domingo, 26 de janeiro de 2014

"Um Kuarup (1) para Antônio Callado”



Jorge Vital de Brito Moreira
— Mas os índios têm como nós uma alma imortal — disse Nando.
— Os índios não sei se têm. Ou se ainda têm. Nós, eu sei que não temos.
Este diálogo entre o padre Nando e o antropólogo Fontoura no Alto Xingu se encontra no romance Quarup de Antônio Callado.

No dia 26 de Janeiro de 1917 (há 96 anos) nasceu Antônio Callado no Rio de Janeiro.  No dia 28 janeiro de 1997 (há 17 anos), morreu aos 80 anos, no mesmo estado do Brasil. Antônio Callado foi um jornalista, romancista, dramaturgo, biógrafo, e autor do Quarup (2), um dos romances mais importantes da história social e política do Brasil contemporâneo .
Este texto tratará de recordar e fazer uma homenagem a Antônio Callado através de sua obra escrita e trechos de uma entrevista inédita. Aspire Kuarup representando um modesto (embora simbólico) para ele: Callado finalmente não só escreveu seu romance Quarup em defesa dos índios brasileiros, mas ele foi e continua sendo um dos mais importantes brasileiros ilustres do Brasil (3), um verdadeiro  herói da nossa gente.

Um esboço biográfico

                Antônio Callado, formou-se em Direito em1939, mas nunca praticou atividade na área jurídica. No ano seguinte, ele começou a trabalhar na imprensa carioca, nos jornais O Globo e O Correio da Manhã. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele se mudou-se para a Inglaterra, onde trabalhou na BBC de Londres até 1947. Após a libertação da cidade de Paris, do domínio alemão, trabalhou no serviço brasileiro da Radiodifusão francesa.
Callado revelou que na Europa descobriu "a sua tremenda fome do Brasil" e, por isso, tentou incansavelmente ler literatura brasileira, começando a alimentar o desejo de voltar para o Brasil para conhecer o interior do país. Em seu retorno ao Brasil, viajou por várias regiões brasileiras para fazer suas grandes reportagens. No Nordeste escreveu sobre o movimento revolucionário das ligas camponesas e seu líder, Francisco Julião. No Norte (Xingu), escreveu sobre a vida e a cultura dos índios do Brasil no século XX.
Callado trabalhou como editor-chefe do Correio da manhã (1954-1960), quando foi contratado pela Enciclopédia Britânica como chefe da equipe que desenvolveu a primeira edição da Enciclopédia Barsa, publicada em 1963.
Em 1968, proibido pela ditadura militar de escrever para os jornais brasileiros viajou para a Indochina para fazer reportagens sobre a Guerra do Vietnã (4) para o Jornal do Brasil.
Em 1974, Callado deu aulas nas universidades de Cambridge (Reino Unido) e Columbia (EUA). Em 1975, ele deixou o trabalho de redator jornalístico para dedicar-se profissionalmente à literatura brasileira.
Callado havia feito sua estréia na literatura em 1951 com a criação de peças de teatro, que foram encenadas com grande sucesso de crítica e público. A peça mais bem sucedida foi Pedro Mico que, anos mais tarde, foi transformada num filme popular devido a ter o rei Pelé (nosso “rei do futebol”) como seu protagonista.
Seus primeiros romances também foram escritos na década de 50, mas sua ficção sofreu um grande desenvolvimento na década de 1960 e 1970, período em que foram publicadas as suas principais narrativas.
Identificado entre os intelectuais brasileiros que se opunham e resistiram ao golpe militar de 1964 e à ditadura militar, foi preso quatro vezes. Antônio Callado sempre revelou nas suas narrativas um forte compromisso político, especialmente no romance Quarup, que muitos críticos consideram o mais otimisticamene engajado dos romances daqueles décadas.
Callado era também conhecido por escrever manualmente os seus romances, mantendo uma rotina de trabalho, com horário rígido para todas as suas atividades, que incluíam dois passeios por dia pelas ruas do Rio de Janeiro. Ele mandou fazer uma mesa portátil que carregava por todos os cômodos, o que lhe permitia escrever em qualquer lugar do seu apartamento. Antônio Callado me disse, na entrevista que me concedeu, que não discutia ou comentava o seu trabalho com ninguém, até que  estivesse terminado.
Callado recebeu várias condecorações e prêmios no Brasil e no exterior e foi eleito em 1994 para ocupar o lugar número oito da Academia Brasileira de Letras. Seus trabalhos ficcionais e não ficcionais foram traduzidos para o inglês, francês, alemão, espanhol e outras línguas internacionais.
Callado morreu dois dias depois de completar 80 anos. Do seu casamento com Jean Maxine Watson, uma trabalhadora inglesa (BBC), teve três filhos (incluindo a atriz, cineasta e escritora Tessy Callado). Callado casou-se novamente em 1974, com a jornalista e escritora Ana Arruda.

Breves comentários sobre alguns de seus textos

Iniciamos este texto mencionando a natureza social e política do romance Quarup em sua busca para encontrar a expressão nacional da autêntica identidade brasileira, mas a transcendência ética, politica e estética desta narrativa não esgota o significado da produção textual (de obras menos conhecidas) do romancista. Callado, este extraordinário escritor e jornalista brasileiro, produziu ao longo de sua vida de intelectual engajado, outros textos significativos e essenciais para a compreensão da história "não oficial" do Brasil .
Entre seus trabalhos publicados incluem-se nove romances(5), oito peças teatrais(6), inúmeras reportagens para jornais (7), contos, biografias, além de adaptações de seus romances e peças para o cinema e a televisão brasileira (8).
Suas obras de ficção exploram e expressam o meio social de seu tempo: a ditadura militar, os movimentos guerrilheiros, a teologia da libertação, o uso das drogas, a liberdade sexual, a pedagogia emancipadora de Paulo Freire, a opressão e a repressão política, a corrupção governamental, a luta das nações indígenas brasileiras contra o seu extermínio pela civilização branca, ocidental e cristã, o direito à vida e a identidade cultural dos indígenas e da população oprimida do Brasil.
Desde a publicação em 1954 de seu primeiro romance(9) Assunção de Salviano tematizando as questões religiosas e políticas, os críticos literários começaram a perceber a novidade de sua narrativa que foi reafirmando-se com a publicação de seu segundo romance, A Madonna de Cedro (1957). Mas foi com o terceiro romance, Quarup, que Antônio Callado ganhou definitivamente o reconhecimento nacional e internacional.
A narrativa Quarup representa a dupla crise da nação brasileira num determinado momento histórico através da crise existencial do padre católico Nando ("Ando/não ando") e a crise existencial da vida social e política do Brasil. As duas linhas ficcionais da história brasileira estão integrados alegoricamente no caminho/descaminho do padre Nando (da sua consciência, dos seus amores, das suas duvidas e vacilações e nas experiências angustiantes do seu processo histórico), na  sua travessia através dos mitos (indígenas, mestiços e brancos) e dos rituais que dão sentido as ações políticas nas diferentes regiões geográficas brasileiras (Norte, Nordeste, Sudeste).
A partir da publicação do Quarup, romancistas, poetas, críticos (nacionais e estrangeiros) começaram a escrever sistematicamente sobre a importância literária do escritor/jornalista Antônio Callado. Apesar da existência da pesada censura imposta pela ditadura militar a inteligência brasileira, a cultura nacional continuou contando com autores (revolucionários ou rebeldes) que divulgaram a importância dos romances de Callado. Notáveis ​​escritores e diretores de cinema como Glauber Rocha, o poeta Ferreira Gullar, os críticos literários como Franklin de Oliveira, Antônio Houaiss, o economista Celso Furtado (todos perseguidos pela ditadura militar) e uma nova geração de críticos literários como Ligia Chiappini Morais Leite, Davi júnior Arrigurci contribuíram com ensaios críticos (10) para mostrar a originalidade e a coragem política da representação da história do Brasil do romance Quarup, Reflexos do Baile e outras narrativas  do autor.
Após a publicação do Quarup (apesar da forte censura e do fato de ter sido preso quatro vezes por se opor ao golpe e à ditadura), Callado continuou sua produção literária de resistência ao regime militar, intensificando a denúncia do autoritarismo através  da exaltação do movimento de resistência popular.
Seus três romances posteriores, Bar Don Juan (1971), Reflexos do Baile (1976) e Sempreviva (1981) tematizavam (cada um na sua forma e estilo específicos) a grande e trágica derrota dos movimentos populares de esquerda que se manifestava na censura, prisão, tortura, desaparecimento e assassinato estabelecidos no Brasil após o golpe militar de 1964. Assim, Callado reafirmou sua imprescindível presença dentro da narrativa brasileira, renovando os seus romances para representar implícita e explicitamente as novas situações que a mudança histórica exigia.
Bar Don Juan, por exemplo, medita sobre o decadência do compromisso político de intelectuais e líderes revolucionários, sob a situação de absoluta infâmia moral de uma ordem social que dependia do uso da tortura para destruir a luta (pela mudança social e política do Brasil) dos movimentos políticos de resistência à ditadura militar.
Reflexos do Baile, por sua vez, expressa a incapacidade da resistência de compreender (pela censura e absoluta falta de transparência) o processo de desenvolvimento da luta política contra a ditadura devido à alienação e fragmentação extremas dos valores nacionais sob a (des)ordem militar.
Sempreviva, por sua vez, retrata a profunda fragmentação interna (esquizofrenia social) dos revolucionários na sua luta contra espiões, agentes policiais e “dedos duros”, que perseguiam, torturavam e assassinavam, nas fronteiras do Brasil, os militantes políticos que tratavam de reingressar ao pais “ilegalmente”.  O romance revela o bestial processo de des/mascaramento de todos os indivíduos que operavam sob uma situação infernal em que vivíamos sob o domínio militar.
Posteriormente, Antônio Callado escreveu mais dois romances sobre a realidade nacional e o destino da cultura indígena: A Expedição Montaigne (1982) e Concerto Carioca (1985) que tematizam a vida da nação brasileira no estágio irreversível da relação destrutiva entre a cultura indígena e a cultura branca no processo de desenvolvimento da modernização capitalista da nação. A representação da decadência da realidade indígena e a tonalidade destas últimas narrativas de Callado, expressam uma visão cética, profundamente pessimista sobre a continuidade e preservação da natureza brasileira para a sobrevivência da cultura indígena num futuro próximo.
No seu ultimo romance, Memórias de Aldenham House (1989), Callado muda de temática. Procurando descansar da fantasia exata (da Utopia) para a grande nação brasileira (sonhada por Villa Lobos, Darcy Ribeiro, Glauber Rocha, Oscar Niemayer e outros grandes brasileiros), Callado, nessa ficção, tematiza o trabalho de correspondente na cidade de Londres: talvez, para sonhar uma ficção de um outro Brasil; de um novo país cuja realidade social ainda poderia ser capaz de superar a tragédia e o desastre nacional deixado por 21 anos de ditadura militar.
Para os leitores interessados em conhecer ​​as diferentes formas do trabalho literário de Antônio Callado, fornecerei, nas notas de pé de paginas, uma lista das obras ficcionais e não ficcionais do escritor brasileiro.

Um retrato de memória e uma entrevista

Em 1994, tive a sorte de conhecer e entrevistar o escritor Antônio Callado com o objetivo de concluir a minha tese de doutorado (11) para University of Minnesota. Como um tributo especial à figura desse escritor excepcional (e excepcional lutador em defesa dos pobres e oprimidos), divulgarei (pela primeira vez para os leitores brasileiros) em homenagem ao 17º aniversário do seu falecimento, um pequeno trecho da entrevista com o escritor.
 Entrevistei Antônio Callado numa tarde quente do dia 13 de agosto de 1994, no seu apartamento, no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro.  Não o conhecia pessoalmente mas, através do escritor João Ubaldo Ribeiro, a entrevista  foi  marcada sem nenhum contratempo
                Cheguei, pontualmente, às 14 horas, conforme combinado previamente por telefone.  Depois de um cordial aperto de mão, me pediu para sentar no seu estúdio de trabalho: uma pequena sala, branca, simples e austera, mas aconchegante.  Perguntei se podia gravar a entrevista e ele falou que não haveria problema.  Enquanto instalava o gravador lhe mostrei as perguntas.  Depois de ler as perguntas me disse: "—De fato, eu pensei que você queria uma entrevista mais rápida... estou com medo de que seja uma coisa um pouco extensa." Por um momento pensei que tivesse que voltar numa outra oportunidade.  Buscando resolver o problema do tempo, fiz uma proposta alternativa: "—Então vamos para as perguntas centrais." Ele respondeu simplesmente: "—Isso." Daí por diante, a entrevista foi se desenvolvendo  quase sem interrupções, de forma espontânea, tranquila e sincera, como a voz e a personalidade do Antônio Callado.
                Durante 2 horas e 20 minutos, Callado falou da sua vida de escritor/jornalista, dos seus romances, da Academia Brasileira de Letras, da literatura brasileira, das dificuldades políticas e econômicas do país, da herança da ditadura militar, da sua perplexidade diante dos problemas do Brasil, das dificuldades deste para realizar-se como nação moderna.  No fim da entrevista me disse: "—Eu gostei da nossa conversa. Em qualquer outra ocasião estou à sua disposição. Pode, inclusive, voltar aqui, se for o caso, porque não tem problema.  Não faça cerimônia. Gostei da nossa conversa."
                Durante a entrevista, minhas perguntas foram orientadas pelo meu interesse em entender a relação entre a história social e a produção cultural do Brasil moderno nos anos 60-80. Em termos mais concretos, tratei de que as minhas perguntas me ajudassem a compreender melhor a presença da história contemporânea do Brasil nos romances de Antônio Callado.  Antes de viajar para o Rio de Janeiro para entrevistá-lo, li todos os romances do escritor, tratando de analisá-los e interpretá-los no contexto cultural brasileiro.  Li os livros de crítica literária sobre ele, disponíveis nas bibliotecas e livrarias do Brasil e dos Estados Unidos.  Escrevi alguns artigos e ensaios sobre os romances do Callado e a produção cultural (música e cinema) do Brasil nas décadas de sessenta, setenta e oitenta. Mas vamos a entrevista:

"Eu realmente pensei, naqueles tempos dos anos 60, que o Brasil estivesse fazendo uma última experiência do tipo autoritário e que dali fosse partir para uma importante organização da sua vida. Nós aturamos um regime militar que estava começando quando eu escrevi o Quarup em 67 e me pareceu certo de que o Brasil com o adiantamento que já tinha do ponto de vista cultural, do ponto de vista econômico, tudo junto, que aquela experiência fosse a última e que dali pra frente a gente realmente fosse ter um tipo diferente de vida.  Isso, infelizmente, não aconteceu."  (Entrevista concedida em 13 de agosto de 1994.)
"Quando eu escrevi o Quarup, eu estava com a ideia de que eu realmente estava participando de uma coisa importante nesse país. Não era verdade. Realmente, não era verdade ou até agora continuo muito decepcionado com o que vem acontecendo com o Brasil." (Entrevista em 13 de agosto de 1994.)
"E, até certo ponto, eu achei que estava contribuindo para fazer uma coisa diferente, inclusive com a literatura. Eu não acho que a literatura seja feita para isso. Não tenho nenhuma briga com as pessoas que acham que a literatura não tem nada a ver com coisa nenhuma e que você faz exatamente o que está dentro de você. Estou de pleno acordo; mas no meu caso, a vida ao redor se manifesta pra mim com uma força um pouco grande demais. Em outras palavras, eu não saberia escrever um livro que não tivesse a ver com essa situação de um país emergente ou afundante como é o Brasil (também não sei qual das duas coisas), mas, na realidade, é muito forte essa noção de que alguma coisa tem que ser feita pra esse troço virar alguma coisa. Então, aí, eu observo essa compulsão, como eu digo, em relação à escrita." (Entrevista em 13 de agosto de 1994.)

Notas

1) De acordo com a antropologia cultural, os índios do Alto Xingú não têm um deus; têm um herói que é conhecido pelo nome de Maivotsinim.  A partir do relato verbal dos índios do Xingú, o mito pode ser simplificado no seguinte relato: Quando o mundo começou, o mundo era o caos.  Então veio Maivotsinim, o grande herói transformador dos indígenas.  Maivotsinin veio para botar cada coisa em seu lugar: botar o mundo em ordem, botar os rios para correr, separar os animais, cada coisa em seu lugar.  Um dia Maivotsinim fez um arco e precisava de corda.  Só quem tinha corda era a onça.  Então ele tratou de pegar a corda da onça, mas ele foi visto, e a onça ameaçou matá-lo.  Então, Mavotsinim prometeu dar as filhas em casamento à onça, para não ser morto.  As filhas dele ficaram com medo e não quiseram casar com a onça.  Então ele pegou troncos de árvores e fez várias filhas.  Algumas também tiveram medo da onça e não quiseram casar; uma morreu no caminho e só duas, afinal, se casaram com a onça.  Mas uma delas foi morta pela mãe da onça porque se recusou a comer um piolho; e ela estava grávida. De sua barriga a formiga tirou gêmeos, o sol e a lua.
                O sol e a lua, os gêmeos, queriam que a mãe voltasse a viver.  Foram para a floresta cortar troncos de árvores e fizeram uma festa, mas Maivotsinim lhes disse que não adiantaria; que ela não voltaria a viver.  "Isso só é bom," disse ele, "para lembrar a mãe de vocês".  E é por isso que até hoje os povos do Alto Xingú cortam os troncos de árvore para encarnar seus mortos ilustres na festa do Kuarup.  Depois de ordenado o mundo, o sol e a lua subiram ao céu. Como? Atiraram uma flecha que se fincou no firmamento e outra flecha que se fincou na primeira, e outra e mais outra e mais outra.  Assim, fizeram uma escada pela qual subiram. E lá ficaram para sempre deixando aqui em baixo o mundo dos homens.
                O Kuarup é a maior festa ritual dos índigenas do Alto Xingú para homenagear os mortos ilustres.  Enquanto a festa é preparada, os homens tocam a flauta 'tana' todos os dias, desde a manhã até o pôr do sol.  De fato, a festa é constituída por muitas atividades: caçar e pescar em abundância para alimentar os convidados, comer, beber, pintar os corpos, lutar, tocar flautas, dançar, cortar os troncos de árvores e pintá-los para simbolizar os mortos ilustres.  As imagens talhadas em madeira, pintadas e enfeitadas, representam os ancestrais mortos, que são evocados durante a festa e a são incorporados na comilança.

                Assim, o ritual Kuarup dramatiza seu mito, para evocar e celebrar os mortos ilustres das nações indígenas da nações do Alto Xingú.
Aqui, neste espaço textual,  eu gostaria de fazer um momento de silêncio para evocar o ritual "Kuarup"; para evocar a memória de Antônio Callado, um dos mortos ilustres do povo brasileiro: Antônio Callado, não foi apenas um dos grandes artistas e intelectuais do nosso tempo, foi um homem imprescindível, que dedicou grande parte da sua vida lutando em defesa da vida e da cultura dos indígenas, dos explorados e dos oprimidos da grande nação brasileira.

( 2 ) Quarup. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1984.

(3) A este grupo notável de homens ilustres heróis da nossa gente, pertencem o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, o escritor, romancista, líder-criador do "Cinema Novo" Glauber Rocha, o compositor Heitor Villa Lobos, o educador Paulo Freire, o arquiteto criador de Brasília Oscar Niemeyer, o líder do movimento modernista brasileiro Oswald de Andrade, os irmãos indianistas Claudio, Orlando e Leonardo Villas Boas entre outros.

(4) Até onde chega o nosso conhecimento, Callado foi o único repórter brasileiro que arriscou sua vida para viajar ao Extremo Oriente para informar honestamente sobre a Guerra do Vietnã, e o resultante genocídio perpetrado pelo governo dos EUA contra o povo vietnamita. O relato da viagem e guerra transformou-se no livro de Antônio Callado, Vietnã do norte: advertência aos agressores. São Paulo: Paz e Terra, 1977.

(5) Os noves romances são: A assunção de Salviano (1954); A Madona de Cedro (1957); Quarup (1967); Bar Don Juan (1971); Reflexos do baile (1976); Sempreviva (1981); A Expedição Montaigne (1982); Concerto Carioca (1985); Memórias de Aldenham House ( 1989).

(6) O fígado de Prometeu (1951); A Cidade assassinada (1954); Frankel (1955) Pedro Mico (1957); O Colar de Coral  (1957 ); O Tesouro de Chica da Silva (1962); Forró no engenho Cananéia (1964) A Revolta da cachaça (1983).

(7) Entre as grandes reportagens de Callado que se encontram publicadas em livros estão: Esqueleto na Lagoa Verde ( 1953) , Os da Industriais Seca (1960); Tempo de Arraes (1965); Vietnã do Norte: advertência anos agressores (1969); Entre Deus e a vasilha (1985).

(8) Entre as obras de Callado que foram adaptadas para o cinema e televisão estão: "A Madona de Cedro" (TV mini-series) , 1994; "Kuarup" (filme ) 1989; "Pedro Mico" (filme) 1985; “A Madona de Cedro" (filme) 1968.

(9) Para simplificar o trabalho, coloco em seguida uma lista com todos os títulos dos seus romances com os dados das edições brasileiras que conheço, para ajudar aos leitores que desejem lê-las.
Assunção de Salviano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960.
A Madona de Cedro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
Quarup . Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1984.
Bar Don Juan. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1971.
Reflexos do Baile . Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1977.
Sempre Viva . Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1981.
Expedição Montaigne. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1982.
Concerto Carioca . Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1985.
Memórias de Aldenham House. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1989.

(10) Para simplificar, relaciono abaixo os títulos dos mais importantes textos e ensaios de críticos literários brasileiros sobre Antônio Callado para os leitores que desejem consegui-los .
Rocha, Glauber. Entrevista. Patrulhas ideológicas. Heloisa Buarque de Holanda et al. São Paulo: Ed.Brasiliense de 1980. 28-33 .
Gullar Ferreira. "Quarup, Um ensaio de deseducação para Brasileiro virar gente”. Revista Brasileira Civilização, 15 ( 1967) : 251-258 .
Oliveira, Franklin. "Mito e Símbolo”.  A Fantasia Exata. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1959.
Peregrino, Helio. " Quarup, o Nascimento do Herói Novo". Jornal do Brasil .
Houaiss, Antônio. "Prefácio”. Reflexos do Baile de Antônio Callado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
Arrigurci Jr. , Davi. "O Baile das Trevas e das Águas ". Achados e Perdidos. São Paulo: Editora Polis, 1979.
Leite, Ligia Chiappini Moraes. Antônio Callado. Rio de Janeiro: Editora Abril , 1982. (Prêmio Casa de las Américas).

11) Ditadura militar e oposição estética: marianismo como modo de resistencia cultural ao '64' na fiçção de Antonio Callado.
Vital de Brito Moreira, Jorge. 1996. 255 leaves ; 28 cm. Thesis (Ph. D.)--University of Minnesota, 1996

domingo, 19 de janeiro de 2014

Uma pensata de domingo em tempos filosóficos


Tem sido difícil disponibilizar um tempinho para escrever. Primeiro por falta de tempo mesmo... Em segundo porque estou em meio a crises de coluna que fazem com que o que me resta de tempo disponível, tem sido para procurar descansar das dores. Ossos da idade!
Mas às vezes, me lembro de alguma postagem antiga que mereça uma republicação. Como esta a seguir.

Havia um sujeito cujo apelido era “Filósofo”. Meio baixinho, o cabra circulava pelas noites cariocas, sempre nos bares freqüentados pela esquerda, a “festiva” (1), em particular. O dito personagem, lá pras tantas, já de pileque subia numa cadeira e fazia discursos “inflamados”. No final, todos aplaudiam.

Mas, como o “Filósofo” havia todo um folclore que pairava pelas madrugadas da cidade. Quando falei do Cinerama, o barzinho que ficava ao lado do cinema Paissandu, lembrei-me das figuras que iam sempre, mas sempre mesmo com “Ulisses” ou “O Capital” debaixo do braço. “Ulisses” era a grande coqueluche da época. Em tradução da Civilização Brasileira, a leitura do livro de James Joyce era quase que obrigatória. Acontece que a simbologia do autor em sua narrativa, embaralhava demais corações e mentes nem sempre preparadas para compreendê-la. O resultado é que virou moda mesmo.  Poucos entendiam, mas todos discutiam. A pergunta “... você já leu Ulisses?” era das mais comuns naqueles finais dos anos 60.

Quem carregava “O Capital” sob o suvaco, naturalmente queria dizer e mostrar ao público circunvizinho que entendia Marx, e era íntimo de suas ideias.

Tudo isto contado assim, parece simples. Mas, olha, a coisa era pra lá de complicada. Porque no auge das bebedeiras, chegavam a dar medo algumas reações e discursos numa época de repressão e violência com os militares no poder. Certamente que eles (os milicos) encaravam tudo aquilo como uma espécie de “gueto”, e, certamente vigiavam, somente vindo a tomar medidas repressoras mais violentas à medida que sentissem a coisa extrapolar a área circunscrita, e, logicamente demarcada da “porralouquice” etílica, de uma esquerda que falava para a própria esquerda, num círculo vicioso, quase um moto contínuo.

Mas, além do Cinerama, ia-se muito ao Lamas. Não muito longe dali, uns três longos quarteirões e se chegava lá, em pleno Largo do Machado, entre a garagem dos bondes da Light e do cinema São Luis. As caras eram as mesmas, mas o lugar era muito mais charmoso. Existiram poucos bares como o Lamas. Pensando bem, muito mais do que isso, um restaurante. E o melhor filé (2) da cidade.

Na frente, a tabacaria e a banca de frutas. Frutas de todos os tipos e origens, algo precioso e colorido. Na tabacaria, desde o Continental (sem filtro) até o mais sofisticado fumo para cachimbos Dunhill, sem contar os charutos cubanos. Mas, detalhe, ali você também comprava um Pimentel ou uma cigarrilha Talvis da vida.

No meio o restaurante, café e bar. Não era enorme, mas ao adentrar sentia-se o peso da história. Naquelas cadeiras (hoje estariam com quase 140 anos de existência), sentaram os traseiros, em outros tempos, Getúlio Vargas, Monteiro Lobato, Oswaldo Aranha ou Machado de Assis, personalidades que fizeram história na política e na cultura deste país.

Nos fundos, passando uma porta de molas no melhor estilo “saloon” de faroeste, a maior sala de sinuca que eu conheci. Pelo menos que eu conheci... E o mais engraçado, ou até desgraçado, o banheiro ficava após aquela gigantesca sucessão de mesas de bilhar. Triste é que quando se chegava lá, às vezes ainda tinha que se enfrentar uma fila para tirar a bendita “água do joelho”.

Não me lembro de ter saído do Lamas sóbrio, a não ser depois que casei e fomos algumas vezes jantar; algo bem mais civilizado. Naqueles tempos de antanho, geralmente comprava uma maçã, saia trôpego do local, e, sabe-se lá como, acordava em casa no dia seguinte. Porém, foram longas e acirradas discussões sobre o futuro do Brasil e do mundo. Muita polêmica com o pessoal do “partidão” a ouvir discursos do “Filósofo” em cima de uma cadeira naquele burburinho de vozes que só as casas noturnas teem.

Havia também os bares do Leblon e Ipanema. O Degrau, o Alvaro’s, o Jangadeiro, o Zepellin. Mais uma vez, as mesmas caras, os mesmos debates as mesmas propostas de uma época de filósofos e filosofadas.

Uma época rica em minha memória.

1. Esquerda “festiva” era aquela que vivia apenas de discurso, geralmente não militava, e se opunha ao regime e/ou sistema de forma descompromissada, em bares e festinhas.

2. O Lamas mudou-se para a rua Marques de Abrantes, quando o prédio foi demolido para a construção do metrô. Até hoje serve o seu filé, que continua famoso, mas que, cá entre nós, eu acho que não é mais como aquele. Ou será puro romantismo?

domingo, 12 de janeiro de 2014

Pensatas de domingo... O rei estala a chibata




Na Europa medieval, os monarcas absolutistas ordenavam a tortura ou a execução dos criminosos em praça pública, com um claro objetivo político, ou melhor, biopolítico, diria Michel Foucault: tratava-se de propiciar um espetáculo, tanto na acepção banal do termo criar cenas impactantes, de apelo visual, emocional e afetivo – quanto no sentido de imprimir no imaginário de cada espectador o temor face à possibilidade de, no futuro, ser ele o punido. O espetáculo servia, em resumo, como entretenimento e advertência.
A Idade Média ainda não foi superada no Brasil contemporâneo, onde os criminosos continuam sendo expostos e humilhados em praça pública. Mas, claro, não todos os criminosos, apenas aqueles que, pela cor de sua pele, por sua origem social e/ou pela ideologia que defendem - ou que, pelo menos, parecem defender - incorrem na ira do rei. Não há outra maneira de entender a fúria que se abateu contra os réus condenados do mensalão. Um manifesto divulgado no dia 19 de novembro, assinado por centenas de juristas, intelectuais, dirigentes sindicais e de movimentos sociais resume um pouco do que foi o grande espetáculo:

“A decisão do presidente do STF de mandar prender os réus da Ação Penal 470 no dia da proclamação da República expõe claro açodamento e ilegalidade. Mais uma vez, prevaleceu o objetivo de fazer do julgamento o exemplo no combate à corrupção. Sem qualquer razão meramente defensável, organizou-se um desfile aéreo, custeado com dinheiro público e com forte apelo midiático, para levar todos os réus a Brasília. Não faz sentido transferir para o regime fechado, no presídio da Papuda, réus que deveriam iniciar o cumprimento das penas já no semiaberto em seus estados de origem. Só o desejo pelo espetáculo justifica. Tal medida, tomada monocraticamente pelo ministro relator Joaquim Barbosa, nos causa profunda preocupação e constitui mais um lamentável capítulo de exceção em um julgamento marcado por sérias violações de garantias constitucionais.”

Não foi a fúria da justiça contra o transgressor que se abateu sobre os réus: foi a fúria da Casa Grande contra a Senzala, mas numa situação à primeira vista esdrúxula, repleta de contradições e paradoxos, dificilmente compreensível, mesmo para um observador que conheça razoavelmente a história do Brasil. Os casos mais espetaculares e dramáticos de fúria punitiva, explorados à exaustão por uma mídia sedenta de sangue e vingança, envolveram os três principais réus que, não por acaso, ocuparam postos importantes no PT - José Dirceu, José Genuíno e Delúbio Soares – partido ao qual é filiada a presidente Dilma Rousseff.

Joaquim Barbosa, o seu principal e mais furioso algoz – que agiu com requintes sádicos, no caso de José Genoíno - foi integrado ao STF por ninguém menos que o então presidente Luís Inácio Lula da Silva. E os réus, por sua vez, estão longe de representar uma ameaça ao capital: ao contrário, sob sua direção, o PT curvou-se às determinações dos banqueiros e sufocou o quanto pode a organização independente dos trabalhadores. Fiéis escudeiros dos patrões, os réus não deveriam ser objeto de um ódio tão grande.

Tudo, enfim, parece estar fora de lugar nessa história, que mais se assemelha a um conto narrado por um louco, repleto de sons e fúria, sem sentido algum – para tomar de empréstimo a definição que Macbeth dá ao ato de existir. Mas não é assim. Uma lógica muito sólida e implacável costura os fatos, até compor um mosaico perfeitamente coerente e legível.

Em primeiro lugar, a expressão da burguesia como classe econômica – a detentora dos meios de produção – nem sempre coincide com a expressão da burguesia como produtora de ideologia. Os patrões, sem dúvida, estão contentes com o PT. Quando se tratou de gerir os negócios burgueses, o partido que nasceu como porta-voz da Senzala aceitou o lugar a ele designado pela Casa Grande. “Lula é o cara”, diz Barack Obama. Mas os centros produtores da ideologia burguesa odeiam o PT, apesar de tudo. Os arrogantes, reacionários, conservadores e podres senhores de engenho simplesmente nunca aceitaram a ideia de entregar o Planalto a um retirante nordestino ou a uma ex-integrante da guerrilha. Ter o PT como capataz eficiente do latifúndio é uma coisa; aceita-lo como convidado à mesa principal é outra, bem diferente. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

Segundo, por uma série bem conhecida de circunstâncias históricas, o STF foi levado à condição de promover contra o PT a guerra que os partidos burgueses foram incapazes de travar no âmbito do Congresso. Dado que a burguesia ideológica encontra-se destituída de seus partidos políticos próprios – reduzidos à mísera insignificância do PSDB e do DEM -, o STF foi levado a agir como o carrasco do rei, para lembrar à ralé miúda o que acontece quando ela começa a acreditar que deixou a Senzala para se tornar parte da Casa Grande. O fato de o principal feitor ser negro, de berço bastante pobre e “amigo” de Lula só acrescenta ironia aos fatos, mas não terá sido nem a primeira e certamente nem a última vez que alguém devota ódio semelhante às suas próprias origens sociais.

Por fim, o PT paga o preço da conciliação de classe. A impotência política frente aos ataques do STF tem a sua raiz no processo de desorganização que o próprio PT criou, fazendo da CUT uma reunião de eunucos sindicais e de boa parte dos movimentos sociais meras plateias que, vez ou outra, encenam algumas críticas ao governo federal. Isso tudo foi claramente demonstrado pela “jornadas de junho”, que dispensaram solenemente o concurso do PT e da CUT, quando não os hostilizaram abertamente.

Como resultado, as características mais arcaicas do estado brasileiro manifestam sua força e impõem suas regras e formas à esfera pública. O rei estala a chibata.