Em momento político pós eleições
presidenciais, segundo muitos a mais acirrada desde a “redemocratização”, a
direita brasileira botando suas manguinhas golpistas de fora, com o lançamento
da candidatura Marina Silva, que desdobrou-se na coligação Aécio/Marina; e após
o ressurgimento de chavões antigos desta mesma direita, como: “o país está um
mar de lamas”, frase utilizada pela UDN golpista (via Carlos Lacerda) ao tentar
derrubar Getúlio Vargas em 1954, é necessário que se comente o que representou
essa mesma direita com o disfarce de uma cara nova nas manifestações de junho
de 2013.
Passados mais de um ano dos acontecimentos de junho de 2013, ficam mais
claras certas peculiaridades das manifestações que tiveram um perfil bem
distinto do que habitualmente marcaram as lutas sociais no Brasil. Não foram
convocadas nem pelos partidos de esquerda, nem pelos movimentos sociais
tradicionais. A partir do chamado de um pequeno grupo, o Movimento Passe Livre (MPL), as multidões se autoconvocaram, usando
as redes sociais. Esta cultura política de autonomia não é inteiramente nova.
Foi ela que suscitou, no início deste século 21, grandes eventos, como os Fóruns Sociais Mundiais. Este fato sacode
um cenário político que tende à estagnação, já que esquerda (moderada) no
governo tem grandes compromissos com o poder econômico e avança muito devagar;
mas a alternativa institucional viável a ela é muito pior, representada pelos
partidos conservadores e neoliberais que loteariam o país às multinacionais.
A partir de 15 de junho de 2013, este movimento sofreu uma interferência
que pode paralisá-lo ou inverter seu sentido. A mídia e os partidos à direita
do PT, que até então o demonizavam e o reprimiam, fizeram um grande giro
tático. Procuraram esvaziar a reivindicação de direitos e igualdade (ou seja,
seu caráter “perigoso” de crítica social) e suscitar, em seu lugar, a luta
genérica “contra a corrupção”. Ao
fazê-lo tentaram, ao mesmo tempo, voltar o movimento contra os governos de
esquerda. Tirá-los do poder, seja de que forma for, é algo que, nos últimos dez
anos, nunca saiu da agenda da direita.
Diversos sinais indicam esta tática. A ação que eles desenvolveram –
radicalizar artificialmente os movimentos, para justificar a “restauração
(autoritária) da ordem” – é típica em golpes de Estado na América Latina, como
o do Brasil (1964) e do Chile (1973). Além disso, as manifestações de junho de
2013 tiveram a presença ostensiva de skinheads e de outros grupos típicos
de direita que agrediram militantes de esquerda. Neste mesmo dia, a asquerosa TV
Globo quebrou um tabu e deixou de transmitir todas as suas novelas, para
“cobrir” as manifestações, claramente de maneira distorcida, em seu esforço
para capturá-las. Já no dia 21/06 (à noite), pequenos grupos cortaram,
simultaneamente o tráfego de quase todas as rodovias que ligam São Paulo ao
resto do país. E houve saques na Via Dutra e outras no estado de São Paulo. São
táticas totalmente estranhas aos movimentos sociais, adotadas para gerar medo e
pedidos de uma intervenção “policial-militar”.
Os conservadores não desejavam, nem convocaram os
protestos. Apropriaram-se momentaneamente deles. Mas tinham muito a temer. Se a
agenda dos direitos continuasse a se difundir, e se o espaço horizontal das
ruas continuasse a ser experimentado pelas multidões, logo entrariam em pauta
temas que exigiriam mudanças sociais “perigosas” – muito mais profundas que as
realizadas nos últimos anos.
Para a esquerda é necessário um esforço de romper a barreira da crítica
genérica à “corrupção” e ao “poder”. Passar deste discurso ingênuo e inofensivo
para as mudanças sociais; das cidades (e sociedades) para todos; da
redistribuição de riquezas. É um passo árduo, exige enfrentar a avalanche da
mídia em favor de conceitos massificantes e mistificadores, como “o gigante
acordou”. Implica propor questões mais profundas, porém de extrema potência:
“quem é o gigante”? “quem se apropria da riqueza que ele produz”? “como tornar
esses assuntos de e para todos”?
É preciso notar que a dinâmica do debate nacional mudou. Nos últimos dez
anos, nos acostumamos a uma disputa de visões de país permanente, porém de
baixa intensidade. De repente, isto ficou para trás. A agressividade que os
conservadores demonstraram, sua disposição de convocar tanto a violência
policial extrema (como em São Paulo) quanto os skinheads não deve deixar
dúvidas sobre o que está em jogo. Ao menos nesse momento, o antídoto eficaz
contra o golpismo não é a moderação – é tornar mais concreta, e mais profunda,
a agenda dos direitos para todos.
Um dos motes mais traiçoeiros que circularam nas manifestações foi “o
gigante acordou”. Seu apelo ao nacionalismo embrutecedor (“nação” é um conceito
que pode servir tanto para unir contra a opressão externa quanto para mascarar
nossas próprias desigualdades) é claro. Pior: repetido quase sempre por
ingenuidade, ele contrabandeia para dentro do movimento uma ideia
despolitizadora. Sugere que as lutas para mudar o Brasil estão começando agora.
Procura ocultar o esforço de décadas (e até dos séculos, quando dos quilombos),
feito pelos movimentos sociais e sociedade civil, para formular pautas ligadas
à garantia de direitos para todos. Todas
estas reivindicações são importantes, para romper a barreira
mistificadora da mídia e das elites.
Porém talvez valha a pena, neste momento de disputa aguda de sentidos,
concentrar energia naquelas que, por dialogarem com o sentimento das ruas,
provocam e fazem refletir. Defini-las é algo que precisaremos fazer em
conjunto.
O primeiro alvo, quase óbvio, é a Rede Globo
e os demais barões da mídia. Slogans
contra a emissora da família Marinho espalharam-se e tiveram ressonância em
todas as manifestações. Eles tocam numa grande encruzilhada do período em que
estamos. O oligopólio das comunicações mantém enorme influência e age de modo
ostensivo para disputar o sentido do movimento. Mas tem telhado de vidro fino:
nunca foi tão amplo o setor da sociedade que compreende sua ação manipuladora.
A Globo precisa ser alvo de campanhas na internet, manifestações de rua,
boicotes. Denunciar seu poder, símbolo do oligopólio, abre caminho para a
bandeira da democratização das Comunicações.
Também os que foram capturados pela bandeira “contra a corrupção” voltam-se,
no fundo, contra os privilégios e desigualdades. É preciso dar materialidade a
estes sentimentos, mostrando que a direita não oferece alternativa alguma para
eles . “Contra a corrupção” precisa desdobrar-se, por exemplo, em “Fora o Poder
Econômico na Política”. É uma forma popular de abordar a Reforma Política – outra
bandeira estratégica para mudar o país e indispensável neste momento decisivo.
Diversos movimentos teem trabalhado em torno deste tema.
O alcance que a luta contra o aumento das tarifas assumiu mostra como a
agenda do Direito à Cidade
toca a população brasileira. Dezenas de milhões de pessoas, que vivem nas
periferias das metrópoles, deixaram de se sentir inferiores nos últimos
dez anos. Percebem-se injustiçadas: sem elas, não se produziria uma
imensa riqueza, da qual são excluídas. Querem igualdade e direitos. Além
disso, a “classe média” é muito mais que os “coxinhas” da “luta contra a
corrupção”. Ela inclui um setor criativo, libertário, defensor de um país para
todos e disposto a participar de sua construção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário