é sim, eles são extremamente perigosos para nós. Na verdade, num dos livros que escrevi, chamei-os de “inferno na terra”. É um período no qual quase tudo é relativamente imprevisível a curto prazo – e as pessoas não podem conviver com o imprevisível a curto prazo. Podemos nos ajustar ao imprevisível no longo prazo, mas não com a incerteza sobre o que vai acontecer no dia seguinte ou no ano seguinte. Você não sabe o que fazer, e é basicamente o que estamos vendo no mundo da economia hoje. É uma paralisia, pois ninguém está investindo, já que ninguém sabe se daqui a um ano ou dois vai ter esse dinheiro de volta. Quem não tem certeza de que em três anos vai receber seu dinheiro, não investe – mas não investir torna a situação ainda pior. As pessoas não sentem que têm muitas opções, e estão certas, as opções são escassas.
Sophie - Então, estamos nesse processo de abalos, e não existem prós ou contras, não temos opção, a não ser estar nesse processo. Você vê uma saída?
Immanuel - Sim! O que acontece numa bifurcação é que, em algum momento, pendemos para um dos lados, e voltamos a uma situação relativamente estável. Quando a crise acabar, estaremos em um novo sistema, que não sabemos qual será. É uma situação muito otimista no sentido de que, na situação em que nos encontramos, o que eu e você fizermos realmente importa. Isso não acontece quando vivemos num sistema que funciona perfeitamente bem. Nesse caso, investimos uma quantidade imensa de energia e, no fim, tudo volta a ser o que era antes. Um pequeno exemplo. Estamos na Rússia. Aqui aconteceu uma coisa chamada Revolução Russa, em 1917. Foi um enorme esforço social, um número incrível de pessoas colocou muita energia nisso. Fizeram coisas incríveis, mas no final, onde está a Rússia, em relação ao lugar que ocupava em 1917? Em muitos aspectos, está de volta ao mesmo lugar, ou mudou muito pouco. A mesma coisa poderia ser dita sobre a Revolução Francesa.
Sophie - O que isso diz sobre a importância das escolhas pessoais?
Immanuel - A situação muda quando você está em uma crise estrutural. Se, normalmente, muito esforço se traduz em pouca mudança, nessas situações raras um pequeno esforço traz um conjunto enorme de mudanças – porque o sistema, agora, está muito instável e volátil. Qualquer esforço leva a uma ou outra direção. Às vezes, digo que essa é a “historização” da velha distinção filosófica entre determinismo e livre arbítrio. Quando o sistema está relativamente estável, é relativamente determinista, com pouco espaço para o livre arbítrio. Mas, quando está instável, passando por uma crise estrutural, o livre arbítrio torna-se importante. As ações de cada um realmente importam, de uma maneira que não se viu nos últimos 500 anos. Esse é meu argumento básico.
Sophie - Você sempre apontou Karl Marx como uma de suas maiores influências. Você acredita que ele ainda seja tão relevante no século XXI?
Immanuel - Karl Marx foi um grande pensador no século XIX. Ele teve todas as virtudes, com suas ideias e percepções, e todas as limitações, por ser um homem do século XIX (2). Uma de suas grandes limitações é que ele era um economista clássico, e era determinista demais. Ele viu que os sistemas tinham um fim, mas achou que esse fim se dava como resultado de um processo de revolução. Eu estou sugerindo que o fim é reflexo de contradições internas. Todos somos prisioneiros de nosso tempo, disso não há dúvidas. Marx foi um prisioneiro do fato de ter sido um pensador do século XIX; eu sou prisioneiro do fato de ser um pensador do século XX.
Sophie - Do século 21, agora…
Immanuel - É, mas eu nasci em 1930, eu vivi 70 anos no século XX, eu sinto que sou um produto do século XX. Isso provavelmente se revela como limitação no meu próprio pensamento.
Sophie - Quanto – e de que maneiras – esses dois séculos se diferem? Eles são realmente tão diferentes?
Immanuel - Eu acredito que sim. Acredito que o ponto de virada deu-se por volta de 1970. Primeiro, pela revolução mundial de 1968, que não foi um evento sem importância. Na verdade, eu o considero o evento mais significantes do século XX. Mais importante que a Revolução Russa e mais importante que os Estados Unidos terem se tornado o poder hegemônico, em 1945. Porque 1968 quebrou a ilusão liberal que governava o sistema mundial e anunciou a bifurcação que viria. Vivemos, desde então, na esteira de 1968, em todo o mundo.
Sophie - Você disse que vivemos a retomada de 68 desde que a revolução aconteceu. As pessoas às vezes dizem que o mundo ficou mais valente nas últimas duas décadas. O mundo ficou mais violento?
Immanuel - Eu acho que as pessoas sentem um desconforto, embora ele talvez não corresponda à realidade. Não há dúvidas de que as pessoas estavam relativamente tranquilas quanto à violência em 1950 ou 1960. Hoje, elas têm medo e, em muitos sentidos, têm o direito de sentir medo.
Sophie - Você acredita que, com todo o progresso tecnológico, e com o fato de gostarmos de pensar que somos mais civilizados, não haverá mais guerras? O que isso diz sobre a natureza humana?
Immanuel - Significa que as pessoas estão prontas para serem violentas em muitas circunstâncias. Somos mais civilizados? Eu não sei. Esse é um conceito dúbio, primeiro porque o civilizado causa mais problemas que o não civilizado; os civilizados tentam destruir os bárbaros, não são os bárbaros que tentam destruir os civilizados. Os civilizados definem os bárbaros: os outros são bárbaros; nós, os civilizados.
Sophie - É isso que vemos hoje? O Ocidente tentando ensinar os bárbaros de todo o mundo?
Immanuel - É o que vemos há 500 anos.
1. Sociólogo estadunidense (Nova Iorque, 1930), mais conhecido pela sua contribuição à teoria do “sistema mundo”, que o tornou um símbolo da crítica ao capitalismo global e originou o seu apoio aos movimentos anti sistêmicos. No Brasil, seus artigos são publicados nas revistas ”Fórum” e na virtual “Outras Palavras” http://www.outraspalavras.net/ , que nos proporcionou a tradução acima.
2. De forma diferente do que pensava Marx, Wallerstein acredita que o sistema não sucumbirá num ato heróico, mas sim desabará sobre suas próprias contradições. No entanto, é importante ressaltar que, opostamente a certos críticos “mecanicistas” do pensador alemão (desde Kautsky), ele não está sugerindo que as ações humanas sejam irrelevantes.
Alem do mais não é dialético pensar que algumas concepções de Marx não poderiam sofrer a ação do tempo e das transformações do próprio sistema ao longo do processo histórico.
6 comentários:
A entrevista de Immanuel Wallerstein, neste domingo de trovoadas na Bahia, é digna de reflexão. Até quando a crise do capitalismo não provocará séria 'debacle', colocando a maioria dos países à deriva? Para onde estamos indo? A sua leitura talvez faça com que pensemos duas vezes antes de ir ao shopping center consumir, consumir, e consumir, e, com isso, alimentando o capitalismo mais que selvagem que se espraia com a fúria dos antigos vikings.
Wallerstein é de uma grande profundidade e poder de análise.
A sua abordagem de questões bastante delicadas e até dogmáticas são bastante objetivas.
E julgar que tudo isto foi dito em uma entrevista de televisão de pouco mais de 10 minutos... Surpreendente!
Mas a revista virtual "Outras Palavras" (veja endereço na postagem) vale a pena ser lida pois tem matérias sempre atuais e analíticas.
Quando você falou de "entrevista polêmica", eu concordo.
Certos pontos-de-vista de Wallerstein são confusos e podem levar a outras interpretações. Veja bem, não porque o que Marx disse seja imutável, mas a essência, o fundamental em suas teses não mudaram porque por mais que o capitalismo mude, a exploração com base na mais-valia, a luta de classes estão aí e não se modificaram neste mais de um século e meio, nem se modificarão enquanto o sistema sobreviver.
Mas adorei muitos dos pontos tocados por ele quanto á falência do sistema e seu final da linha!
Este seu comentário veio bem a propósito, Joelma. Um amigo já me havia ligado e focado na questão.
Vou publicar ainda esta semana uma matéria a propósito deste assunto!
Concordo com a idéia de que o pensamento de Karl Marx possa ficar superado, como você bem disse: em alguns aspectos.
Ou será que vamos cair no conceito de deidifica-lo?
O tempo devora naturalmente alguns conceitos porque estes determinados aspectos mudam.
Caro Mário. Foi isto a que quis me referir pois a história é dialética.
Mas a questão é muito delicada em sutilezas e nuances, por isso mesmo pretendo postar uma matéria sobre o assunto
Postar um comentário