terça-feira, 28 de junho de 2011

É necessária a erradicação do capitalismo


Transcrita do periódico “Brasil de Fato” (1), o artigo abaixo, de autoria de Ana Maria Amorim sobre uma palestra do pensador húngaro István Mészáros em Salvador nos ilustra que a crise sistêmica do capitalismo, pela qual passamos --em fase mais aguda--, remonta a tempos anteriores ao que se lhe pretendem atribuir.

De passagem pelo Brasil, o filósofo húngaro István Mészáros teve em sua agenda a conferência plenária “Crise estrutural necessita de mudança estrutural”, no Salão Nobre da Reitoria da Universidade Federal da Bahia (UFBa). Começava com Mészáros, portanto, o II Encontro de São Lázaro, que comemora os 70 anos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBa. O Salão Nobre da Reitoria foi tomado por uma maioria jovem que recebeu Mészáros com entusiasmo e sonoras palmas.
Mészáros começa sua fala deixando claro que nada do que ele está propondo pode ser visto como uma “utopia não realizável” e que, para transformarmos este tão-chamado impossível em realidade é primordial que a crise do capitalismo seja avaliada adequadamente. “Sem uma avaliação da crise econômica e social de nossos dias, que já não pode ser negada pelos defensores da ordem capitalista, ainda que eles rejeitem a necessidade de uma mudança maior, a probabilidade de sucesso a esse respeito é insignificante”, diz o filósofo.

Natureza da crise
Para Mészáros, a crise que o mundo enfrenta é uma “crise estrutural profunda e cada vez mais grave, que necessita da adoção de remédios estruturais abrangentes, a fim de alcançar uma solução sustentável”. Apesar de comumente a crise ser apresentada como ‘atual’, Mészáros discorda que ela tenha se originado em 2007, com a explosão da bolha habitacional dos Estados Unidos. A crise teria começado há mais de quatro décadas e, em 1971, ele já escrevia no prefácio de “Teoria da Alienação em Marx” que as revoltas de maio de 68 e seus desdobramentos “salientavam dramaticamente a intensificação da crise estrutural global do capital”.
Por ser uma crise estrutural, e não apenas conjuntural, esta crise não pode ser solucionada no foco que a gera sem que não haja uma mudança desta estrutura que a criou. Mészáros reforça a diferença entre as crises conjunturais e estruturais, diferenciando-as pela impossibilidade destas realimentarem o sistema, se remodelarem a partir de uma nova forma ainda nas bases do sistema capitalista. Isto, contudo, não significa que as crises conjunturais possam se apresentar até mesmo de forma mais violenta que as crises estruturais. “O caráter não-explosivo de uma crise estrutural prolongada, em contraste com as grandes tempestades, nas palavras de Marx, através das quais crises conjunturais periódicas podem elas mesmas se liberar e solucionar, pode conduzir a estratégias fundamentalmente mal concebidas, como resultado da interpretação errônea da ausência de tempestades, como se tal ausência fosse uma evidência impressionante da estabilidade indefinida do ‘capitalismo organizado’ e da ‘integração da classe trabalhadora’”, diz Mészáros.
O que esta crise (que não é nova) teria como características que a definem como estrutural? Mészáros aponta quatro aspectos principais: o caráter universal (ou seja, não é reservada a um ramo da produção, ou estritamente financeira, por exemplo); o escopo verdadeiramente global (não envolve apenas um número limitado de países); escala de tempo extensa e contínua (“se preferir, permanente”, adiciona Mészáros, enfatizando que não se trata de mais uma crise cíclica do capital) e, por fim, modo de desdobramento gradual (“em contrates com as erupções e colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado”, diz o filósofo). Assim é construído o cenário que qualificaria esta crise como estrutural, com a impossibilidade de solução das “tempestades” dentro da atual estrutura.

Capitalismo destrutivo
Outro ponto levantado por Mészáros – e recebido com manifestações de apoio pela platéia – foi delinear os “limites absolutos” do capitalismo. Um desses limites passa pelo papel do trabalho na sociedade, que é visto como uma necessidade, tanto para os indivíduos que produzem quando para a sociedade como um todo. Uma situação onde o trabalho seja visto como um problema, ou pior, como uma falha, tem em si um limite a ser resolvido. O capitalismo, para Mészáros, “com seu desemprego perigosamente crescente” (ainda que a questão não seja meramente numérica), apresenta no trabalho um dos seus limites.
Mészáros chama ainda a atenção para outros males dessa estrutura. A primeira questão apresentada pelo filósofo estaria no foco que o capital vem apontado, os “setores parasíticos da economia”. Para ilustrar o que seria isso, Mészáros aponta para o aventurismo especulativo que a economia tem vivenciado (e que, quando peca em seus resultados, é apontado como um fracasso individual, pertencente a um determinado grupo, quando, para o filósofo, deveria ter o sistema como grande culpado, visto que ele deveria responder por aquilo que produz para se oxigenar) e a uma “fraudulência institucionalizada”.
As guerras e o seu complexo aparato industrial militar aparecem como um desperdício autoritário ao qual o capital submete a sociedade. Este ponto é analisado por Mészáros como uma “operação criminosamente destrutiva e devastadora de uma indústria de armas permanente, juntamente com as guerras necessariamente a elas associadas”. Esta produção sistemática de conflitos e estímulo a uma produção militar resultaria no outro limite destrutivo no capitalismo, apesar de não ser apenas resultado deste, que seria a destruição ecológica: “o dinamismo monopolista militarmente embasado teve até mesmo que assumir a forma de duas devastadoras guerras mundiais, bem como da aniquilação total da humanidade implícita em uma potencial terceira guerra mundial, além da perigosa destruição atual da natureza que se tornou evidente na segunda metade do século XX”.

Criar o futuro
“Existe e deve existir esperança”, diz o filósofo. Apesar do retrato de destruição apresentado por Mészáros e vivenciado cotidianamente dentro da própria estrutura capitalista da sociedade, faz-se o esforço de pensar o futuro, não apenas como um desejo sonhador, mas sim como uma tarefa necessária para mudar o sistema.
A solução para os problemas apontados pelo capital já foram apresentados em momentos históricos anteriores. Mészáros resgata as soluções apresentadas para o capitalismo. Relembrando o liberal John Stuart Mill, Mészáros aponta como inconcebível que o capitalismo chegue a “um estado estacionário da economia”, como defendia Mill, pois faz parte da lógica capitalista a incessante expansão do capital e da sua acumulação. Retomando o ponto do limite da ecologia, fica mais visível o caráter ilusório de um freio para o capital, visto que em 2012 será realizado o Rio+20, Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, que pretende engajar as nações em um projeto sustentável de crescimento. As tentativas de criar projeções para as taxas de emissão de carbono, por exemplo, sempre presente nas pautas ecológicas, seriam, para Mészáros, a evidência da incompatibilidade entre o capital e o freio, ainda, entre o capital e o não-avanço destrutivo na natureza.
Mészáros ainda aponta como soluções já tentadas na história: a saída social democrata, socialismo evolutivo, o Estado de Bem Estar Social e a promessa da fase mais elevada do socialismo. “O denominador comum de todas essas tentativas fracassadas – a despeito de suas diferenças principais – é que todas elas tentaram atingir seus objetivos dentro da base estrutural da ordem sociometabólica estabelecida”. Pensar a mudança sem erradicar o capital, portanto, seria deixar latente a possibilidade do capital voltar, ser “restaurado”. A mudança, para Mészáros, precisa ser estrutural e radical, como ele bem especificou para a plateia, extirpando o capital pela raiz.
O rombo estadunidense na economia, com um débito alarmante de U$ 14 trilhões, é, para o filósofo, a marca de um desperdício. Ao ver a inquietude dos capitalistas com a China e seus “três trilhões [de dólares] em caixa”, o capitalismo já pensa um “melhor uso” para esse montante. “E qual é o melhor uso? Por de volta no buraco que fizeram nos Estados Unidos?”, questiona Mészáros. Como foi gerado e como se pode assegurar que um rombo desta proporção não se repita na história são perguntas entrelaçadas ao caráter estrutural da crise e, em conseqüência disto, da resposta necessariamente estrutural que ela requer. Crise esta que tropeça em suas intermináveis guerras, devastação da natureza e contínua produção destrutiva.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Encontro ultra direitista nos Estados Unidos contra os países progressistas da América Latina


Como estou, por razões pessoais, em fase de pouca inspiração e vontade de escrever, reproduzo abaixo a matéria lida no site do Instituto de Estudos Latinoamericanos (1), publicada em 15 de maio de 2011 e assinada por “Kaos”.

O evento acontece no dia 26 de maio sob o tema: “Legitimidade Perdida? Como o Socialismo do Século XXI subverte a democracia na América Latina” e se propõe a denunciar que os países progressistas da América Latina “uniram suas forças para socavar o império da lei e violar sistematicamente os direitos humanos de seus cidadãos”.
A representante republicana e presidenta do comitê de relações exteriores da Câmara Baixa, Ileana Ros-Lehtinen, está de novo por trás da convocatória de um “encontro” ultra direitista no Capitólio de Washington com o propósito de atacar e difamar a Venezuela, Bolívia, Equador, Cuba e Nicarágua.
A convocatória é do Americas Forum, grupo cuja tarefa principal é de difundir material propaganda suja e elementos de desinformação contra os países que não se submetem ás orientações do Departamento de Estado dos EUA.
Entre as “vedetes” desta assembléia de extremistas e golpistas está o mercenário mediático venezuelano Moisés Naím, um ex-ministro de Carlos Andrés Pérez, precisamente nos momentos do massacre do “Caracazo”. Naím é um furibundo defensor do Estado de Israel, tal como Ros-Lehtinen, e um propagandista da ultra direita sempre disposto a difundir informações distorcidas contra os países que se atrevem a romper com a ordem imperial. Naím foi membro da junta dirigente do Banco Mundial, trabalha com a Foreign Policy, de fama bem determinada, além de fazer comentários para o El País, da Espanha.
No “menu” da reunião aparece o homem de confiança de Ros-Lehtinen para o hemisfério sul, o representante Connie Mack, o mesmo que sugeriu assassinar Hugo Chávez em outro encontro direitista e que desenvolve campanhas para que a Venezuela apareça na lista de Washington dos países que o Departamento de Estado qualifica como “patrocinadores do terrorismo”.
Também estará o espanhol Alberto Carnero, da falangista Fundação FAES, da Espanha. Carnero é amigo pessoal do “intelectual da CIA” Carlos Alberto Montaner, associado ao terrorismo contra Cuba. Igualmente se manifestarão vários “representantes da sociedade” não identificados dos países que os organizadores desse show bizarro se propõem a agredir. Assim, estimulados com a próxima saída do Subsecretário de Estado para Assuntos do Hemisfério Ocidental do governo dos Estados Unidos, Arturo Valenzuela – que buscava desacreditar senadores e políticos da ultra direita - toda esta gente contribui para impulsionar uma nova ofensiva latinoamericana.
A própria Ros-Lehtinen, ao celebrar a eliminação de Valenzuela, assinalou que “os interesses estadunidenses sofreram uma deterioração” durante aquela gestão e sublinhou que o próximo subsecretário de Estado para o hemisfério ocidental não deve (textualmente) “permitir a tiranos que maltratam os seus povos, debilitam princípios democráticos e se aliam com outros regimes antiestadunidenses”
Há apenas alguns meses Ros-Lehtinen convocou também no Capitólio uma reunião da rede golpista latinoamericana na qual falaram Otto Reich, Roger Noriega e outros oriundos do clã Reagan/Bush. Ileana, que condena os países da Alba por suposta violações dos direitos de seus cidadãos foi, em 2009, com Connie Mack, uma das primeiras legisladoras estadunidenses a correr em socorro do regime fascista do hondurenho Roberto Micheletti.
Eleita graças a uma campanha “humanitária” para libertar o terrorista Orlando Bosch, então detido em Miami, a também chamada “bruxa do Capitólio” proclamou há alguns meses o seu apoio a Alejandro Peña Esclusa, o ultra direitista detido em Caracas por terrorismo, e que lidera o grupo “UnoAmérica”, compadres do nostálgico Plano Condor.

1. Para uma melhor interação e conhecimento com o site acesse:

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Afinal, por que EUA e seus aliados não conseguem derrubar Kadafi? Por que o povo líbio criou milícias armadas e insiste em defender o ditador?


Li esta matéria hoje na Tribuna da Imprensa e achei por bem transcrevê-la. Fez-me pensar mais profundamente porque as potências ocidentais se interessaram pela derrubada de Kadafi com tanta força, intervindo e investindo pesadamente com a sua força militar contra aquele governo, não apenas por ser “ditatorial”, mas porque, como Solano Lopes no Paraguai, tentou um caminho próprio de independência.
O que não acontece nos demais países da região em que os governos (também ditatoriais) servem aos interesses do capitalismo imperialista ocidental.

Carlos Newton
A impressionante resistência do povo da Líbia é facilmente justificável, mas a imprensa ocidental não dá explicação alguma, limita-se a fazer uma espécie de diário da guerra, citando os pontos bombardeados pela aviação americana, inglesa, francesa e italiana, relacionando o número de vítimas etc., e estamos conversados. Esta é a cobertura da mídia.
Nenhum jornal ou televisão explica que a união do povo líbio em torno de Muhamar Kadafi é fruto de sua própria forma de governo, bem diferente dos demais países árabes que exportam petróleo. Segundo o jornal britânico “Financial Times”, até o início da guerra civil alimentada pelo Ocidente, os líbios tinham o rendimento per capita mais alto de África, com 14.900 dólares por ano. Você sabia?
Além disso, há muitas outras informações que ardilosamente são ignoradas pela imprensa ocidental. Por exemplo, o fato de que o regime de Kadafi vinha utilizando a riqueza petrolífera do país para construir uma ampla rede de escolas, hospitais e clínicas públicas. Assim, dezenas de milhares de estudantes líbios de baixos rendimentos receberam bolsas para estudar no seu país e no estrangeiro. Ao mesmo tempo, as infraestruturas urbanas estavam sendo foram modernizadas, a agricultura era subsidiada e os pequenos produtores e fabricantes recebiam créditos do governo.
Ao contrário de outros ditadores árabes, Kadafi não se preocupou apenas em enriquecer a sua própria família/clã, promovendo também programas eficazes de desenvolvimento, mas agora está tudo em risco, com os bombardeios diários e com os ataques dos rebeldes, que são bancados e incentivados pelo Ocidente.
Na verdade, os rebeldes e os seus mentores estão destruindo a Líbia, arrasando toda a economia, bombardeando importantes cidades e destruindo a infraestrutura do país e tudo o mais. Ao mesmo tempo, bloqueiam a entrega de alimentos subsidiados e assistência aos pobres, provocam o fechamento das escolas e forçam milhares de profissionais, professores, médicos e trabalhadores especializados estrangeiros a fugir do país.
A imprensa ocidental não explica que os líbios, mesmo os que se opunham à prolongada permanência de Kadafi no poder, encontram-se agora perante a escolha entre apoiar um estado de bem-estar social, evoluído e que funcionava, ou apoiar uma aventura militar manobrada por estrangeiros. Compreensivelmente, muitos deles escolheram ficar do lado do regime.
O fracasso das forças rebeldes apoiadas pelo Ocidente, apesar da sua enorme vantagem técnico-militar, deve-se à destruição insensata desse sistema de bem-estar social que vinha beneficiando milhões de líbios desde duas gerações.
A incapacidade de os rebeldes avançarem, apesar do apoio maciço do poder ocidental aéreo e marítimo, significa que a “coligação” EUA-França-Inglaterra-Itália terá que reforçar sua intervenção e desembarcar as tropas, invadindo o país em desrespeito às determinações das Nações Unidas, se é que realmente pretendem ganhar a guerra e dominar a produção de petróleo, sejamos francos.
Na verdade, a intervenção estrangeira exacerbou a consciência nacionalista dos líbios, que passaram a entender sua confrontação com os rebeldes anti-Kadafi como uma luta para defender sua pátria do poderio estrangeiro aéreo e marítimo e das tropas terrestres fantoches – um poderoso incentivo para qualquer povo ou exército. E o raciocínio oposto também é verdadeiro para os rebeldes, cujos líderes abdicaram da sua identidade nacional e dependem inteiramente da intervenção militar ocidental para chegarem ao poder.
Mas a tendência é de enfraquecimento das tropas rebeldes, porque muitos jovens líbios devem acabar abandonando a luta contra seus compatriotas, ao perceberem que o que fazem é tentar colocar o país sob um domínio neocolonialista, contra a vontade do povo, a pretexto de derrubarem Kadafi.
Enquanto isso, na Síria, no Iêmen e em outros países árabes o banho de sangue também continua, unindo cada vez mais os islamitas contra os ditadores apoiados pelo Ocidente, transformando aquela riquíssima região numa gigantesca bomba-relógio que um belo dia vai explodir, marcando o tempo da guerra santa com que os  muçulmanos tanto sonham.

