Acaba de sair (por enquanto, em inglês), um livro indispensável
para quem quer debater a crise do capitalismo, degradação social e ambiental
das cidades e busca de alternativas. Numa obra intitulada “Cidades Rebeldes”, o
geógrafo, urbanista e antropólogo David
Harvey sustenta pelo menos três ideias polêmicas e indispensáveis, num
tempo de crise financeira, ataque aos direitos sociais, risco de desastre
ambiental e… Rebeliões contra o sistema. Elas estão expostas em detalhes na
entrevista que Harvey concedeu a John Brissenden e Ed Lewis, do excelente site
britânico New Left Project (1).
Como se trata de uma longa entrevista, prefiro postá-la em duas
partes para que não se torne cansativa a sua leitura. Publico hoje a primeira.
John: Você diria que há um argumento central em “As Cidades
Rebeldes: Do direito à cidade à Revolução Urbana”, ou o livro reúne diversos
temas?
David Harvey: Um pouco dos dois. Se há um
argumento central, ele está nos capítulos 2 (“As raízes urbanas das crises
capitalistas”) e 5 (“Reivindicando a cidade para a luta anticapitalista”). O
capítulo 2 é essencialmente sobre as relações entre capital e urbanização; o 5,
sobre a oposição entre o capital e a urbanização. O conflito de classes está
basicamente nos capítulos 2 e 5.
John: Você fala sobre as rendas do monopólio e as contradições
intrínsecas a esse processo. Poderia explicar essas contradições e o
significado delas para sua análise?
David Harvey: Argumenta-se que capitalismo tem
a ver com competição, algo muito repetido e valorizado. Mas basta falar com um
capitalista para descobrir que ele prefere o monopólio, se houver essa
possibilidade. O que existe na verdade, por parte do capital, é uma incessante
tentativa de evitar situações competitivas por meio de algum truque
monopolista.
Por
exemplo, o fato de dar nome e marcas produtos é uma tentativa de colocar neles
um selo do monopólio, É por isso temos o swoosh do Nike [a seta estilizada que
caracteriza a marca], ou ícones parecidos, que tornam certos produtos
diferentes de qualquer outra coisa. Esta tendência ao monopólio é permanente.
Ao escrever A
Arte da Renda, eu quis chamar atenção sobre como os capitalistas
gostam de chamar algo de original, autêntico, único. Eles adoram o “marketing
da arte”. Há, portanto, um fluxo enorme de capital em direção a qualquer coisa
que se possa facilmente monopolizar.
John: Mas uma vez que esse processo começa…
David Harvey: Bem, num certo aquilo que não era
uma mercadoria de marca transforma-se em algo menos exclusivo, uma commodity.
Esta tensão sempre existe. Veja, por exemplo, a modernização dos portos
urbanos. O primeiro processo foi muito bom, todos diziam “que interessante”.
Agora, quando você a muitas cidades do mundo e lhe perguntam: “viu o porto?”,
você responde: “Vi um, vi todos”. E Barcelona não parece mais tão única quanto
antes, porque seu porto [modernizado] se parece com qualquer outro. Rotterdam,
Cardiff e, claro, Londres, têm um. Não é mais uma coisa única, se tornou apenas
um tipo de taxa urbana comum.
John: Você argumenta um espaço se abre, nessa tensão…
David Harvey: Sim, acho, por exemplo, que a
qualidade de vida em uma cidade frequentemente é algo definido por seus
habitantes, sua forma de vida, seu modo de ser. Para que isso se torne único, o
capital depende da inventividade de uma população para fazer algo, para fazer
algo diferente. O capital tende a ser homogenizante. As pessoas frequentemente
fazem o diferencial, produzem atrações únicas, existe um tipo de relação aí.
Isso significa que os movimentos populares podem ter espaço para florescer,
para tentar definir alguma coisa que é radicalmente diferente.
John: Você pode apontar exemplos de onde isso está acontecendo?
David Harvey: Sim. Em Hamburgo, existe uma
área, o bairro St. Pauli, que era cheio de squats [ocupações de prédios
abandonados, em geral feitas por jovens e imigrantes]. Eles criaram um ambiente
único, muito diverso. Múltiplas etnias, classes, uma vida urbana muito intensa.
O setor imobiliário, muito presente em Hamburgo, havia transformado a cidade em
algo muito homogêneo. De repente, perceberam que existe esse bairro incrível, e
agora estão tentando apropriar-se dele, comprando casas e alugando-as por um
preço diferenciado, porque “não é interessante viver nesse bairro vibrante?”.
Esse tipo de coisa você vê nas cidades a toda hora: as pessoas criam um bairro único,
ele se torna burguês e entediante.
John: Sabemos que, no interior do capitalismo urbanista, há forças
de compensação muito poderosas. Como podemos reverter sua lógica?
David Harvey: Um exemplo: o movimento Occupy
desencadeou, em Nova York, uma resposta policial muito feroz e realmente
exagerada. Basta você tentar participar de uma marcha, ou manifestação
semelhante, para que haja 5 mil policiais em seu redor – e são bem agressivos.
Tentei
entender por que. Quando os Giants venceram o Superbowl [campeonato nacional de
futebol americano], as pessoas tomaram as ruas, interromperam a atividade
normal de maneira ainda mais clara e a polícia não fez nada. “Ah, eles estão
apenas comemorando”. Mas o Occupy cria, por seu significado político, uma
resposta violenta. E se você pergunta por quê, sinto que Wall Street enerva-se
muito com a possibilidade de esse movimento virar moda. Se isso ocorrer, haverá
uma clara demanda para responsabilizar pessoas por muito do que aconteceu à
economia. E o pessoal de Wall Street sabe o que fez, sabe que tem
responsabilidade e que pode acabar preso. Penso que dizem ao prefeito e a todas
as demais autoridades: “acabe com esse movimento antes que vá longe demais”.
Isole-o, faça com que pareça muito violento. Então você acaba com esse tipo de
resposta política.
John: Que outras qualidades do movimento Occupy lhe parecem
particularmente significativas?
David Harvey: Eu estive fora ano passado
inteiro, realmente não acompanhei o Occupy em seu período mais ativo nos
Estados Unidos. Mas algo que fizeram foi chamar muita atenção para a questão da
desigualdade social, para os bônus enormes pagos aos altos executivos. Estes
conceitos estão se espalhando. Antes do Occupy,nada disso era discutido. Agora
o Partido Democrata nos Estados Unidos, e até Obama, estão dispostos a tratar a
desigualdade social como um problema. Os acionistas das grandes empresas estão
começando a votar contra os grandes pacotes de bônus. Acho que tudo isso foi
consequência da agenda criada pelo movimento. Mas, como sempre acontece, os
poderes políticos cooptam parte do discurso contra o sistema e tentam diluí-lo.
Vivemos agora uma fase de certa cooptação, em que os acionistas estão assumindo
parte da retórica e Obama.
Ed: Sobre isso, estamos interessados em suas discussões sobre
estratégia. Como ponto de partida, é claro que a concepção tradicional que a
esquerda tinha, da classe operária industrial como sujeito revolucionário e
agente de mudança, não se encaixa mais no Ocidente. Você pode contar como reconcebeu
o sujeito revolucionário, quem pode constituí-lo hoje e como está relacionado
às cidades e à identidade urbana?
David Harvey: Para tratar deste tema, faço uma
pergunta: quem está produzindo e reproduzindo a vida urbana? Se você olhar para
o tipo de produção que prevalece hoje, definirá o proletariado de maneira
totalmente distinta da que se contentava em associá-lo ao trabalhador fabril.
Este é o passo necessário. A partir daí, é possível pensar em quais formas de organização são possíveis hoje, entre as novas populações urbanas. Elas são mais difíceis de organizar, precisamente porque não estão em fábricas. Por exemplo, a imensa quantidade de trabalhadores que atuam no transporte de produtos e pessoas, de caminhoneiros a taxistas, Como organizá-los?
Este é o passo necessário. A partir daí, é possível pensar em quais formas de organização são possíveis hoje, entre as novas populações urbanas. Elas são mais difíceis de organizar, precisamente porque não estão em fábricas. Por exemplo, a imensa quantidade de trabalhadores que atuam no transporte de produtos e pessoas, de caminhoneiros a taxistas, Como organizá-los?
Há
algumas experiências interessantes a respeito, em Nova York e Los Angeles.
Politicamente, não é possível falar num sindicato nos termos tradicionais, é
preciso criar organizações diferentes.
Ou
tomemos o caso dos empregados domésticos. É extremamente difícil organizá-los,
particularmente quando são, como em muitos países do Norte, ilegais. Porém, são
uma força de trabalho bastante significativa, em muitas cidades. Parte do que
estou dizendo é que todas estas formas de trabalho desenvolvem-se nas cidades e
são vitais para a reprodução da vida urbana. Por isso, deveríamos nos preocupar
em organizar politicamente estes trabalhadores, para influir na qualidade e
natureza da vida nas cidades. Em alguns casos, a organização é muito difícil;
em outros, pode ser muito vigorosa, mas assume frequentemente formas muito
distintas das tradicionais.
Ed: Você acha que a esquerda está mergulhada neste tema, em
compreender os desafios e oportunidades com que nos deparamos?
David Harvey: Penso que, historicamente, a
esquerda sempre estabeleceu algum tipo de separação entre o que você poderia
chamar de organizações de trabalhadores, ou baseadas em classes, e movimentos
sociais. Uma de minhas batalhas nos últimos 30 ou 40 anos tem sido dizer que é
preciso enxergar estes movimentos como movimentos de classe. Penso que houve
uma relutância a aceitar isso, em muitos setores da esquerda.
Veja
que esta relutância diminuiu, inclusive em razão da rapidez com que o trabalho
fabril desapareceu. Quando cheguei em Baltimore, em 1969, havia algo como 35
mil operários na fábrica de aço. Quinze anos depois, eram 10 mil e na virada do
século, apenas 2 mil. Se você quisesse organizar algo politicamente em 1970,
você abria um diálogo com o sindicato dos metalúrgicos, porque eles tinham
musculatura. Hoje, são irrelevantes. Mas se o sindicato já não conta, como
organizar os trabalhadores? Diante desta questão, penso que a esquerda passou a
compreender e valorizar melhor os movimentos sociais.
Ed: Em relação às dificuldades na organização dos grupos de que
estamos falando, você investigou uma grande variedade de movimentos, em
momentos diferentes. Existem lições particulares que devam ser generalizadas?
David Harvey: A maioria dos grupos desse tipo aparece
como de organizações por direitos sociais. Sob esse guarda-chuva, eles podem
criar formas organizativas menos restritas que as dos sindicatos convencionais.
Agora, uma das coisas que vi em Baltimore foi que um movimento de sindicatos
convencionais pode ser hostil a essas novas organizações. O movimento sindical
convencional dividia-se: algumas vezes eles apoiavam; mas era mais comum
considerarem essas formas de organização como uma ameaça a si próprios.
Penso
que hoje, o movimento sindical convencional está preparado para enxergar essas
organizações como cruciais para apoiar suas lutas. Começa a surgir um tipo de
coalizão. Na marcha do Primeiro de Maio realizada em Nova York, há pouco,
pessoas tradicionalmente ligadas ao movimento sindical juntaram-se aos
movimentos sociais.
Sou
muito a favor de uma forma diferente de organização sindical, de preferência
local, e não por setor. Acredito que os sindicatos convencionais devem prestar
mais atenção aos conselhos de comércio locais e aos conselhos municipais. Os
sindicatos tendem se preocupar apenas com o bem estar de seus membros, e uma
organização geográfica precisa pensar no proletariado em geral, na cidade.
Desse ponto de vista, uma forma de organização diferente pode abranger uma
cidade inteira, e unir pessoas envolvidas em sindicatos diferentes, com
todas as suas diferenças, em um tipo de sindicato da cidade, ou uma organização
política da cidade.
(continua...)
(continua...)
Sobre o pensamento de David
Harvey, clique em: http://davidharvey.org/
e saiba mais.
5 comentários:
Um pensamento coerente e de acordo com o moderno marxismo contemporâneo pós queda do muro de Berlim e do "Império Soviéico" (leia Michel Lowy por exemplo) em que os assuntos por David Harvey abordados se enquadram.
Por acaso, Michael Lowe é um dos marxistas contemporâneos que mais admiro.
Aliás, um dos meus livros de cabeceira é Marxismo, Modernidade, Utopia que ele escreveu em parceria com Daniel Bensaid...
Mas gostei muito de David Harvey.
Muito bom! Pena que vou ter que esperar para ler o restante embora concorde que talvez ficasse longo demais.
Irretocável o raciocínio dele.
Achei muito fixe esta entrevista (já li a segunda parte tambem).
Parabens!
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