domingo, 2 de novembro de 2014

Pensatas de domingo. As novas táticas da direita em manifestações públicas




Em momento político pós eleições presidenciais, segundo muitos a mais acirrada desde a “redemocratização”, a direita brasileira botando suas manguinhas golpistas de fora, com o lançamento da candidatura Marina Silva, que desdobrou-se na coligação Aécio/Marina; e após o ressurgimento de chavões antigos desta mesma direita, como: “o país está um mar de lamas”, frase utilizada pela UDN golpista (via Carlos Lacerda) ao tentar derrubar Getúlio Vargas em 1954, é necessário que se comente o que representou essa mesma direita com o disfarce de uma cara nova nas manifestações de junho de 2013.

Passados mais de um ano dos acontecimentos de junho de 2013, ficam mais claras certas peculiaridades das manifestações que tiveram um perfil bem distinto do que habitualmente marcaram as lutas sociais no Brasil. Não foram convocadas nem pelos partidos de esquerda, nem pelos movimentos sociais tradicionais. A partir do chamado de um pequeno grupo, o Movimento Passe Livre (MPL), as multidões se autoconvocaram, usando as redes sociais. Esta cultura política de autonomia não é inteiramente nova. Foi ela que suscitou, no início deste século 21, grandes eventos, como os Fóruns Sociais Mundiais. Este fato sacode um cenário político que tende à estagnação, já que esquerda (moderada) no governo tem grandes compromissos com o poder econômico e avança muito devagar; mas a alternativa institucional viável a ela é muito pior, representada pelos partidos conservadores e neoliberais que loteariam o país às multinacionais.

A partir de 15 de junho de 2013, este movimento sofreu uma interferência que pode paralisá-lo ou inverter seu sentido. A mídia e os partidos à direita do PT, que até então o demonizavam e o reprimiam, fizeram um grande giro tático. Procuraram esvaziar a reivindicação de direitos e igualdade (ou seja, seu caráter “perigoso” de crítica social) e suscitar, em seu lugar, a luta genérica “contra a corrupção”.  Ao fazê-lo tentaram, ao mesmo tempo, voltar o movimento contra os governos de esquerda. Tirá-los do poder, seja de que forma for, é algo que, nos últimos dez anos, nunca saiu da agenda da direita.
Diversos sinais indicam esta tática. A ação que eles desenvolveram – radicalizar artificialmente os movimentos, para justificar a “restauração (autoritária) da ordem” – é típica em golpes de Estado na América Latina, como o do Brasil (1964) e do Chile (1973). Além disso, as manifestações de junho de 2013 tiveram a presença ostensiva de skinheads e de outros grupos típicos de direita que agrediram militantes de esquerda. Neste mesmo dia, a asquerosa TV Globo quebrou um tabu e deixou de transmitir todas as suas novelas, para “cobrir” as manifestações, claramente de maneira distorcida, em seu esforço para capturá-las. Já no dia 21/06 (à noite), pequenos grupos cortaram, simultaneamente o tráfego de quase todas as rodovias que ligam São Paulo ao resto do país. E houve saques na Via Dutra e outras no estado de São Paulo. São táticas totalmente estranhas aos movimentos sociais, adotadas para gerar medo e pedidos de uma intervenção “policial-militar”.

Os conservadores não desejavam, nem convocaram os protestos. Apropriaram-se momentaneamente deles. Mas tinham muito a temer. Se a agenda dos direitos continuasse a se difundir, e se o espaço horizontal das ruas continuasse a ser experimentado pelas multidões, logo entrariam em pauta temas que exigiriam mudanças sociais “perigosas” – muito mais profundas que as realizadas nos últimos anos.
Para a esquerda é necessário um esforço de romper a barreira da crítica genérica à “corrupção” e ao “poder”. Passar deste discurso ingênuo e inofensivo para as mudanças sociais; das cidades (e sociedades) para todos; da redistribuição de riquezas. É um passo árduo, exige enfrentar a avalanche da mídia em favor de conceitos massificantes e mistificadores, como “o gigante acordou”. Implica propor questões mais profundas, porém de extrema potência: “quem é o gigante”? “quem se apropria da riqueza que ele produz”? “como tornar esses assuntos de e para todos”?

É preciso notar que a dinâmica do debate nacional mudou. Nos últimos dez anos, nos acostumamos a uma disputa de visões de país permanente, porém de baixa intensidade. De repente, isto ficou para trás. A agressividade que os conservadores demonstraram, sua disposição de convocar tanto a violência policial extrema (como em São Paulo) quanto os skinheads não deve deixar dúvidas sobre o que está em jogo. Ao menos nesse momento, o antídoto eficaz contra o golpismo não é a moderação – é tornar mais concreta, e mais profunda, a agenda dos direitos para todos.
Um dos motes mais traiçoeiros que circularam nas manifestações foi “o gigante acordou”. Seu apelo ao nacionalismo embrutecedor (“nação” é um conceito que pode servir tanto para unir contra a opressão externa quanto para mascarar nossas próprias desigualdades) é claro. Pior: repetido quase sempre por ingenuidade, ele contrabandeia para dentro do movimento uma ideia despolitizadora. Sugere que as lutas para mudar o Brasil estão começando agora. Procura ocultar o esforço de décadas (e até dos séculos, quando dos quilombos), feito pelos movimentos sociais e sociedade civil, para formular pautas ligadas à garantia de direitos para todos. Todas estas reivindicações são importantes, para romper a barreira mistificadora da mídia e das elites.

Porém talvez valha a pena, neste momento de disputa aguda de sentidos, concentrar energia naquelas que, por dialogarem com o sentimento das ruas, provocam e fazem refletir. Defini-las é algo que precisaremos fazer em conjunto.
O primeiro alvo, quase óbvio, é a Rede Globo e os demais barões da mídia. Slogans contra a emissora da família Marinho espalharam-se e tiveram ressonância em todas as manifestações. Eles tocam numa grande encruzilhada do período em que estamos. O oligopólio das comunicações mantém enorme influência e age de modo ostensivo para disputar o sentido do movimento. Mas tem telhado de vidro fino: nunca foi tão amplo o setor da sociedade que compreende sua ação manipuladora.
A Globo precisa ser alvo de campanhas na internet, manifestações de rua, boicotes. Denunciar seu poder, símbolo do oligopólio, abre caminho para a bandeira da democratização das Comunicações.

Também os que foram capturados pela bandeira “contra a corrupção” voltam-se, no fundo, contra os privilégios e desigualdades. É preciso dar materialidade a estes sentimentos, mostrando que a direita não oferece alternativa alguma para eles . “Contra a corrupção” precisa desdobrar-se, por exemplo, em “Fora o Poder Econômico na Política”. É uma forma popular de abordar a Reforma Política outra bandeira estratégica para mudar o país e indispensável neste momento decisivo. Diversos movimentos teem trabalhado em torno deste tema.
O alcance que a luta contra o aumento das tarifas assumiu mostra como a agenda do Direito à Cidade toca a população brasileira. Dezenas de milhões de pessoas, que vivem nas periferias das metrópoles, deixaram de se sentir inferiores nos últimos dez anos. Percebem-se injustiçadas: sem elas, não se produziria uma imensa riqueza, da qual são excluídas. Querem igualdade e direitos. Além disso, a “classe média” é muito mais que os “coxinhas” da “luta contra a corrupção”. Ela inclui um setor criativo, libertário, defensor de um país para todos e disposto a participar de sua construção.

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