Júlia
Dias Carneiro - BBC Brasil - Rio de Janeiro
Assinado há 50 anos pelo general Artur da Costa e
Silva, o AI-5 autorizou uma série de medidas de exceção, autorizando o presidente
a fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos parlamentares, intervir em
Estados e municípios, suspender os direitos políticos de qualquer cidadão por
até dez anos e suspender a garantia do habeas corpus.
Professor titular de História Brasileira na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carlos Fico afirma que o ato
inaugurou o período mais violento do regime militar, entre 1969 e 1973, e
caracterizou-o explicitamente como uma ditadura.
Em entrevista à BBC News Brasil, o
historiador afirma que discursos que buscam negar a ditadura são expressão de
uma "ignorância histórica". Para ele, o governo do presidente eleito
Jair Bolsonaro (PSL), que defende a ditadura, poderá ser marcado por tentativas
de reescrever a História sobre o período, iniciativas que poderão "dar
trabalho", mas não irão prevalecer.
BBC News Brasil - Quais foram os
principais efeitos imediatos do AI-5?
Carlos Fico - O Congresso
Nacional foi fechado. Na mesma noite do decreto, o ex-presidente Juscelino
Kubitschek foi preso. No dia seguinte, foi o ex-governador Carlos Lacerda, e
começaram as cassações de deputados federais e senadores. Até 1969, um total de
333 políticos tiveram seus direitos políticos suspensos.
Foi o pior momento da história brasileira em
termos de autoritarismo, sobretudo pela brutalidade da tortura, dos
desaparecimentos, e também pela suspensão do habeas corpus e o fechamento do
Congresso Nacional.
Foi um paroxismo, um momento de auge, do regime
militar, que a partir de então ficou claramente caracterizado como uma
ditadura, com muitos prejuízos até hoje.
BBC News Brasil - Como a sociedade
reagiu? Ou não reagiu, porque não podia?
Fico - A sociedade realmente não
reagiu. Foi um ato brutal de força. O fechamento do Congresso, a prisão dessas
grandes lideranças populares, a cassação de centenas de pessoas, tudo isso
tornou a possibilidade de uma reação praticamente impossível.
O que acontece depois do AI-5 é que o regime cria
estruturas nacionais clandestinas de repressão política. O sistema DOI-Codi,
que fazia as prisões e interrogatórios, em geral seguidos de tortura; o Sistema
Nacional de Informações, que na verdade fazia espionagem e censura política. A
repressão política é institucionalizada a partir do decreto.
Começa a haver muitos interrogatórios, com
brutalidades, tortura, e muitas prisões sem comunicação à Justiça. Uma das
iniciativas lamentáveis do AI-5 foi a suspensão do direito de habeas corpus
para quem fosse acusado de crimes políticos. Não havia a possibilidade de
recorrer à Justiça. Todos os atos praticados com base no AI-5 estavam fora da
jurisdição da Justiça comum.
As pessoas acusadas de crimes políticos passaram
a ser julgadas pela Justiça Militar, o que era uma aberração. Apesar disso,
quando as pessoas eram levadas para a Justiça Militar, elas se sentiam
aliviadas, porque pelo menos estavam fora do aparato clandestino de repressão
política. Pelo menos estavam protegidas da tortura, que era praticada sobretudo
no sistema DOI-Codi.
BBC News Brasil - Qual foi o contexto por
trás do AI-5? Por que o regime militar chegou àquele extremo?
Fico - Em 1968, houve protestos
frequentes dos estudantes, que eram reprimidos com violência pela polícia. Em
março, um dos estudantes (Edson Luís) acabou morto em uma dessas manifestações
no Rio, no restaurante Calabouço.
O episódio motivou muitas passeatas contra o
regime, que levaram a ala mais radical a pressionar o presidente Costa e Silva
a decretar um novo ato institucional que permitisse punições excepcionais, como
cassações de mandatos e suspensão de direitos políticos.
Ele próprio não queria um novo ato que reabrisse
a temporada de punições, e inicialmente conseguiu evitar a medida, em uma
reunião do Conselho de Segurança Nacional em junho. Digo reabrir porque os
primeiros atos institucionais após o golpe haviam liberado punições
excepcionais, mas com prazos determinado. Quando Costa e Silva assumiu, ele não
tinha mais esses mecanismos punitivos em mãos.
Depois dessa reunião, entretanto, militares e
civis da direita mais radical começaram a agir para criar um clima de
conflagração que obrigasse Costa e Silva a decretar o ato. As provocações
incluíram invasões de universidades e sequestros de artistas. Até que em agosto
houve a violenta invasão da Universidade de Brasília (UnB), na qual um
estudante levou um tiro na cabeça.
Vários filhos de parlamentares estudavam na UnB,
e a invasão foi vista como um excesso mesmo por políticos da Arena, o partido
que apoiava o regime militar. Marcio Moreira Alves, um deputado da oposição,
fez um discurso criticando duramente as forças militares. O discurso foi o
pretexto para decretar o AI-5. Os militares queriam processar Moreira Alves,
mas a Câmara se recusou a liberar o deputado de suas imunidades. Mas veja que
havia desde 1964 essa demanda por reabrir a temporada de punições.
BBC News Brasil - Foi também uma reação à
luta armada?
Fico - A luta armada cresceu,
sobretudo, a partir do AI-5. Aqueles estudantes que protestavam em 1968 ficaram
muito frustrados com o decreto, e se tornaram recrutas fáceis para as
organizações de esquerda que se denominavam revolucionárias. Muitos nem eram
comunistas, mas passaram para as ações armadas em função desse fechamento (do
regime).
Mas não há uma relação de causa e efeito. A linha
dura queria a reabertura das punições desde 1964. E a esquerda vinha debatendo
a opção pela luta armada antes mesmo do golpe de 1964, desde a época da
Revolução Cubana (em 1959).
Uma coisa não é causa da outra, mas com certeza
houve um processo de retroalimentação. Com o passar do tempo, os militares
diziam que era preciso manter a repressão política por causa das ações armadas;
e a esquerda revolucionária justificava a necessidade de pegar em armas por
causa do AI-5, que institucionalizou a repressão. A partir do decreto, o número
de vítimas (mortos, desaparecidos e torturados) da ditadura aumentou muito,
sobretudo entre 1969 e 1973.
BBC News Brasil - Por que ganham força
questionamentos sobre ter havido uma ditadura?
Fico - A negação de ter havido uma ditadura é simplesmente
uma loucura, uma idiotice. Não sei bem como caracterizar.
O que acho mais significativo, em termos da sociedade
brasileira, é que muita gente diz que, naquele tempo, as coisas eram melhores.
Não negam que houve uma ditadura, ao contrário, dizem que era até melhor.
Isso acontece porque a memória que se construiu no
Brasil sobre a ditadura militar não é uma memória traumática como foi, por
exemplo, na Argentina. Lá, a repressão foi muito visível. Pessoas eram mortas
nas ruas, havia tiroteios. Os próprios militares anunciavam que iam matar até o
último comunista.
BBC News Brasil - Foi também pela escala da repressão?
Na Argentina fala-se em 30 mil mortos e desaparecidos, um número muito maior
que no Brasil.
Fico - Sim, também isso. Mas mesmo as pessoas que não
foram afetadas viam, ouviam, liam, viam as fotografias - isso quando não
esbarravam com um cadáver nos terrenos baldios. No Brasil não houve essa
experiência, essa vivência da repressão política.
BBC News Brasil - Por quê? A população não ficava
sabendo?
Fico - Por duas razões. Primeiro pela censura política,
que foi institucionalizada após o AI-5. Foi criado um órgão secreto no gabinete
do diretor geral da Polícia Federal que reunia as solicitações de diversas
autoridades listando temas que deveriam ser proibidos na imprensa, as chamadas
proibições determinadas. Era vetado escrever sobre confrontos entre a repressão
e a chamada luta armada, que praticava as ditas ações revolucionárias.
Além da censura, havia uma propaganda política
muito eficaz. O período de 1969 a 1973, que foi o auge da repressão, coincidiu
com o período do chamado milagre brasileiro. O PIB cresceu em índices
elevadíssimos, de 9, 10, 11% ao ano. A própria imprensa estrangeira falava em
milagre brasileiro.
Direito de imagem Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro Image caption O AI-5 levou artistas, intelectuais e
políticos
O governo do presidente (Emílio Garrastazu)
Médici (que sucedeu Costa e Silva em 1969) fez uma enorme campanha de
propaganda política na televisão que dava a impressão de que o Brasil tinha
finalmente encontrado o seu destino de potência. Obras faraônicas eram feitas e
a propaganda do governo vendia a imagem de um país que estava dando certo, um
país que ia para a frente, "pra frente, Brasil".
