sexta-feira, 22 de abril de 2011

O olhar do diretor. Ou a versão definitiva de Cleópatra

 
Bressane e a câmera
 “Júlio Eduardo Bressane de Azevedo, nascido no Rio de Janeiro em 13 de fevereiro de 1946, é um digno representante do cinema marginal brasileiro e começou como assistente de direção de Walter Lima Júnior em 1965.”
Mais ou menos assim, as enciclopédias e outras publicações resumem – a princípio – a obra de Julio Bressane, realizador que ao lado de Cacá Diegues, Paulo César Saraceni e Arnaldo Jabor formam um pequeno grupo de autores de cinema em atividade neste país.
Continuando um breve resumo de sua trajetória, estreou em 1967 como diretor em "Cara a cara”, sendo na ocasião selecionado para o Festival de Brasília. Em 1970, após exílio político em Londres, fundou ao lado de Rogério Sganzerla a “Belair Filmes”, quando optaram por um modelo de realizar filmes de baixo custo de produção e com isso conseguiram rodar seis longas em seis meses.
No entanto foi antes disso, em 1969, que dirigiu “Matou a família e foi ao cinema”, um marco em sua carreira como cineasta. E o seu currículo, inclui prêmios como o “Troféu Candango” de melhor diretor, por “Miramar” (1997) e “São Jerônimo” (1999) e prêmio de melhor roteiro por “Dias de Nietzsche em Turim”, todos no Festival de Brasília.
Não se limitando à sua atividade no cinema, Bressane publicou “Alguns” pela Imago em 1996, “Cinemancia” (2000) e“Fotodrama” (2005) também pela mesma editora. Para além disso, escreveu diversos ensaios sobre Robert Bresson, Brás Cubas, Vidas Secas, Augusto de Campos e Ralph Waldo Emerson. Além de “Bressane discute o cinema de Jean Marie Straub”.
“Cleópatra”, seu penúltimo filme (1), foi apresentado em 2007 no “Festival de Cinema de Veneza”, fora da competição e foi premiado como melhor filme do “Festival de Brasília” no mesmo ano. E justamente devido a este filme fiz esta introdução acerca do autor, e sobre a película também quero tecer algumas linhas e comentários.
No título acima ousei tachá-la de “a versão definitiva”! Muitos haverão de achar isto pretencioso, quando na verdade o cinema estadunidense a filmou em diversas produções milionárias, envoltas em muito marketing e estrelas inesquecívies no Star System, das quais a de 1963, com Elizabeth Taylor, Richard Burton e Rex Harrison e direção de Joseph L. Mankiewikz é a mais conhecida (2).
Como um filme brasileiro, pobre, quase que inteiramente gravado em um estúdio, cujos cenários vão se alternando gradativamente e com algumas poucas externas, sem grande (ou nenhum) manejo de multidões pode ser nomeado a “versão definitiva” em uma temática tão estranha ao nosso cinema?
O fato é que o filme de Bressane pode ser considerado menos “faraônico” do que os demais, mas muito bem realizado em sua simplicidade. E por que? Basicamente porque ele não está procupado em ostentar e/ou competir com as citadas super produções gigantescas. Mas sim com uma exposição íntima e sensual da mais famosa rainha de todos os tempos, posto que Cleópatra (3) unia uma cultura que incluia o domínio de seis línguas, aliando a sede de cultura à presença da biblioteca de Alexandria, a seus pés.
Mas a sua sede por sexo era igualmente evidente, e numa família habituada ao incesto, chegou a casar-se com seu irmão. Bressane explora a fundo este seu lado ninfomaníaco e o tranforma num gestual, um verdadeiro balé erórico e apimentado, dando rítmo à obra com uma luz maravilhosa em sua fotografia (de Walter Carvalho) num jogo de luz, sombras e o hábil movimento delas.
E aí está o dedo do autor (4), porque se notamos que o filme não gastou milhões em cenários pomposos, mostra-os muito fiéis à época, refletindo até a diferença de luminosidade entre as cenas passadas em Roma das vividas em Alexandria. E o clima, o clima do filme cria ambientes perfeitos e irretocáveis a quaisquer que sejam os acontecimentos, o que o fez ser aclamado euforicamente em Veneza. Em alguns momentos chegou a me lembrar “Satyricon’ de Fellini.
E mesmo caracterizado por cenas lentas e longas –bem ao estilo daquele Antonioni da marcante trilogia--, “Cleópatra” de Bressane nos prende do início ao fim de forma muito especial e particular. Alessandra Negrini, Miguel Falabella e Bruno Garcia estão perfeitos e muito bem dirigidos pelo autor como Cleópatra, Julio Cesar e Marco Antonio, respectivamente. Fora o som, mixado entre ruídos de ventos e ondas, músicas clássicas e rítmos bem brasileiros, dando-lhe uma personalidade ímpar (5).
Por tudo isto, considero a primeira a até hoje única versão lusófona da atraente faraó do Egito não somente uma obra prima, como a sua “versão definitiva”.

1. O último filme de Bressane, “A erva do rato” foi realizado em 2008.

2. Elizabeth Taylor foi a primeira atriz a receber um cachê de US$ Um Milhão para interpretar o papel título. Mas existem mais de 40 versões de Cleópatra ou filmes em que ela é citada. O primeiro mais conhecido foi o de Georges Meliès de 1899, porém os mais badalados são os de 1919 com Theda Bara, a conhecida estrela do cinema silencioso e a super produção de Cecil B. De Mille (1934) com a não menos famosa Claudette Colbert. Há uma nova (também super) produção em andamento ao que tudo indica com Angelina Jolie e direção de Scott Rudin.

3. Cleópatra foi a última reinante da dinastia de Ptolomeu, general que governou após a conquista daquele país pelo rei macedônio Alexandre III. O nome Cleopatra significa "glória do pai", Thea significa "deusa" e Filopator "amada por seu pai".

4. A diferença entre o “autor” e o “artesão” no cinema está no estilo e na particularidade com que o primeiro marca a sua presença e personalidade realizadora num filme. O artesão compõe bem, mas não assina a sua obra com sua característica pessoal. Um fosso que os separa.

5. O som é conduzido por Guilherme Vaz, um dos cinco “Candangos” que o filme farurou no 40º Festival de Brasília e inclui “Felicidade”, de René Bittencourt, cantada por Noel Rosa e “Há Um Deus”, de Lupicínio Rodrigues, na voz de Dalva de Oliveira.

12 comentários:

André Setaro disse...

Excelente apreciação de 'Cleópatra', filme brasileiro banido praticamente do mercado exibidor, que exibe apenas, em grande circuito, as obras mais 'mastigáveis' e destituídas de qualquer vestígio de dignidade artística. Gostaria, entretanto, sem querer me intrometer, mas já me intrometendo, de fazer algumas considerações sobre as três espécies de cineastas de existentes, como as definiu o francês Henri Agel em seu imprescindível livro 'Le Cinema'.

O AUTOR: Tem universo ficcional próprio e um estilo particular, uma, por assim dizer, marca registrada. Há quem diga, como Harold Bloom, crítico literário americano ('O cânone ocidental', 'A angústia da influência' etc), que um verdadeiro autor realiza apenas um filme na sua trajetória artística, sendo as obras singulares apenas variações sobre um mesmo tema. À guisa de exemplo, Ingmar Bergman, que tem um universo ficcional bastante próprio e se pode identificar, nele, constantes temáticas e constantes estilísticas. Outros autores: Orson Welles, Carl Theodor Dreyer, Luchino Visconti, Charles Chaplin, Federico Fellini, Abas Kiarostami, Pier Paolo Pasolini, John Ford, entre muitos e muitos outros.
O ESTILISTA: Embora não sendo possuidor de um universo ficcional próprio, tem, porém, um estilo identificável, uma marca particular. É o caso, para ficar num só exemplo, de Steven Spielberg, que trata, em seus filmes, de vários temas, sem perder, no entanto, a sua maneira própria de articular a linguagem cinematográfica. William Wyler é outro exemplo de grande estilista.
O ARTESÃO: Não possui nem universo ficcional próprio nem estilo particular, mas sabe contar uma história, dar fluência a uma narrativa, fazê-la envolvente, e se aproveita de roteiros alheios e diferentes.

O importante, porém, é que ser um autor não significa 'status' de superioridade, embora os grandes autores do cinema sejam artistas que estão acima dos estilistas e dos artesãos. Mas pode acontecer que um determinado cineasta possa ser considerado um autor e seja inferior, como envolvência cinematográfica, a um artesão competente. Um estilista como William Wyler coloca muitos autores embaixo de seu chinelo.

Jonga Olivieri disse...

Uma aula de estilo e conhecimento do cinema, sem dúvida é este comentário, André, como sempre o são...
Quisera a minha vã filosofia chegar â metade de um conhecimento que, de justa forma, foi o fruto de muita leitura e observação 'in loco' a que você sempre dedicou grande parte do seu tempo.
No meu simplismo sempre omiti o "estilista". Até por não sabe-lo existir sempre dividi a esfera cinematográfica entre o Olimpo com seus “autores” eleitos e o Hades, repleto de “artesãos” perdidos no espaço, na tola conclusão maniqueísta em que fomos todos educados.
No entanto a visualização desta categoria abriu-me uma nova perspectiva na análise do cinema, posto que agora passo a entende-la e incluir no meu conhecimento, na qual você inclui um diretor como Spielberg, cujo estilo faz-se presente num conjunto de obra exemplar.
E, neste caso, o próprio Bressane está...

André Setaro disse...

Qual o cineasta maior autor do que Federico Fellini? Se uma pessoa for conduzida, de olhos vedados, a uma sala de cinema, e estiver passando um filme de Fellini, ao lhe ser restituída a visão, identificará logo ser um filme de Fellini em poucos minutos, poder-se-ia até dizer segundos. É preciso, porém, para identificar um autor que a pessoa já tenha visto mais de dois ou três filmes de determinado cineasta. Ou, neste caso hipotético, se não estiver passando um filme de Fellini, mas de alguém que o imita, a pessoa vai dizer que se trata de um imitador do mestre de 'La dolce vita'.

Jonga Olivieri disse...

Sem a menor sombra de dúvida uma plena observação sobre um dos maiores realizadores de todos os tempos.

Joelma disse...

Não encontrei para alugar pelo menos na locadota mais próxima, a daqui do bairro, mas você me aumentou a minha vontade de assistir este filme. Ao que tudo indica, e pelo que você descreveu muito bem realizado.

Jonga Olivieri disse...

Sim, é um filme muito bem realizado.
Mas note bem, Joelma, não é um filme comum, suas sequências são por vezes longas em excesso, o que o torna uma obra incomum.
Porém prende, e tem uma narrativa muito clara.
Continue procurandoo Ou compre pelas "americanas.com", porque não vi dando sopa por aí.

Mário disse...

Compelido pela sua "propaganda" massiva sobre este filme (trailer, fotos, etc) o comprei nas americanas.com e o assisti.
Mas embora tenha gostado não tenho todo este "fanatismo" que você devota a ele.
É um bom filme, mas ainda gosto mais da versão do Mankiewikz com "sua musa" Elizabeth Taylor.

Jonga Olivieri disse...

Eu até previni que trata-se de um filme de difícil assimilação, principalmente pelas cenas longas e lentas.
No entanto mão o condeno por gostar mais da versão de Mankiewicz (1963), uma Super Produção que impressiona. É tudo uma questão de gosto pessoal.
E, por falar nisso, pessoalmente eu continuo a gostar e curtir mais esta. Reafirmo que há nela o dedo do diretor... No caso, um diretor que respeito muito.

Mara disse...

Poucas vezes li uma crítica tão bem feita e uma análise tão profunda quanto neste seu ensaio.
Parabens!

Jonga Olivieri disse...

Obrigado Mara, fico feliz que tenha gostado tanto!

Anônimo disse...

É precis dizer mais alguma coisa?
Está tudo dito. E bem dito!
L.P.

Jonga Olivieri disse...

Obrigado, L.P.