Ed: No capítulo 5 do novo livro, você relaciona algumas de suas
hipóteses sobre organização urbana às dificuldades enfrentadas pelas formas
tradicionais de organização da esquerda. Não apenas no que diz respeito a
diferente composição do proletariado, mas também nas relações com organizações
autônomas, como cooperativas; ou na dificuldade para atuar na esfera estatal.
Você parece sugerir que as cidades são locais de organização especialmente
poderosos, e se fosse possível organizar uma cidade inteira, então
possivelmente estaríamos muito empoderados. Por que você acha que as cidades
são tão importantes? As cidades radicalmente isoladas não sofreriam da mesma
vulnerabilidade das cooperativas?
David Harvey: Gosto de pensar nas cidades
porque são uma escala maior que uma simples fábrica. Se você observar as
fábricas recuperadas na Argentina, tomadas pelos trabalhadores em 2001-2002,
verá que uma das dificuldades que surgiriam desse movimento e das associações
de trabalhadores envolvidas é que, em certo ponto, como estão imersas num
sistema capitalista, vêem-se envolvidas na competição e, em consequência, em
práticas de auto-exploração.
Marx
tem uma série de passagens interessantes, onde diz que o primeiro passo em
direção a uma transformação revolucionária é a tomada dos meios de produção
pelos trabalhadores; mas se ficarmos apenas nesse nível, não será suficiente.
Se você começar a pensar em organizar uma cidade inteira (e isso está começando
a acontecer um pouco na Argentina), as fábricas precisarão de matérias primas —
se você está produzindo camisas, precisa de tecido. Mas de onde vem o pano?
Bem, você começa a criar uma rede; monta uma rede de cooperativas produzindo
coisas diferentes, interligadas.
Você
pode imaginar que podem surgir, em uma área metropolitana, economias
interligadas dessa forma, o que nos levaria além das possibilidades de tomar
apenas uma fábrica específica. Outro fato interessante sobre as fábricas na
Argentina é que quando foram tomadas, não permaneceram simplesmente como
fábricas. Tornaram-se centros comunitários, integraram realmente os bairros
próximos, tinham programas educacionais e culturais. Quando os donos voltaram,
uns cinco anos depois, e disseram “queremos nossa fábrica de volta ou levaremos
as máquinas”, a população saiu de suas casas para impedi-los. Assim, é muito
mais fácil de defender as fábricas tomadas.
Claro
que se você tentar criar uma cidade totalmente comunista no meio do
capitalismo, provavelmente irá sofrer uma repressão real e violenta. Estará
numa situação como a da Síria, em uma cidade como Homs onde há um movimento de
oposição muito forte. De certa forma, é uma cidade rebelde, cercada pelo
exército e esmagada, com pessoas mortas e outras submetidas.
Penso
que há perigo real em ir muito longe e muito rápido. Quão longe uma cidade pode
ir, em relação a sua organização? Há exemplos disso: Porto Alegre construiu sua
forma orçamento participativo, e agora há orçamento participativo em muitas
cidades do mundo. Não é uma medida revolucionária, apenas uma medida
transformadora que aprofunda a democracia urbana.
Esse
movimento tornou-se significativo. Algumas inovações ocorrem no campo
ambiental. Outra cidade brasileira muito interessante é Curitiba, que trabalhou
questões ambientais e tornou-se conhecida por organizar seu sistema de
transporte coletivo de uma forma ecológica e sofisticada. As inovações
que vieram de lá também estão sendo implantadas em outras cidades. Você pode
imaginar uma situação como essa nos termos do que chamo de “teoria dos
cupins”[Harvey refere-se aos casos em que é possível corroer por dentro uma
estrutura capitalista, sem alarde, até que ela entre em colapso], para
transformação social. Esta cidade agora tem uma estrutura institucional
diferente, e você começa a ver tais mudanças como algo que se espalha pela rede
urbana.
Ed: No entanto, você também é crítico da teoria dos cupins…
David Harvey: É preciso sempre ter cuidado.
Quando sou crítico, não estou desprezando. Sustento que algumas estratégias são
boas, que as pessoas poderiam adotá-las, mas por outro lado temos que
considerar as limitações da realidade. Em que momento você passa de uma
“estratégia dos cupins”para outra? Uma das coisas em que realmente me empenhei,
no capítulo 5, foi tentar mostrar que há uma variedade de estratégias, para uma
variedade de situações e propósitos. Não devemos, portanto, nos restringir
dizendo: “esta é a única estratégia que vai funcionar”. Podemos adotar
diversas, todas as que forem possíveis. Em alguns casos, não há outra opção
além de se envolver em estratégia de cupins; e é possível, ainda assim, fazer
um bom trabalho.
John: Você fala no livro sobre a cidade chinesa de Chongqing, onde
Bo Xilai, líder do Partido Comunista, liderou processos muito interessantes,
até ser afastado. Seria um exemplo dos riscos de ir “longe demais, rápido
demais”?
David Harvey: Bem, eu não sou especialista em
China, e me pergunto se ele era tão brutal e tão corrupto está sendo pintado;
ou se o retratam dessa maneira porque não gostam do modelo que estava
desenvolvendo. Era maoísta na retórica; estava muito preocupado com a
redistribuição da riqueza. Estava muito claro que sua tentativa de se tornar
poderoso no Comitê Central baseava-se no desenvolvimento deste modelo urbano
particular, radicalmente distinto do que se vê em Xangai, Shenzhen e
lugares assim. Nesse aspecto, eu o achava muito interessante.
Agora,
tanto quanto sei, o Comitê Central tem adotado, como políticas nacionais,
algumas das práticas que Bo lançou em Chongqing. Isso é típico: como sabemos,
há na China uma necessidade de incentivar o mercado interno e alguma
preocupação sobre redistribuição da riqueza. Eles observaram um processo local
bem-sucedido e talvez tenham decidido enfrentar estes problemas por meio de
aumento salários ou construção de habitações, como Bo estava fazendo. Pode ser
o modelo chinês de urbanização, que tem sido, na minha opinião, bastante
desastroso — ambiental e mesmo economicamente — mude nos próximos anos, nas
mesmas linhas que o dirigente afastado estabeleceu. Mas ressalto que são apenas
especulações.
Ed: Quero voltar para o que você afirmou sobre abraçar uma
pluralidade de estratégias, e uma diversidade de formas organizacionais. Você
tem participado de um debate permanente, e às vezes ácido, opondo
“horizontalistas” a “centralistas”, ou “verticalistas”. Pode falar mais sobre
isso, e como se relaciona a sua análise sobre capitalismo e cidade?
David Harvey: Acho que há hoje um grande
apego pela horizontalidade. Tento dizer a meus alunos que gosto de passar
grande parte da minha vida no horizontal, mas também gosto de ficar de pé de
vez em quando e andar por aí! Porque acho que esta oposição não é útil. Sou a
favor de ser tão horizontal quanto você puder. Mas há o que chamo no livro de
uma espécie de fetichismo da forma de organização — o que foi terrível nas
concepções de centralismo democrático dos partidos leninistas e comunistas.
Repito:
a questão é para mim, identificar que tipo de organização será capaz de
enfrentar e resolver cada tipo de problema. Acho que a horizontalidade pode
ajudar a resolver alguns problemas, em certas escalas, mas não funciona em
outras situações. Vivemos num mundo onde há um sistemas muito estruturados, a
de maneira que você também precisa de estruturas de comando e controle para
lidar com eles. Por exemplo, uma estação de energia nuclear é um sistema
fortemente estruturado. Quando algo dá errado, você precisa reagir imediatamente,
caso contrário tudo acontece muito rápido e explode. A universidade não é um
sistema fortemente hierarquizado. Se algo der errado nela; se alguém não
aparecer para uma palestra, por exemplo, isso importa pouco: a instituição
sobrevive perfeitamente bem. Mas em sistemas fortemente hierarquizados, você
precisa tomar decisões com rapidez.
Por
isso, pergunto aos horizontalistas radicais: você quer organizar o controle de
tráfego aéreo por meio de princípios horizontalistsa? Quer ter assembleias o
tempo todo, na torre de controle de tráfego aéreo? Será que funciona? Como você
se sentiria se estivesse no meio de um voo cruzando o Atlântico, e de repente
dissessem: “bem, os controladores de tráfego aéreo estão em assembleia, e eles
vão nos informar amanhã o que decidiram”? Há muitas atividades que precisam,
como essa, de formas bem diferentes de organização. Acho ótimos que as pessoas
estejam debatendo horizontalidade, mas é ruim que digam algo como: “ou é
horizontal, ou não é nada”.
Ed: Estas ideias vêm de um semi-anarquismo, de uma profunda
suspeita diante de qualquer forma de autoridade. Você está dizendo,
basicamente, que ser um radical, um anti-capitalista, ainda é necessário
reconhecer que às vezes a autoridade tem o seu papel?
David Harvey: Sim, claro: acho que a autoridade
tem seu papel. O problema importantíssimo que se coloca é: como você controla
uma autoridade? Quais são os mecanismos de revisão de mandatos e de controle?
Porque uma estrutura hierárquica pode, de fato, tornar-se autoritária. Mas há
uma grande diferença entre autoritarismo e autoridade. Eu acho que em certas
situações, você precisa de alguém para exercer autoridade.
O
exemplo ilustre de que muitas pessoas lembrariam são os zapatistas. Mas eles,
militarmente, não são horizontais. Sobrevivem até hoje precisamente porque, se
você tentar mexer com os militares, eles têm um comando muito bom e estruturas
de controle com os quais podem resistir. Se você não tiver isso, será muito
vulnerável. Uma das críticas que sempre foram feitas à Comuna de Paris é que,
devido a uma espécie de anarquismo filosófico, não havia nenhuma autoridade
central para defender a cidade inteira.
As
pessoas defendiam seu distrito, mas não toda a cidade. Por isso as forças da
reação puderam atacar: não havia nenhuma estrutura de comando e controle para
resistir militarmente à invasão.
John: Você fala, no novo livro, sobre Muinrray Bookch Murray, e
sua abordagem sobre uma saída para este problema de escala.
David Harvey: Sou um geógrafo, e o
pensamento anticapitalista na Geografia sempre foi predominantemente
anarquista. Os anarquistas têm uma longa tradição de estar muito mais
interessados em questões ambientais e urbanas que os marxistas. Eles exerceram,
ao longo do tempo, muita influência sobre as práticas de planejamento. Figuras
como Lewis Mumford, que vêm dessa tradição, exerceram muita influência —
inclusive sobre mim, obviamente. E Bookchin é seu herdeiro. Estou
interessado em seus ensaios sobre municipalismo libertário: fala sobre formas
horizontais de organização descentralizada mas, em seguida, fala também sobre a
confederação das assembleias regionais. Foca sobre as necessidades das
bio-religiões, em vez de se limitar a comunidades particulares.
Ou
seja, ele está disposto a pensar em uma estrutura hierárquica de algum tipo,
tenta falar sobre como os poderes foram atribuídos e como devem ser. Recorre a
um pequeno truque teórico de Saint-Simon: diz que pode haver gerenciamento das
coisas, não de pessoas. Que deve-se gerir, por exemplo, o abastecimento de água
ou o saneamento uma região — mas não o que as pessoas fazem. É muito diferente
da política real, mas a ideia, e o pensamento de Bookchin em geral — me parece
muito interessante.
Participei,
há duas semanas, de uma reunião em Nova York, com David Graeber. Murray
Bookchin compareceu ao debate. Sua filha estava na platéia, e nós conversamos
sobre reunir, num pequeno livro, uma seleção de escritos de Murray sobre o
tema. Acho que é um momento muito bom para reintroduzir a tradição anarquista,
que pode contribuir para o debate sobra algumas questões mais amplas. Por
exemplo, como você realiza tantas assembleias municipais e não coloca em
questão o fato de algumas pessoas, com muitos recursos, converterem-se em
ultra-ricos — enquanto muitos, sem recursos, reduzem-se a ultra-pobres?
Ed: Sua visão parece que, no fim das contas, será necessário um
Estado. Parece que você acha que Bookchin talvez aceite isso, mas não pode
admitir.
David Harvey: Sim. Você sabe: o que se parece
com um Estado, é visto como um Estado, e se expressa como um Estado… é um
Estado! Há algo que se pode chamar de Estado capitalista, que poderíamos querer
esmagar. Mas há, também, uma forma de organização diz respeito às relações
entre diferentes assembleias e grupos. E no plano mundial, você também tem que
pensar sobre certas questões como o aquecimento global. Precisam ser abordadas
e compreendidas em plano global. Significa que certas ideias sobre o que
fazer têm de ser resultado de uma preocupação mundial.
John: Isso nos leva de volta a um ponto que abordamos antes, sobre
as organizações com base geográfica. Existe uma oposição entre o urbano e o
não-urbano?
David Harvey: Muitas pessoas me fazem essa
pergunta. Elas dizem “a cidade não existe realmente hoje. Você está falando
sobre o direito a algo que não existe na mais?” Ou: “você está falando sobre a
cidade, por que não sobre o campo. Por que você não fala sobre as áreas
rurais?”. Minha resposta é que, de fato, nos últimos cinquenta anos, nós nos
tornamos um mundo totalmente urbano, e o que pode ter sido verdade há algum
tempo — a existência de uma vida urbana e uma vida camponesa auto-sustentável,
independente — desapareceu em grande parte. O que você vê é um contínuo entre o
campo e a cidade. Na América Latina, por exemplo, se você está na área rural,
as pessoas assistem aos mesmos canais na televisão, dirigem os mesmos carros.
Isso é o que chamo de desenvolvimento geográfico desigual no interior do
processo de urbanização.
E
desse ponto de vista, você diz que as diferenças no interior das cidades são
tão significativas quanto as diferenças entre a cidade e subúrbio, e o subúrbio
e as zonas não-urbanas. Há tantas diferenciações no interior do próprio
processo de urbanização, que a diferença entre áreas ricas e favela é dramática
— na realidade, mais dramática que a que existe entre o que acontece na cidade
e fora dela.
Há
formas de organização que refletem isso. O movimento dos trabalhadores
sem-terra no Brasil tem conexões urbanas muito amplas e as leva muito em conta.
Ele não se vê fora do mundo autônomo, mas como parte de um processo geral de
urbanização. É como quero ver este processo. Há, em alguns lugares, tentativas
de organizar uma cadeia de produção de alimentos para as cidades, que começa
nos campos e passa por várias etapas. Vendendo a produção diretamente aos
supermercados, por exemplo — o que me parece uma ideia muito
interessante. Em El Alto [subúrbio popular de La Paz, Bolívia], um dos meus
exemplos preferidos, a conectividade entre as pessoas que vivem na cidade e as
que estão fora dela é muito, muito forte. Foi ampliada, nos últimos dez ou
quinze anos, por causa do agro-negócio e a forma com que o campo tem se
transformado em uma paisagem capitalista.
Ed: Então um urbanismo revolucionário uma forma universal de
revolução política?
David Harvey: Eu diria que sim. A única
razão pela qual me atenho à palavra “cidade” é que ela tem um significado
icônico e é foco de sonhos e utopias. Ao mencioná-la, você está invocando o
imaginário de uma cidade linda, uma cidade na colina, etc. Continuo com o termo
“cidade”, mas entendo perfeitamente que, em um sentido estrito, diferenciado de
todo o resto, ela essencialmente desapareceu.
3 comentários:
Ontem estava ancioso para você postar a segunda parte da entrevista.
Ainda bem que publicou hoje, porque tambem é excelente!
Como eu disse no comentário que publiquei na primeira parte desta entrevista: o pensamento dele está muito atual em relação aos novos marxistas.
Fico feliz de conhecer mais e mais pensadores e intelectuais que pensem assim. Que procurem novos caminhos. Que esqueçam Cuba, China e URSS. Tudo isto faz parte de um passado sujo em que a "Momenklatura" quiz usurpar um pensamento que não lhes pertencia.
Sim, concordo, as cidades estão a desaparecer.
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