domingo, 12 de junho de 2011

Inside Job: As limitações políticas e ideológicas de um bom documentário

O texto abaixo é de nosso colaborador, Professor Jorge V. B. Moreira.

O documentário Inside Job ou “Trabalho Interno” (o filme do diretor Charles Ferguson que ganhou o prêmio Oscar de 2011 de melhor documentário além de outros prêmios nacionais e internacionais) trata da crise financeira de 2008; uma crise que se converteu em um gigantesco colapso econômico e custou a inacreditável quantia de 20 trilhões de dólares de destruição de patrimônios e riquezas, deixando os prejuízos para a população de assalariados do mundo neo liberal; uma crise econômica que causou a desgraça de 30 milhões de pessoas que perderam suas poupanças seus trabalhos (jobless people), suas casas, seus apartamentos, seus condomínios (homeless people). Esta crise que ainda não terminou, continua sendo considerada pelos analistas como a mais destrutiva recessão (que quase levou ao colapso total do sistema financeiro mundial), depois da Grande Depressão de 1929.
O filme, narrado pela voz do ator Matt Damon, apresenta pesquisas e entrevistas com grandes financistas, reconhecidos políticos, prestigiados periodistas e destacados acadêmicos das Universidades dos EUA. Desde o ponto de vista narrativo, sua estrutura conta com várias partes, dedicando a introdução (uma das suas melhores partes) do documentário à crise financeira na Islândia de 2008 e 2009. Nas outras, identifica o sistema financeiro dos EUA como a origem do problema, realiza uma exposição das causas do surgimento da crise, analisa o papel das inovações dos instrumentos financeiros no sistema, acusa e mostra as organizações (públicas e privadas) e os indivíduos que foram os agentes responsáveis (ou culpados) pelo colapso global e elabora um diagnóstico da situação atual para concluir afirmando que são insignificantes as medidas que foram tomadas durante a administração de Barack Obama para solucionar os problemas que foram criados.
O documentário enfoca predominantemente as mudanças na indústria financeira que conduziram à crise, na pressão desta indústria nas decisões políticas em prol da desregulamentação, e como as inovações na criação do mercado de derivativos permitiram grandes aumentos no risco financeiro adotado, ao possibilitar driblar as regulamentações que tinham como finalidade controlar o risco sistêmico.
Ao descrever o desenvolvimento da crise, o filme também examina o conflito de interesses do setor financeiro, evidenciando que se trata de uma prática que se esconde da população afetada. O filme indica que estes conflitos envolvem o governo, os bancos de inversão, as companhias seguradoras, as companhias de empréstimo hipotecário, as agências de qualificação de risco, e os acadêmicos que são pagos como consultores, mas não informam ao público nos seus ensaios que estão a soldo dessas companhias.
Dentro do mercado de derivativos, por exemplo, o filme afirma que o grande risco que começou com o crédito subprime se transmitiu de inversionista em inversionista, devido às manipulações de classificação, que indicava falsamente que as inversões eram seguras. Assim, os prestamistas se viram levados a assinar hipotecas sem poder considerar os riscos, ou inclusive favorecer maiores taxas de juros dos empréstimos, devido a que em seu momento estes fossem classificados conjuntamente, e o risco estava escondido.
De acordo com o filme, os produtos e serviços financeiros resultantes da manipulação recebiam classificações AAA, a mesma que os Bônus do Estado emitidos pelo governo dos Estados Unidos, o qual lhes permitia vendê-los inclusive aos fundo de pensões, entidades que só podem realizar inversões de máxima segurança.
Outro tema destacado no filme são os elevados salários e bônus da indústria financeira, e como seu nível tem crescido escandalosamente acima dos aumentos nos outros setores, inclusive nos bancos que foram à falência, o filme revela como seus principais executivos embolsaram centenas de milhões de dólares no período que antecedeu à crise; milhões que têm conservado na sua totalidade, mostrando que não existe qualquer equilíbrio entre risco e benefício auferido.
O documentário também examina a função das universidades na crise. O filme revela, por exemplo, que o economista de Harvard e antigo diretor do Conselho de Assessores Econômicos sob a administração de Ronald Reagan, Martin Feldstein, foi diretor da seguradora AIG e antigo membro do conselho diretivo do banco de inversão J.P. Morgan &amp Co. O documentário também denuncia que muitos professores de renome e membros das escolas de comércio e de negócios conseguiam aumentar enormemente seus ingressos trabalhando como consultores, ou oradores em eventos públicos para a indústria financeira. Outro exemplo revela como o atual decano da escola de negócios da Universidade de Colúmbia, Glenn Hubbard recebeu centenas de milhares de dólares do setor financeiro.
Um dos pontos fortes do filme é mostrar como os mais respeitados bancos, as mais prestigiadas instituições governamentais, e as mais destacadas personalidades do mundo político e financeiro se aproveitaram do poder para promover conjuntamente a corrupção, o suborno, as atividades ilegais e criminais e depois continuaram gozando da impunidade de que os poderosos desfrutam.
Os casos são abundantes no documentário. Eles mostram como as mais poderosas organizações e seus executivos produzem lucros, juros e bônus, praticando as atividades criminais como a lavagem de dinheiro, a fraude, a falsificação da contabilidade, o suborno, o uso da prostituição, de drogas e outras.
O filme mostra que entre as principais organizações encontram-se os grandes bancos de inversão de Wall Street (Goldman Sachs, Merrill Lynch, J.P. Morgan, Citicorp, Riggs Bank), os conglomerados financeiros (Citigroup, J.P Morgan) as imensas seguradoras de valores (AIG, MBIA, AMBAC), as agências qualificadoras (Moody’s, Standard & Poor’s, Fitch), as companhias de empréstimos hipotecários (Freddie Mac, Fannie May), as companhias de auditorias e consultoria tributaria (Arthur Anderson, Deloitte Touche Tohmatsu, KPMG) e outras.
Alguns exemplos contundentes: o documentário mostra como a J.P. Morgan tem subornado funcionários do governo dos EUA; como o Citibank tem lavado milhões de dólares dos cartéis das drogas do México; como o Riggs Bank realizou lavagem de dinheiro para o ditador chileno Augusto Pinochet, como a UBS (União de Bancos Suíços) tem sido processada pela realização sistemática de fraudes, etc.
Os nomes dos executivos e políticos responsáveis pelo processo de produção da desregulamentação seguido da crise financeira global também são abundantes no filme. Eles são: Donald Regan (ex CEO da Merrill Lynch e Secretário do Tesouro dos EUA no governo de Ronald Reagan), que iniciou o processo de desregulamentação financeira por um período de 30 anos; Alan Greenspan (presidente da Reserva Federal dos EUA nos governos de R. Reagan, G. Bush pai, Bill Clinton e G. Bush filho) que recebeu 40.000 dólares para justificar os roubos bancários de Charles Keating; Larry Summers (Secretário do Tesouro dos EUA) que recebeu 20 milhões de dólares como consultor de um fundo financeiro que utilizava muitos derivativos; Robert Rubin (Secretário do Tesouro dos EUA no governo de Bill Clinton) que recebeu 126 milhões de dólares como vice presidente do Citigroup; Henry Paulson (Secretário do Tesouro de G. Bush filho) que conseguiu convencer a este, desembolsar 700 bilhões de dólares do dinheiro público para resgatar da falência a Goldman Sachs (do qual Paulson foi presidente) e os outros grandes bancos responsáveis pela crise financeira; um dos maiores defensores dos derivativos, o senador Phil Gramm, tornou-se vice presidente da União de Bancos Suíços (UBS) e sua mulher Wendy era membro da mesa diretiva da companhia Enron antes de sua falência e que os grandes bancos trataram de esconder; o chefe do gabinete do presidente Barack Obama, o sionista Rahm Emanuel, recebeu 320.000 dólares quando estava na junta diretiva da Freddie Mac.
Tudo que o filme revela pode ser de muita utilidade para demonstrar ao espectador, que a qualificação dos EUA como “o país mais corrupto do mundo” (dita por muitos latino americanos) fica plenamente comprovada no filme. Por outro lado, é bem provável que muitos poderão entender o que fazem os bancos com os depósitos (grandes ou pequenos) dos assalariados e pensionistas, ou seja, como os bancos utilizam nosso dinheiro para não pagar impostos; para financiar os cartéis das drogas; para financiar terroristas; para financiar proxenetas; para derrubar governos eleitos; para financiar ditaduras; para matar líderes sindicais e ecologistas; para destruir bosques, etc.
O filme termina afirmando que apesar das aparências das últimas regulamentações financeiras, o sistema não mudou; pelo contrário, os bancos resgatados são ainda maiores, mais concentrados e mais poderosos e os incentivos para produzir lucros, juros e bônus por meios ilícitos e ilegais continuam sendo os mesmos que deflagraram a atual crise econômico financeira.

Avaliação critica
Antes de começar a escrever uma rápida avaliação crítica sobre o documentário Inside Job, gostaria de recomendar o documentário de Charles Feguson para todos os cidadãos brasileiros que possam pagar por uma entrada numa sala de cinema ou alugar o DVD na locadora de filmes para assistir em casa, pois ele me parece imprescindível para todos aqueles que queiram compreender como o nosso destino depende das decisões tomadas pelos donos do poder na economia política capitalista e imperialista dos Estados Unidos e demais países capitalistas do “mundo civilizado”.
Apesar de todos os aspectos positivos da exposição, análise e narração dos problemas do sistema financeiro e da denúncia dos responsáveis pela crise, é lamentável que o documentário do diretor Charles Ferguson não seja capaz de relacionar e articular o problema da crise financeira com o problema da dominação, exploração e expropriação numa sociedade dividida em classes sociais.
O fato de que o filme não mencione nada do sistema capitalista, a sua luta de classes, a sua dominação, a sua exploração e a sua expropriação dos assalariados da classe média e do proletariado, conduz o relato da crise financeira a um beco sem saída, pois o documentário, com todos os seus méritos educativos, não é capaz de conceber ou sugerir uma perspectiva de solução para os problemas econômicos e sociais fora do sistema capitalista; ele é incapaz de imaginar uma organização social não capitalista capacitada para superar os terríveis problemas produzidos por este sistema. Assim o filme se torna extremamente limitado por reduzir-se a oferecer uma perspectiva legal, moral ou ética para solucionar os problemas gerados pelo capitalismo, quando sabemos que a única lei moral que o capitalismo respeita é a obtenção de lucros, juros, ou seja, capital e dinheiro.
Como já mencionamos, o filme termina afirmando que apesar das últimas regulamentações financeiras, o sistema não mudou. Pelo contrário, os bancos existentes são atualmente ainda maiores e poderosos do que antes, e os incentivos para aumentar lucros e juros ilegalmente continuam sendo os mesmos que conduziram a mais uma crise capitalista. Consequentemente nenhum dos indivíduos responsáveis pelo colapso global da economia foram processados, julgados ou punidos pela justiça dos EUA. Por incrível que possa parecer, um numero significativo deles foram premiados (como nos mostra o filme), recebendo os cargos políticos e econômicos mais importantes do governo de Barack Obama.
Concluir o documentário afirmando que é insignificante o que se tem feito durante a administração de Barack Obama para superar os problemas econômicos é ficar esperando que o governo do presidente Obama (“Yes we can”, “Sim, nós podemos”) e as instituições governamentais tenham poder e vontade suficientes para terminar com a ditadura dos bancos capitalistas.
Por esse caminho, o filme tende a ignorar que os presidentes os senadores e os deputados dos EUA, são eleitos com o dinheiro dos grandes bancos e das gigantescas corporações. Consequentemente, é irracional e ilógico, puro mito e ideologia, esperar que as autoridades eleitas neste sistema antidemocrático, queiram cuspir algum dia no prato que lhes está dando de comer. Penso que, a maioria dos espectadores, poderão chegar à conclusão oposta e correta: que o governo dos EUA obedece servilmente à ditadura dos bancos de Wall Street.
Assim, os méritos que o filme deveria merecer (por denunciar a corrupção e a impunidade dos agentes que trabalham para o capital) são ofuscados e diminuídos quando no final, o relato fílmico, se limita a oferecer uma perspectiva de solução que é (por seu caráter legalista e moralista), completamente inútil para transformar a sociedade e superar as crises em que vivemos.
No âmbito cinematográfico, o documentário tem algo muito importante para dizer e consegue mostrá-lo muito bem no decorrer do filme; porém a imagem da estátua da liberdade dos EUA no fim do filme sugere apenas impotência dos seus realizadores, pois a imagem fálica da estátua é, sobretudo, uma apelação simbólica: um dos clichês político ideológicos mais manjados que têm sido usado por inúmeros diretores de filmes estadunidenses que não têm muito o que dizer ao espectador.
Na minha perspectiva, a única solução viável para superar os problemas econômicos, sociais e políticos produzidos pelas crises sistêmicas do capitalismo é a luta sem trégua dos assalariados para produzir um novo modo de produção e uma nova sociedade: uma sociedade não capitalista, uma sociedade sem luta de classes, sem a contradição entre o capital e o trabalho: uma sociedade onde a justiça social seja uma realidade e não apenas um discurso cinematográfico bem intencionado.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Energia nuclear e protocolo adicional


Apesar de ter sido escrito em maio de 2010, somente agora chegou ao meu conhecimento o artigo de Samuel Pinheiro Guimarães, então ministro-chefe da “Secretaria de Assuntos Estratégicos”, publicado em “Carta Maior” (1), externando a posição de que a concordância com o protocolo adicional proposto pelas potências, a esta altura seria criminoso, pois as propostas de centralização em instalações internacionais da produção de urânio enriquecido (por essas mesmas potências) são instrumentos disfarçados de revisão do TNP (Tratado de Não Proliferação Nuclear) no seu pilar mais importante, o direito de desenvolver tecnologia para o uso pacífico da energia nuclear, que foi uma das condições para o país ter aderido ao Tratado. A outra foi o desarmamento geral, tanto nuclear quanto convencional, das potências nucleares (EUA, Rússia, China, França e Inglaterra). O artigo engloba a questão fundamental da mudança nas regras do jogo em que as potências capitalistas tentam modificá-lo a seu favor adquirindo o monopólio tecnológico e marginalizando os demais países, como o Brasil, que dominam o enriquecimento do urânio.

Samuel Pinheiro Guimarães (2)

“O acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera provoca o aquecimento global e suas catastróficas conseqüências. Cerca de 77% desses gases correspondem a CO2, dióxido de carbono, resultado inevitável da queima de combustíveis fósseis para gerar energia elétrica e para movimentar indústrias e veículos, desde automóveis a aviões e navios. Esta é a base da economia industrial moderna, desde a construção de uma máquina a vapor, capaz de girar uma roda, em 1781, por James Watt.
A redução das emissões de dióxido de carbono é essencial para impedir que a concentração de gases, que hoje alcança 391 partículas por milhão, ultrapasse 450 ppm. Este nível de concentração corresponderia a um aumento de 2ºC na temperatura, um limiar hoje considerado como o máximo tolerável, devido ao degelo das calotas polares e ao aquecimento dos oceanos – o que, ao ocorrer de forma gradual e combinada, levaria à inundação das zonas costeiras de muitos países, onde vivem cerca de 70% da população mundial.
Todavia, desde a assinatura do Protocolo de Kioto, em 1997, que estabeleceu metas para 2008-2012 de redução dessas emissões a níveis 5% inferiores àqueles verificados em 1990, a emissão de gases de efeito estufa aumentou. 70% da energia elétrica nos Estados Unidos é gerada por termoelétricas a carvão e gás; 50% da energia elétrica produzida na Europa é gerada por termoelétricas a carvão e a gás; 80% da energia elétrica chinesa tem como origem termoelétricas a carvão.
Em grande medida, a solução da crise ambiental depende, assim, da transformação radical da matriz energética, em especial das usinas de geração de eletricidade de modo a que venham a utilizar fontes renováveis de energia. Muitos dos países que são importantes emissores de gases de efeito estufa que teriam de transformar suas matrizes energéticas (responsáveis por 70% das emissões desses gases), não têm recursos hídricos suficientes (China, Índia, Europa etc.) ou não têm capacidade para gerar energia eólica e solar economicamente – fontes que, por serem intermitentes (a usina eólica funciona, em média, 25% do tempo e a solar somente durante período do dia) não asseguram continuidade de suprimento e nem sua energia pode ser armazenada. Mesmo a produção econômica de energia a partir da biomassa (etanol) se aplicaria mais à substituição de gasolina e diesel em veículos do que à produção de energia elétrica.
Resta, portanto, a energia nuclear como solução viável para a geração de energia elétrica em grande escala, uma vez que estão superados os problemas ambientais e de segurança. A energia nuclear, que hoje responde por 20% da energia elétrica produzida nos Estados Unidos; 75% na França; 25% no Japão e 20% na Alemanha, é produzida, como se sabe, a partir do urânio. Patrick Moore , fundador do Greenpeace, foi enfático ao declarar: “a energia nuclear é a única grande fonte de energia que pode substituir os combustíveis fósseis.”
81% das reservas de urânio conhecidas se encontram em seis países. O Brasil tem a 6ª maior reserva de urânio do mundo, tendo ainda a prospectar mais de 80% do seu território. A estimativa é de que o Brasil pode vir a deter a terceira maior reserva do mundo. Cinco companhias no mundo produzem 71% do urânio. O urânio na natureza se encontra em um grau de concentração de 0,7%. Para ser usado como combustível esse urânio tem de ser minerado, beneficiado, convertido em gás, enriquecido a cerca de 4%, reconvertido em pó e transformado em pastilhas, que é a forma do combustível utilizado nos reatores.
Esse processo industrial é extremamente complexo e apenas oito países do mundo detém o conhecimento tecnológico do ciclo completo e a capacidade industrial para produzir todas as etapas do ciclo. Um deles é o Brasil. O Brasil combina, assim, a posse de reservas substanciais, e potencialmente muito maiores, com o conhecimento tecnológico e a capacidade industrial além de deter a capacidade industrial que permitiria produzir reatores.
Apesar da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) prever um crescimento moderado da demanda por urânio enriquecido, o fato é que países como a China e a Índia precisarão de instalar capacidade extraordinária de usinas não poluentes para aumentar a oferta de energia elétrica sem aumentar de forma extraordinária suas emissões de CO2. A China planeja aumentar sua capacidade instalada total de geração de energia elétrica em 100.000 MW por ano, o que equivale a toda a atual capacidade brasileira.
Caso os países desenvolvidos não aumentassem sua produção industrial e pudessem assim ser mantidos os atuais níveis de geração de eletricidade e, portanto, de emissão de gases, e os grandes países emergentes também não aumentassem suas emissões atuais de gases (e, portanto, mantivessem sua produção atual, com crescimento econômico zero) o nível de limiar do aumento de temperatura, 2ºC seria atingido muito antes do previsto – e até ultrapassado.
Assim, é urgentemente necessário diminuir a emissão de gases de efeito estufa e, ao mesmo tempo, manter o crescimento econômico/social elevado para retirar centenas de milhões de seres humanos da situação abjeta de pobreza em que vivem. Isto só é possível através da geração de energia elétrica a partir do urânio. Para gerar 1Kw de energia elétrica, uma usina a carvão gera 955 gramas de CO2; uma usina a óleo 818 g; uma usina a gás gera 446 g e a usina nuclear 4 g (quatro!) de CO2.
Os grandes países produtores de energia, portanto, terão de mudar sua matriz energética, cuja base hoje são combustíveis fósseis, para utilizar combustíveis renováveis e não-fósseis como a energia nuclear – única que atende aos requisitos de regularidade, de suprimento, de economia e de localização flexível. Mas os extraordinários interesses das grandes empresas produtoras de petróleo, de gás e de carvão dos países que detém as principais jazidas desses combustíveis fósseis – carvão (Estados Unidos e China); gás (Rússia e EUA); e petróleo (Arábia Saudita, etc. – e os custos, difíceis de exagerar, de transformação de suas matrizes energéticas e de seus hábitos de consumo, tendem a influenciar as considerações dos técnicos que elaboram aquelas estimativas conservadoras da Agência Internacional de Energia – AIE, que prevêem o contínuo uso de combustíveis fósseis e um pequeno aumento de demanda por energia nuclear nos próximos anos.
Apesar de tudo, a deterioração das condições climáticas e fenômenos extremos farão com que a urgência de medidas de reorganização econômica se imponham, inclusive pela pressão dos cidadãos sobre os governos, apesar da contra-pressão dos interesses das mega-empresas. Assim, apesar daquelas estimativas modestas, o mercado internacional para urânio enriquecido será extremamente importante nas próximas décadas, caso se queira evitar catástrofes climáticas irreversíveis.
Certas iniciativas dos países nucleares, a pretexto de enfrentar ameaças terroristas, podem afetar profundamente as possibilidades de participação do Brasil nesse mercado. Tais iniciativas se caracterizam por procurar concentrar nos países altamente desenvolvidos a produção de urânio enriquecido e de impedir sua produção em outros países, em especial naqueles que detêm reservas de urânio e tecnologia de enriquecimento. Em outros países, que são a maioria, o tema não tem importância, e serve apenas para criar meios de pressão sobre os primeiros. Isto afeta diretamente o Brasil, do ponto de vista econômico e de vulnerabilidade política.
Por outro lado, esses países procuram restringir por todos os meios a transferência de tecnologia, procuram impedir o desenvolvimento autônomo de tecnologia e procuram conhecer o que os demais países estão fazendo, sem revelar o que eles mesmos fazem. O Protocolo Adicional aos Acordos de Salvaguarda com a AIEA, previstos pelo TNP (Tratado de Não Proliferação) é um instrumento poderoso, em especial naqueles países onde há capacidade de desenvolvimento tecnológico – caso do Brasil. Onde não há essa capacidade não tem o Protocolo qualquer importância, nem para os que dele se beneficiam (os Estados nucleares) nem para aqueles que a suas obrigações se submetem (os Estados não-nucleares que não detêm urânio, nem tecnologia, nem capacidade industrial e que são a maioria esmagadora dos países do mundo).
A concordância do Brasil com a assinatura de um Protocolo Adicional ao TNP permitiria que inspetores da AIEA, sem aviso prévio, inspecionassem qualquer instalação industrial brasileira que considerassem de interesse, além das instalações nucleares (inclusive as fábricas de ultracentrífugas) e do submarino nuclear, e tivessem acesso a qualquer máquina, a suas partes e aos métodos de sua fabricação, ou seja, a qualquer lugar do território brasileiro, quer seja civil ou militar, para inspecioná-lo, inclusive instituições de pesquisas civis e militares. Ora, os inspetores são formalmente funcionários da AIEA, mas, em realidade, técnicos altamente qualificados, em geral nacionais de países desenvolvidos, naturalmente imbuídos da “justiça” da existência de um oligopólio nuclear não só militar, mas também civil, e sempre prontos a colaborar não só com a AIEA, o que fazem por dever profissional, mas também com as autoridades dos países de que são nacionais.
O Protocolo Adicional e as propostas de centralização em instalações internacionais da produção de urânio enriquecido são instrumentos disfarçados de revisão do TNP no seu pilar mais importante para o Brasil, que é o direito de desenvolver tecnologia para o uso pacífico da energia nuclear. Esta foi uma das condições para o Brasil aderir ao TNP, sendo a outra o desarmamento geral, tanto nuclear como convencional, dos Estados nucleares (Estados Unidos, Rússia, China, França e Inglaterra), como dispõe o Decreto legislativo 65, de 2/7/1998: “a adesão do Brasil ao presente Tratado está vinculada ao entendimento de que, nos termos do artigo VI, serão tomadas medidas efetivas visando à cessação, em data próxima, da corrida armamentista nuclear, com a completa eliminação das armas atômicas”.
Todavia, desde 1968, quando foi assinado o TNP, os Estados nucleares, sob variados pretextos, aumentaram suas despesas militares e incrementaram de forma extraordinária a letalidade de suas armas não só nucleares como convencionais e assim, portanto, descumpriram as obrigações assumidas solenemente ao subscreverem o TNP. Agora tentam rever o Tratado para tornar a situação deles ainda mais privilegiada, com poder de arbítrio ainda maior, enquanto a situação econômica e política dos países não nucleares fica ainda mais vulnerável diante do exercício daquele arbítrio.
Ao contrário da maior parte dos países que assinaram o Protocolo Adicional, o Brasil conquistou o domínio da tecnologia de todo o ciclo de enriquecimento do urânio e tem importantes reservas de urânio. Só três países – Brasil, Estados Unidos e Rússia – têm tal situação privilegiada em um mundo em que a energia nuclear terá de ser a base da nova economia livre de carbono, indispensável à sobrevivência da humanidade. Aceitar o Protocolo Adicional e a internacionalização do enriquecimento de urânio seria, assim, um crime de lesa-pátria.”


2. Samuel Pinheiro Guimarães foi secretário-geral das Relações Exteriores (Ministério das Relações Exteriores) de 2003 a 2009. Posteriormente foi empossado como ministro chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República da (SAE). Deixou este cargo ao final do Governo Lula.
Em 19 de janeiro de 2011, o embaixador foi designado Alto-Representante Geral do Mercosul tendo como funções a articulação política, formulação de propostas e representação das posições comuns do bloco. Na função coordena a implementação das metas previstas no Plano de Ação para um Estatuto da Cidadania do Mercosul.
Foi professor da Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, é professor do Instituto Rio Branco (IRBr/MRE), onde leciona a disciplina "Política Internacional e Política Externa Brasileira" aos diplomatas recém-ingressados na carreira.
É autor dos livros “Quinhentos anos de periferia” (UFRGS/Contraponto, 1999) e “Desafios brasileiros na era dos gigantes” (Contraponto, 2006).
Em 2006 foi eleito Intelectual do Ano (Troféu Juca Pato) pela União Brasileira de Escritores.