Se você associa a censura vigorosa com essa
propaganda política e os benefícios decorrentes do crescimento econômico, com
todo mundo comprando eletrodomésticos, carros, até casa própria, essa
combinação explica por que no Brasil não se construiu uma memória traumática
como na Argentina. Então, aqui, muita gente hoje lembra positivamente daquela
época.
BBC News Brasil - O presidente eleito
defende a ditadura, o uso da tortura e exalta o general Brilhante Ustra (que
chefiou o DOI-Codi). O que representa para o Brasil ter um presidente com essa
postura?
Fico - Isso é expressão de uma
ignorância histórica. Jair Bolsonaro e outros militares na ativa e na reserva
expressam essa ignorância e essa incapacidade de compreensão.
Eu creio que, ao fim e ao cabo, essas realidades
acabam se impondo. Os governos são passageiros, mas a História se solidifica ao
longo de décadas, séculos.
É impossível ocultar eventos traumáticos, como o
Apartheid na África do Sul, ou o nazismo na Alemanha, ou as ditaduras militares
latino-americanas. Isso é apenas expressão de ignorância. Não prevalece,
evidentemente, entre as pessoas que conhecem minimamente a História, e
certamente não vai prevalecer com o passar do tempo.
BBC News Brasil - Mas no curto prazo o
senhor acha que podemos ver iniciativas que tentem reescrever a História?
Fico - Não há a menor
possibilidade de isso acontecer. Mas sim, acredito que vá haver muitas
tentativas. Até pelo perfil do novo ministro da Educação (Ricardo Vélez
Rodríguez) e de outros nomes indicados (para o futuro governo).
É claro que vai haver tentativas de dizer que
1964 não foi um golpe, que não houve ditadura, em torno de projetos como o
Escola Sem Partido. Mas isso não vai prevalecer, é um disparate. Essas
iniciativas vão ocorrer, e vão dar muito trabalho. Mas a realidade prevalece.
BBC News Brasil - Quais foram as
consequências do AI-5 para o longo prazo?
Fico - O AI-5 foi uma espécie de
paroxismo de uma tradição que no entanto vem de longa data, infelizmente, no
Brasil. Eu a chamo de utopia autoritária. É a ideia de que o povo é
despreparado. De que o Congresso Nacional é um obstáculo. E que, portanto,
eventualmente seria conveniente, admissível, fazer algumas coisas fora dos
parâmetros constitucionais.
Uma das frases famosas sobre o AI-5 é do Delfim
Netto (então Ministro da Fazenda), que o defendeu por ter conseguido fazer uma
reforma tributária que durou 25 anos. É justamente essa a perspectiva: de que
eventualmente é preciso medidas autoritárias para impor decisões certas,
segundo determinada elite que esteja no poder.
Isso perpassa todo o período republicano
brasileiro, mas foi levado ao extremo durante as nossas duas ditaduras, o
Estado Novo e a ditadura militar. E o AI-5 é o paroxismo dessa visão.
É muito ruim que essa perspectiva autoritária não
tenha sido completamente dissolvida. Ela não desapareceu totalmente. E volta e
meia percebemos no Brasil indícios dessa visão que busca atalhos
constitucionais. Acho que isso é o que há de permanente. A ditadura não foi
algo que caiu como um raio em céu azul.
BBC News Brasil - A maneira como se deu a
anistia, sem punição por violações de direitos humanos, prolonga a
possibilidade dessa utopia autoritária ressurgir?
Fico - Não, acho que aí há outro
problema. Acho que a Lei de Anistia decorreu de duas coisas. Um, o fato de não
ter havido propriamente uma grande visibilidade da repressão, e portanto não
haver essa memória tão traumática; e a enorme tradição de conciliação que
existe na história política brasileira. Os setores da elite, quando se veem em
conflito, tendem a encontrar formas de conciliação.
Mas claro que o fato de militares e civis que
praticaram violações de direitos humanos não terem sido julgados tornou a
transição brasileira muito peculiar, quase que inconclusa. Tanto que o primeiro
governo civil na transição para a democracia foi um antigo líder durante o
regime militar, o José Sarney. Foi uma transição muito suave, amaciada. Nunca
houve no Brasil uma ruptura clara com a ditadura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário