Sujeitos paradoxais
Para
um novo movimento social emancipatório o que importa não é mais despertar pelo
beijo um “sujeito objetivo”, mas fazer uma crítica da forma sujeito, sem
salvaguarda ontológica, e interpretá-la como forma de existência capitalista. A
forma “sujeito” sempre só pode ser um agente do “sujeito automático” da
valorização do capital e não pode ser confundida com a vontade para a ação
emancipatória, a qual precisa constituir-se a si própria e não pode ter
fundamento ontológico. Isto é algo difícil de ser pensado, porque justamente a
esquerda pós-moderna desistiu da crítica do sujeito (o Foucault tardio
voltou a apelar para o sujeito particularizado). Essa crítica fracassou
principalmente por não estar conectada com a crítica da economia política.
Este
problema também está ligado à crítica da moderna relação entre os gêneros. É
verdade que a esquerda tradicional e também a esquerda pós-moderna fez suas
mesuras obrigatórias perante o feminismo, mas nunca levou realmente a sério a
sua temática. Também o próprio feminismo, apesar de meritórias análises, em
grande parte limitou-se a definir as mulheres como “sujeito objetivo” tão
paradoxal quanto a “classe operária”. O postulado de uma "formação de
sujeito" feminina, por isso, leva ao mesmo beco sem saída. Também o
feminismo foi vitimado pela transição pós-moderna e dissolveu a forma de
existência feminina “divergente” [“abgespalten”] no capitalismo numa
“diversidade” de aspirações emancipatórias particulares que não tangem o
problema central.
Também
aí seria importante mediar a crítica do patriarcado moderno com a crítica da
economia política, e não tratá-la como questão “derivada” [“abgeleitet”],
secundária. No caso, é fundamental a noção de que as categorias aparentemente
neutras do capital e a respectiva forma “sujeito” em si já são “masculinas”, e
que a “razão” capitalista é androcêntrica na origem. A dissolução da família
tradicional e dos respectivos papéis de gênero nada altera no caso, porque o
caráter androcêntrico do capitalismo continua de outra forma. A crítica dessas
formas sociais e a crítica da relação capitalista dos gêneros condicionam-se
mutuamente e precisam ser pensadas em conjunto.
A
crítica do “sujeito objetivo” do “trabalho” e da existência feminina
“divergente” não é jogo de palavras, mas tem consequências práticas enormes
para a superação do capitalismo. Acontece que desse modo também ficou liquidada
a noção do marxismo antigo de emancipação social e de socialismo “dentro” das
categorias capitalistas que somente teriam que ser reguladas e moderadas de
outra forma. No limite histórico do capitalismo, levanta-se o desafio da
“crítica categorial” da conexão entre “trabalho abstrato”, forma de mercadoria
e “valorização do valor” bem como da relação entre os sexos neste contexto.
Isto também é difícil de ser pensado, porque essas condições existenciais estão
interiorizadas, tendo sido inclusive firmadas ainda mais pelo pensamento
pós-moderno. Somente a formulação de novo objetivo socialista sobre a base de
uma “crítica categorial” pode levar ao desenvolvimento de exigências de
transição imanentes que também sejam adequadas no processo da crise histórica,
assim obtendo real poder de se impor. Sem o foco unificador sobre o âmago do
capitalismo, movimentos sociais permanecem indefesos e particularizados. É de
se temer, entretanto, que a esquerda, pega de surpresa pela crise, acabe
confiando em concepções demasiado tacanhas de suposta “salvação”, assim apenas
ratificando sua impotência histórica.
IHU On-Line - Em que sentido a conjuntura atual tem contribuído
para que a política se torne um modelo em extinção? Podemos dizer que a
economia “colonizou” a política? Está se repensando a política a partir do que
está acontecendo atualmente?
Robert Kurz - A política centrada no Estado
como instância sintetizadora do capitalismo está saindo de linha não por ter
sido colonizada pela economia, mas por ter fracassado, há muito, em função de
suas próprias premissas. O problema não tem a ver apenas com a condição
exterior da globalização do capital, a qual rompeu os espaços de economia
nacional. A força reguladora do Estado se extingue principalmente pelo fato de
substancialmente nada mais haver para ser regulado. A valorização capitalista
nas formas de “trabalho abstrato” de dinheiro sempre já tem constituído a
premissa do Estado, a qual ele não consegue contornar. Quando o capital se
desvaloriza pelo seu próprio desenvolvimento de capacidade produtiva, o Estado
somente consegue reagir a isso mediante inflacionária emissão de dinheiro pelo
seu banco central. Isto não supera a falta de substância do capital virtualizado,
mas a exacerba como desvalorização do veículo-fim-em-si-mesmo chamado dinheiro.
