terça-feira, 8 de março de 2011

Manuel Sacristán, o compromisso do filósofo

  

Salvador López Arnal (*)
Rebelion.org
Traduzido para “Novas Pensatas” por Jorge Vital de Brito Moreira

Manuel Sacristán Luzón nasceu em 5 de setembro de 1925 em Madrid, onde passou sua infância até o estalido da guerra civil espanhola. A família Sacristán-Luzón, que tinha se mudado para Valencia em novembro de 1936, transferiu-se mais tarde para Rivatrigoso e depois para Niza (ambas na Itália) durante os dois últimos anos da guerra, se instalou em Barcelona em 1939. Ali o jovem Sacristán reiniciou seus estudos de bacharel, pertencendo como muitos outros adolescentes da sua época a OJE, a Organização juvenil da Falange.
Em 1944, Sacristán iniciou os estudos de Direito e Filosofia. Tomou conhecimento, no segundo ano, das torturas a que foram submetidos os estudantes contrários ao uniformismo cultural do nacional-catolicismo espanhol, foi decisivo para a sua ruptura com a Falange. Foi uma decisão arriscada, pois diversos testemunhos coincidem no fato de que uma pistola de um chefe falangista estava carregada de balas destinadas ao jovem Sacristán.
Finalizados seus estudos universitários com um premio extraordinário em Filosofia, Sacristán participou ativamente nas revistas Qvadrante e Laye [1] e, depois de conseguir uma bolsa de estudo da Deutscher Akademischer Austauschdienst, partiu para estudar lógica e filosofia da ciência durante os anos 1954-1956 no Instituto de Lógica Matemática e Fundamentos da Ciência da Universidade de Münster dirigido por Heinrich Scholz, un dos professores que nunca esqueceu e a quem dedicou um sentido artigo depois do seu falecimento.
Sua estadia no Instituto de lógica foi decisiva em sua evolução político-filosófica. Não somente pela formação analítica que adquiriu ali mas porque foi naquele período quando se vinculou à tradição marxista e ao Partit Socialista Unificat de Catalunya (PSUC) e ao PCE. Sua renúncia ao posto de professor ajudante no Instituto de Münster esteve motivada por seu compromisso político. A amizade e influencia de Ettore Casari, estudante de pós graduação como ele e membro do PCI, foi decisiva para sua tomada de posição filosófica e cidadã. A sua longa e arriscada atividade no principal partido de oposição anti franquista e seu interesse teórico por um marxismo sem ismos nem dogmas nunca se encaixaram numa cega aceitação dos vértices e das arestas de uma cosmovisão talmudicamente cultivada.
Depois do seu regresso a Barcelona e depois de ter contraído matrimonio em Nápoles com a hispanista Giulia Adinolfi, Sacristán doutorou-se em 1959 com um ensaio sobre Las ideas gnoseológicas de Heidegger, um dos seus mais notáveis e reconhecidos trabalhos. Colaborou na enciclopédia Espasa com um documentado artigo sobre “La filosofía desde la terminación de la segunda Guerra Mundial hasta 1958”, editou as anotações de “Fundamentos de Filosofía” de suas aulas na Universidade de Barcelona e se apresentou em 1962 ao concurso à cátedra de lógica da Universidade de Valencia celebradas em Madrid. O sucedido ocupa um lugar destacado na historia das decisões arbitrarias dos tribunais universitários do franquismo. Foi também nesse período quando insistentes pressões do arcebispado católico forçaram a transferência de sua posição acadêmica na Faculdade de Economia da Universidade de Barcelona.
O papel de Sacristán foi decisivo na reintrodução e cultivo na Espanha da tradição marxista. Dele foi a edição, apresentação e tradução -com o título de Revolución en España- dos primeiros escritos de Marx e Engels publicados legalmente depois da guerra civil. Ele foi o autor do prólogo de sua própria tradução do Anti-Dühring, um texto que deixou sua marca em numerosos intelectuais e universitários da época. Foi também ele, um dos mais destacados estudiosos e divulgadores da obra de Gramsci: sua Antologia do filósofo e político sardo -editada no México em 1970, mais tarde em Madrid (1974)- foi decisiva para o conhecimento da obra gramsciana na América Latina e na Espanha.
Depois de sua expulsão da Universidade barcelonesa em 1965 ao não renovar por motivos não acadêmicos seu contrato de trabalho, Sacristán ganhou a vida durante mais de dez anos como tradutor e trabalhador editorial, enquanto seguia sendo membro do comitê executivo do PSUC até 1969 e militante de base até o final dos 70. Dele são as traduções de Historia y consciencia de clase de Lukács, de Karl Marx, de Korsch, o da estructura lógica de El Capital de Marx de Jindrich Zeleny, além de clássicos como El Banquete, Historia del análisis económico de Schumpeter, La investigación científica de Bunge, Los métodos de la lógica de Quine, os dois primeiros livros do El Capital o a prosa completa do poeta Heine. Foram más de cem os volumes traduzidos; umas 29.000 páginas.
Depois do seu trabalho voluntário como professor de adultos na escola de alfabetização de Can Serra en L’Hospitalet de Llobregat, uma cidade obreira da periferia barcelonesa, Sacristán voltou à Universidade em 1976, dando aulas de Metodologia das Ciências Sociais na Faculdade de Economia. Foi naqueles anos quando iniciou junto com um ampla equipe de colaboradores um de seus grandes projetos: a tradução das obras completas de Marx e Engels (OME). A editora Crítica publicou onze volumes de centenas projetados.
Após o falecimento de sua esposa, em fevereiro de 1980, Sacristán assistiu a um congresso internacional de filosofia celebrado no México a fins de 1981 e ensinou algo mais tarde, durante o curso 1982-1983, dois seminários de pós graduação na Facultad de Ciencias Sociales y Políticas de la UNAM sobre “Inducción y dialéctica” e “Karl Marx como sociólogo de la ciencia”. Foi no México, onde se exilou um irmão do seu pai cuja militância e coerência socialistas Sacristán sempre admirou, onde se casou em segunda núpcias com a professora Mª Ángeles Lizón e foi também durante essa época quando começou-se a editar seus artigos, prólogos e apresentações com o título geral, por ele mesmo elegido, de “Panfletos y Materiales” [2].
De volta à Espanha em meados de 1983, participou ativamente no movimento anti nuclear e ecologista, e nas mobilizações contra a permanência de Espanha na OTAN, e seguiu empenhado na radical renovação das finalidades, procedimentos e categorias centrais da tradição marxista. As suas conferencias durante aqueles anos, em âmbitos acadêmicos e cidadãos, são fieis testemunhas disso [3].
No final de 1984, numa decisão tardia e polêmica, Manuel Sacristán foi nomeado catedrático extraordinário. Faleceu seis meses mais tarde em Barcelona, em 27 de agosto de 1985, instantes depois de haver finalizado una sessão de diálise. De regresso a casa, um infarto terminou sua vida.
Sua concepção do marxismo está bem refletida em una anotação de leitura de princípios dos 80: “Não se deve ser marxista. O único que tem interesse é decidir se nós nos movemos, ou não, dentro de uma tradição que tenta avançar, pela crista, entre o vale do desejo e o da realidade, em busca de um mar em que ambos confluam”. Uma posição metodológica contrária a todo “ismo”, que enlaça diretamente com o próprio Marx, e uma filosofia política, com explicita visão praxeológica, que aspirava a que não habitara o esquecimento na motivação central do jovem Marx e de tantos outros revolucionários: a necessária confluência da realidade e desejo, de conhecimento e finalidades políéticas.

Notas do tradutor:

(*) Salvador López Arnal é Professor-tutor de Matemáticas na UNED e instrutor de informática dos ciclos formativos no IES Puig Castellar de Santa Coloma de Gramenet (Barcelona).

Colabora normalmente na revista "El Viejo Topo", rebelion.org e é co-roteirista e co-editor, junto con Joan Benach y Xavier Juncosa, do filme documentário "Integral Sacristán" (El Viejo Topo, Barcelona). Salvador tem sido um dos mais destacados discípulos do filósofo, lógico, tradutor, professor e escritor Manuel Sacristán Luzón e é, atualmente, um dos mais proeminentes e constantes divulgadores da sua obra: sua produção de diversos livros e de mais de três dezenas de artigos sobre Sacristán dão testemunho veemente da importância dos seus textos para o conhecimento da obra do brilhante filósofo marxista espanhol.

Notas do autor:


[1] Sacristán foi um destacado colaborador e impulsor das revistas barcelonesas Qvadrante, com seu amigo o filósofo Juan-Carlos García Borrón e Laye, junto a Josep Mª Castellet, Esteban Pinilla de las Heras, Jaime Gil de Biedma, Alfons García Seguí, Gabriel Ferrater,... Dirigiu durante os anos da luta anti franquista Nous Horitzons, a revista teórica do PSUC, o partido dos comunistas catalães, e, depois da morte do general golpista assassino Francisco Franco, foi diretor das revistas de filosofia e Ciências Sociais Materiales e Mientras Tanto, enquanto esta última, tem sido a publicação que ele mais se identificou, continua-se publicando na atualidade.

[2] Uma parte substantiva de seus artigos, resenhas, notas, conferencias e apresentações foi impressa nos cinco volumes editados por Icaria com o título geral, elegido pelo próprio Sacristán, de “Panfletos y materiales”: Sobre Marx y marxismo, Papeles de filosofía, Intervenciones políticas, Lecturas y Pacifismo, ecologismo y política alternativa. Sua tese doutoral, Las ideas gnoseológicas de Heidegger, foi reeditada e prologada por seu amigo e discípulo Francisco Fernández Buey pela editorial Crítica em 1995.

[3] Foi decisiva na evolução política de Sacristán sua posição fortemente crítica à ocupação de Praga pelas tropas do Pacto de Varsóvia. Sobre este ponto, veja Salvador López Arnal, La destrucción de una esperanza. Manuel Sacristán y la Primavera de Praga, Akal, Madrid, 2010, assim como os oito documentais dirigidos por Xavier Juncosa, com roteiro do próprio Xavier, Joan Benach e Salvador López Arnal, com o título “Integral Sacristán” (Barcelona, Editorial El Viejo Topo, 2006).

Para uma aproximação à obra lógica e epistemológica de Sacristán, veja Salvador López Arnal, Cinco historias lógicas y un cuento breve (on line: http://www.rebelion.org/docs/104376.pdf ) e Manuel Sacristán y la obra del lógico y filósofo norteamericano W.O. Quine. En el centenario de su nacimiento (on line: http://www.rebelion.org/docs/77902.pdf

6 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Caro professor Jorge Vital de Brito Moreira. Esta sua apresentação de Sacristán-Luzon por intermédio deste meu blogue deixou-me muito honrado.
Em primeiro lugar, pela publicação em si mesma.
E em segundo, pelo fato de vir a conhecer este Manuel Sacristán-Luzon (1925/85), um materialista histórico de respeito, um lutador que enfrentou tempos bastante difíceis na Espanha sob o franquismo. Espanna esta que tornou-se uma peça chave para o crescimento da extrema direita na Europa daquele período...
E a vida de Sacristán faz-me lembrar de um poema de Maiakóvski:
“Não estamos alegres,/é certo,/mas também por que razão/haveríamos de ficar tristes?/O mar da história/é agitado./As ameaças/e as guerras/havemos de atravessá-las,/rompê-las ao meio,/cortando-as/como uma quilha corta/as ondas.”

Jonga Olivieri disse...

Hoje é uma 3ª feira "gorda" de carnaval e os comentários teem sido muito poucos.
Os pais estão em bailes infantis. Muitos afastam-se por completo para a praia ou (até preferencialmente) para o campo, onde podem desligar-se de tudo. Até de seus notebooks.
E tem a turma que fica "pelaí" nos blocos da vida.
Ontem, fui visitar minha mãe --que havia saído anteontem do hospital--, e fiquei imprenssado no meio de um desses no caminho para a casa dela. Tive que entrar num bar, sorver duas cervejas, e mesmo quando saí ainda havia uma multidão muito grande na rua.
Mas pelo menos deu para passar.

Tupamaro disse...

Gostei de conhecer um pouco do pensamento de Sacristán.
Já pesquisei alguns sites a mais que trazem informaões importantes sobre ele.
Graças ao Professor Vital Moreira, que acho que você deveria valorizar mais colocando uma janela abaixo do titulo do blog como colaborador ou sei lá que designação queira.

Jonga Olivieri disse...

Meu caro Tupamaro... Até que rima, hem sô! Uma rima não tão rica, mas enfim, uma rima.
Mas eu queria dizer que até que enfim, alguém despertou sem ressaca e comentou alguma coisa nesta blogue.
Brincadeeeirinhaaa... Não acredito que este blogue, um blogue político e politizado tenha entre os seus leitores algum "folião" inveterado. Será?
Quanto ao fato do nome do Professor Jorge Moreira constar num 'gadget', horizontal no alto deste blogue, logo abaixo do cabeçalho, esta ideia já me ocorreu. Até porque, pelo visto ele tende a crescer a sua participação nesta publicação.
Mas não farei isto sem consultá-lo.

Anônimo disse...

Olha, eu concordo, jamais desmerecendo seus artigos ou ensaios que o Professor Moreira tem dado alta contribuição e esse seu blog Novas Pensatas.
Parabéns pela aquisição.
L.P.

Jonga Olivieri disse...

Já o consultei quanto ao fato de colocar um crédito sobre sua participação. Estou, no entanto, a aguardar uma resposta sobre o assunto.