Ocorre que a competência do banco central é puramente formal; sua geração de
dinheiro somente pode dar expressão à produção substancial de valor agregado
mediante “trabalho abstrato”, mas não consegue substituí-la.
Os
limites do crédito estatal já haviam sido alcançados no final dos anos 1970.
Naquela época, a expansão do crédito estatal, desprovida de substância, foi
punida por surtos inflacionários. A ilusão do neoliberalismo consistiu no fato
de atribuir a inflação exclusivamente à atividade do Estado. A
desregulamentação neoliberal somente transferiu o problema do crédito estatal
para os mercados financeiros. Embora a punição da inflação ficasse protelada
por causa do caráter transnacional da economia de bolhas financeiras, o
potencial inflacionário começou a manifestar-se na conjuntura deficitária
global até 2008. Esse processo, num primeiro momento, foi interrompido porque
desde então o capital virtual e com ele a conjuntura mundial estão dando seu
último suspiro. Mas se agora o Estado é novamente invocado como “última
instância” e deus ex machina, seus pacotes conjunturais e de salvação novamente
terão que provocar a desvalorização do próprio dinheiro; só que isso acontecerá
numa fase de desenvolvimento mais elevada e em proporção muito maior que trinta
anos atrás.
Renascimento da política
Neste
cenário, a esperança pelo “renascimento da política” é a maior de todas as
bolhas. Os danos provocados pela limitação política dos prejuízos serão
inclusive maiores que a crise atual. O Estado somente ainda consegue
regulamentar a morte definitiva do seu capitalismo. Neste aspecto, a esquerda
também está desorientada enquanto não conseguir questionar os próprios
fundamentos do sistema. Na mesma medida em que a suposta “autonomia” dos
movimentos sociais particulares e simbólicos vira fumaça pela barreira interior
da valorização, é de se temer que a esquerda sofra uma regressão para o seu
tradicional estatismo, porque nada mais lhe ocorre. Já agora a maior parte
daquilo que pretende ser crítica social de esquerda praticamente não passa de
um pouquinho de nostalgia keynesiana. Se é que a esquerda espera lançar suas
“reformas sociais” aproveitando o bonde da administração estatista da crise,
ela acabará descarrilando junto com ele e, uma vez passado seu carnaval no
virtualismo, ela se tornará um trendsetter da política inflacionária. Ela bem
que merece esse destino.
IHU On-Line - Que outras forças de esquerda podem surgir nesse
momento?
Robert Kurz - Se fracassar a esquerda global
presa nas categorias capitalistas, a gente naturalmente ficará se perguntando
onde é que há outras forças de emancipação social. Com certeza haverá rebeliões
e conflitos sociais quando as pessoas ficarem privadas de suas condições
básicas de vida, por mais precárias que sejam. Essas erupções também podem
tomar o rumo da direita, manifestando-se como sexismo, racismo, antissemitismo
e nacionalismo, embora isso não tenha a menor chance de superação reacionária
da crise. Também ocorrem levantes sociais espontâneos que se entendem vagamente
como esquerdistas, como se pode observar na Grécia faz alguns meses. Esses
vândalos juvenis a reagir visceralmente contra a opressão das necessidades
vitais já estão sendo mitificados por alguns esquerdistas, que os usam contra a
necessária transformação teórica.
Mas
o culto da espontaneidade sempre passou vexame. As revoltas espontâneas da
juventude, por mais organizadas que sejam, darão em nada, se não puderem
adquirir uma noção crítica da situação em termos condizentes com a época. Por
isso não existe alternativa, senão desenvolver nova meta socialista por meio de
uma crítica categorial que não pode ficar vinculada ao “falso caráter imediato”
da práxis espontânea. É preciso aguentar essa tensão para que a emergente
resistência social não morra sufocada em seu próprio palavreado a campear
“filosofia de vida”.
IHU On-Line - O senhor diz que a sociedade mundial precisa se
libertar do jogo do economismo real e organizar seus recursos de uma nova
forma, além do Estado e do mercado. Nesse sentido, como a esquerda pode
desenvolver um trabalho revolucionário e mudar a atual conjuntura? Quais
seriam, neste caso, as propostas da esquerda diante da crise financeira
internacional?
Robert Kurz - É preciso salientar que é
justamente a sociedade que precisa ser libertada globalmente do economismo real
do capital. É verdade que uma nova forma de reprodução somente pode ter êxito
mais além do mercado e do Estado. Nos últimos anos, essa fórmula foi cada vez
mais usada no sentido de ser apenas uma economia alternativa cooperativista,
por assim dizer “ao lado” da síntese social pelo capital, e a qual de alguma
maneira haveria de se ampliar aos poucos. Isto apenas dá continuidade ao
particularismo “colorido” pós-moderno. Entretanto, a formação negativa de
sociedade [negative Vergesellschaftung] do capitalismo somente pode ser
superada por inteiro, ou não será superada. A economia alternativa cooperativista
já tem um longo histórico e sempre fracassou, da última vez nos anos 1980.
Esta
crise de proporções históricas não melhora as condições para semelhantes
ideias, muito pelo contrário. Isto porque uma reprodução “alternativa” restrita
a um espaço pequeno não só está vinculada a imposições sociais inconfessas, mas
também fica na dependência das funções de mercado e Estado, uma vez que por
conta própria só consegue satisfazer poucas necessidades vitais. E a reprodução
real dos indivíduos fica inserida num encadeamento que Marx, sob condições
capitalistas, chamou de “trabalho social total”. Essa estrutura somente pode
ser transformada por inteiro; não se pode começar com batatas ou software e
achar que se criou um “modelo” em escala reduzida, que só precisaria ser
aplicado à sociedade como um todo. O “platonismo de modelo” é produto da teoria
econômica burguesa, não da crítica radical.
Quando,
em plena crise, por falta de “financiabilidade”, se desligam água e luz, quando
entram em colapso a assistência médica e a distribuição capitalista de gêneros
alimentícios, então o que está em pauta não é o gradativo “entrar em rede” de
comunas que pretendem reformar a vida, ou a “formação de rede” de permuta
virtual, e sim a transformação do modo capitalista de “formação de rede” de
toda a sociedade. Para tanto, é necessária a resistência organizada de toda a
sociedade contra a administração da crise que estipula metas próprias em nível
de síntese social.
Economia solidária como placebo
Daí
só desviam a atenção os placebos particularistas tipo “economia solidária”, que
geralmente consistem numa mixórdia de economia de subsistência, “reformas
monetárias” ilusórias e abstrata ideologia comunitária. Querem fazer da
urucubaca uma bênção. É muito coerente que essas propostas também fiquem
namorando com “soluções para a crise financeira” e se aliem à nostalgia
keynesiana. Não existe mais solução para a crise financeira; deve-se atacar o
próprio critério de “financiabilidade”, se é que se pretenda levar a sério um
novo modo de reprodução que vá além do mercado e do Estado.
IHU On-Line - Considerando que estamos na era da informação e
vivendo a crise do capital, que novos rumos vão compor o mundo do trabalho no
que se refere à relação capital/trabalho? Considerando a inserção de
novas tecnologias na sociedade atual, mas também as atuais crises, é possível
pensar em desglobalização na era da informatização? Podemos pensar assim em uma
nova economia mundial?
Robert Kurz - A informática enquanto base da
terceira revolução industrial justamente gerou o desenvolvimento da capacidade
produtiva que necessariamente tinha que levar à barreira interior do
capitalismo. Sob condições capitalistas, trata-se de pura “tecnologia da
crise”, que só mais além da valorização poderia desenvolver potenciais
positivos. A ilusão pós-moderna e do capitalismo financeiro consistia em que a
informática implicaria novas formas do “trabalho imaterial”, numa assim chamada
sociedade da informação, bem como novas relações entre capital e trabalho, com
maior “autodeterminação” dos trabalhadores. Na verdade, a “era da informação”
já no passado levou ao desemprego em massa, ao subemprego e à precarização das
relações de trabalho. Já a suposta autodeterminação levou a uma compulsiva
“autorresponsabilização” dos indivíduos pelo processo de valorização. Antonio
Negri pretendia estilizar essa evolução negativa como opção para uma
“autovalorização autônoma” (autovalorisazzione). Esta acabou virando um chavão
para a administração repressiva do trabalho, a qual a transformou na proposta
de definir os indivíduos como “autoempresários da sua força de trabalho” e como
“gestores do seu próprio capital humano”, a fim de deixá-los totalmente à mercê
das condições do capitalismo em crise. A nova crise exacerbaria dramaticamente
essas tendências e desmentiria de uma vez por todas as tentativas de tentar
enxergar na forma capitalista da sociedade da informação uma “ambivalência” com
potencial emancipatório. A metafísica pós-moderna da ambivalência está
esgotada.
A
globalização não pode ser reduzida à tecnologia da informação. Sob condições
capitalistas ela somente poderia ser uma globalização do capital, sob cujo
mando também se encontra a informação. É de se esperar que, com a política
inflacionária do Estado, o processamento da crise leve a uma “desglobalização”
na medida em que se ensaie a retirada para o egoísmo protecionista das
economias nacionais, que somente ainda são formais; tudo isso acompanhado de
ideologias neonacionalistas. Só que isto não pode superar a crise, apenas a
agrava. Também é de se perguntar se a internet é sustentável – não por causa de
um possível colapso tecnológico (embora também aí haja indícios de esgotamento
da capacidade) -, mas porque ela depende de uma formidável infraestrutura, cuja
“financiabilidade” está tão em dúvida quanto todo o resto. Uma globalização
meramente virtual não é sustentável, caso não esteja ligada à reprodução
material transnacional mais além do capitalismo. As maritacas da blogosfera e
os bitolados freaks da internet ainda podem levar um baita susto.
IHU On-Line - Como se pode falar em ética nos moldes atuais da
sociedade capitalista?
Robert Kurz - Em todas as formações fetichistas
históricas, ética não passou de uma tentativa de conviver socialmente com as
condições de reprodução dadas, pressupostas às cegas, sem superá-las. Mesmo a
ética burguesa moderna pretende resolver contradições e crises sem tocar nas
causas constitutivas. Nela, o lugar da crítica radical deve ser assumido por um
cânon de normas de conduta moral para os indivíduos, para que dentro das formas
existentes a pessoa possa ficar nice para as outras. O que pode falhar não é o
sistema, mas apenas a moral dos indivíduos. A crise atual, aliás, também tem
sido atribuída aos déficits éticos dos banqueiros e executivos. Não é por acaso
que o “pacote de resgate” de maior volume está na ética, que, para variar, está
em alta. Infelizmente esse pacote está totalmente oco. O “sujeito automático”
não está acessível para quaisquer imperativos éticos; ética, portanto, é mais ou
menos a última coisa com que a teoria crítica deveria ocupar-se.
5 comentários:
E ele encerra com chave de ouro quando diz:
"O 'sujeito automático' não está acessível para quaisquer imperativos éticos; ética, portanto, é mais ou menos a última coisa com que a teoria crítica deveria ocupar-se."
L.P.
Sem dúvida um grande pensador marxista e uma grande entrevista.
Mas infelizmente Robert Kurz faleceu no último dia 18 de julho. Agora, há pouco tempo atrás.
Repito: Robert Kurz provou que o marxismo ainda é a grande linha filosófico-política-econômica até hoje...
Quando Kurz se refere à necessidade de aguentar a tensão para que a resistência social não morra sufocada em seu próprio palavreado ele tem razão. Este é o grande risco da revolução se perder.
Somente a formulação de um novo objetivo socialista poderá levar ao desenvolvimento de exigências numa transição que estejam adequadas ao processo da atual crise sistêmica.
Mas o que acontece é que a esquerda encontra-se num momento de desorientação por não conseguir questionar os próprios fundamentos e a falência do capitalismo.
Entre outras coisas porque o trauma causado pelas distorções na extintas URSS deixou sequelas profundas.
Concordo com a Joelma.
Aliás, coomo disse o próprio Kurz na primeira parte desta entrevista:
"Enquanto não conseguir questionar os fundamentos do sistema, a esquerda seguirá desorientada, e, se aproveitar o 'bonde da administração estatista da crise' para propor suas reformar sociais, descarrilará com ele..."
Grave, muito grave isto!
Postar um comentário