domingo, 29 de janeiro de 2017

Pensatas de Domingo. Raymond Williams e o marxismo no ocidente



Raymond Williams (1921-1988) ocupa um lugar ímpar na linhagem do marxismo ocidental. O principal livro sobre esse movimento – que, apesar de seus equívocos, mantém-se ainda canônico na recepção brasileira – “Considerações sobre o marxismo ocidental” [1976], de Perry Anderson (Boitempo, 2004), ignora-o solenemente. Ele estabelece um recorte que, no terreno da geografia, além de privilegiar a Itália, a França e a Alemanha, destitui a Inglaterra, e, no quadro das especialidades acadêmicas, acolhe em sua lista de participantes apenas filósofos.

Muitos não hesitaram em atribuir a exclusão de Williams (e do marxismo inglês) a um conflito de gerações, corporificado pela transição no comando da “New Left Review”. Convém ressaltar, no entanto, que, embora não sob a forma de uma autocrítica, a reparação não se fez tardar. O comitê editorial da New Left, integrado por Anthony Barnett, Francis Mulhern e pelo próprio Perry Anderson, realizou, ao longo do segundo semestre de 1977, uma bateria de entrevistas com Williams, inicialmente publicadas na revista e posteriormente reunidas no livro “A política e as letras” (Unesp, 2013).

Segue-se aí um modelo pouco comum de entrevista, na qual se abre espaço para “a declaração e o argumento de ambos os lados”. Assim, não só Williams viu-se forçado a se debruçar sobre os fundamentos teóricos de sua obra, num desafio autoreflexivo ao qual se submeteu de bom grado, como ilumina as divergências internas do marxismo inglês nos anos 1970. Desnecessário dizer que se trata ainda da melhor introdução à vida e ao pensamento de Raymond Williams.

O processo de correção completa-se com as críticas de Göran Therborn (sociólogo sueco que se tornou membro do círculo interno da New Left) ao livro de Anderson. Um artigo incluído em “Do marxismo ao pós-marxismo” (Boitempo, 2012), contesta tanto a demarcação espacial e temporal como a seleção com a primazia de filósofos de “Considerações sobre o marxismo ocidental”. Além de ressaltar a injustiça fragrante da ausência de nomes como Bertold Brecht, Cornelius Castoriadis, etc., Therborn aduz uma pista interessante para se pensar porque ele tampouco incluiu Willians na lista dos rejeitados. Therborn relembra que “assim como os filósofos do século 20 em geral, os filósofos marxistas tenderam a se mover em direção à sociologia”. Um itinerário exemplificado, entre outros, pelos frankfurtianos Marcuse, Adorno e Habermas, mas também por Jean-Paul Sartre, o filósofo por excelência.

Raymond Williams iniciou sua obra como crítico literário. Cedo, expandiu seus interesses para a crítica cultural em sentido amplo, abarcando especialidades decisivas para a compreensão do século 20, como o teatro, o cinema, as comunicações e a televisão. Sua principal contribuição nesse campo encontra-se, no entanto, na reformulação do termo cultura. Williams aproxima esse conceito daquilo que Karl Marx considerava como o resultado primordial do metabolismo do ser humano com a natureza, isto é, a criação, no decorrer da história, de modos de vida determinados.

Essa confluência induziu muitos a classificá-lo, dentre as especialidades universitárias, como sociólogo (da cultura). Recusam-lhe assim inclusive o título de marxista (demasiadamente associado ao propósito deliberado de implodir a divisão intelectual do trabalho). O paradoxo, nem sempre percebido, consiste no fato de que a sociologia, no período de formação e desenvolvimento dos primeiros trabalhos de Williams, era uma disciplina estranhamente ausente na vida universitária e no debate intelectual inglês. Essa peculiaridade explica, em parte, a dificuldade comum a nativos e estrangeiros em reconhecer Williams como um expoente do marxismo ocidental, atribuição reafirmada e consagrada cada dia mais pela sua recepção atual aqui e acolá.

NOTAS COMPLEMENTARES

O Dossiê Raymond Williams, um expoente do marxismo ocidental pretende esmiuçar para o leitor, após a tradução no Brasil de seus principais livros, algumas facetas da obra (quase) inclassificável de Williams.

Michael Löwy desdobra, entre outros tópicos, a questão da relação entre marxismo e romantismo, reconhecendo, na resenha feita por Williams, em 1980, de seu livro “A evolução política de Lukács”, um dos estímulos de sua pesquisa acerca da posição social e política da arte e da concepção de mundo romântica. Ugo Rivetti destaca o modo como Williams, em dois livros de sua obra inicial, “Cultura e sociedade! eThe long revolution”, promove um acerto de contas com a tradição inglesa de crítica cultural, presença decisiva em sua formação na Universidade de Cambridge.

Por meio de uma instigante análise de uma frase, Fernando Pinheiro esclarece os termos da crítica de Williams à ideia de cultura ou sociedade de “massas”, aproximando-o tanto da tradição sociológica alemã como (ainda mais) da linhagem francesa inaugurada por Durkheim Marco Schneider reconstitui as principais teses de Williams acerca do que se costuma denominar de “sociologia da comunicação”, a partir de uma leitura cerrada (close reading) dos livrosm “Communications”e “Televisão”.



NA LUTA CONTRA A DISCRIMINAÇÃO NO BRASIL O DIA DE HOJE É MUITO IMPORTANTE:
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domingo, 22 de janeiro de 2017

Pensatas de Domingo. Arquivo queimado. E agora?



Pelo jeito a morte de Teori Zavascki enganou muito poucos, tanto na imprensa quanto entre a população em geral. A verdade é que quando publiquei aqui em “Novas Pensatas” anteontem (20/01/17) às 20:27h e no Facebook na manhã seguinte as primeiras reflexões sobre o fato, já havia um clima de desconfiança generalizado em todo o país.
Ontem à tarde, no decorrer de pesquisas sobre o tema, leitor habitual de “Outras Palavras” que sou, dei de cara cm este artigo e pensei com os meus botões por que não publica-lo por inteiro, já que ele era completo e completamente aquilo que eu queria dizer. O texto original que reproduzo a seguir, escrito por Antonio Martins está em http://outraspalavras.net/

Não é preciso transformar o ministro Teori Zavascki, morto num acidente suspeitíssimo, em herói. Encarregado do processo da Lava Jato no STF, ele foi, como quase todos os seus colegas, incapaz de defender a Constituição e a imparcialidade da justiça. Mas é facílimo identificar os que se beneficiam com seu desaparecimento. Em primeiro lugar o presidente Temer; seu “governo de réus” (para usar a feliz expressão feliz de Paulo Sérgio Pinheiro); as cúpulas do PSDB e PMDB; e centenas de deputados e senadores destes e outros partidos governistas. Todo este (grupo) (malta) estaria ameaçado e desmoralizado já a partir de fevereiro, quando Teori homologaria as delações premiadas dos executivos da Odebrecht, expondo a corrupção e hipocrisia dos que derrubaram o governo eleito e tomaram o poder em maio.

O “acidente” favorece, em segundo lugar, o prolongamento do golpe de Estado e a adoção de sua agenda de retrocessos selvagens. A quebra do sigilo sobre as delações (outra decisão que Teori mostrava-se disposto a tomar) demonstraria que o recebimento de propina e o favorecimento ao poder econômico são práticas corriqueiras e quase universais no mundo da política institucional. Esta revelação destrói o núcleo central da narrativa dos golpistas – a ideia de que o impeachment foi adotado para afastar um grupo corrupto e sanear a vida nacional. De quebra, frustrar ou adiar a publicação oficial das delações permite a um Congresso onde há centenas de prováveis tocar impunemente a agenda de horrores em curso. Nela se incluem, entre tantos outros pontos, o desmonte da Previdência Social Pública, a anulação na prática da maior parte da legislação que protege o trabalho, o bloqueio da demarcação de terras indígenas e o prosseguimento da entrega do pré-sal.

A análise inicial do regimento do STF sugere que todos processos sobre a Lava Jato, até agora centralizados em Teori Zavascki, serão entregues ao novo ministro do Supremo – a ser proposto pelo presidente da República e confirmado pelo Senado. Nas condições atuais, trata-se de uma afronta à ética. As poucas delações vazadas até agora indicam que Michel Temer foi apontado como receptor de propina ou praticante de favorecimento ilícito 43 vezes pelos executivos da Odebrecht. Em que julgamento legítimo pode o réu escolher o juiz que decidirá sua pena – ou sua absolvição? A necessária confirmação da escolha pelo Senado torna o escárnio ainda mais completo. Porque serão padrinhos do novo ministro, além de Temer, dezenas de senadores igualmente citados como corruptos.

Ninguém duvide: tanto Michel Temer quanto os senadores executarão, se lhes for permitido, o roteiro bizarro exposto acima. Eles tomaram o poder sem pudor, conscientes de sua hipocrisia, nas sessões grotescas da Câmara e do Senado em 19 de Março e 31 de agosto. Eles, sem vergonha, obrigam o país a engolir uma agenda impopular e nunca submetida a consulta alguma. Se foram capazes de tanto, o que não farão para salvar a própria pele e para preservar o sistema espúrio que lhes dá cada vez mais riqueza e poder?

Na vida e na política, as omissões são muitas vezes mais trágicas que os erros. As manifestações contra o golpe, que mobilizaram multidões e cresceram até abril, arrefeceram em seguida. Um pensamento acomodado tem soprado a alguns setores, mesmo entre a esquerda, que os males do presente poderão ser reparados em 2018, quando um novo presidente for eleito. Outros, que se julgam mais radicais, deixaram as ruas porque, enojados com razão de toda a política institucional, avançaram um limite. Amorteceram-se e se tornaram incapazes de lutar contra a brutalidade específica de um golpe capaz de instalar o Estado de Exceção em sua versão mais crua.

A morte de Teori Zavascki abre espaço para uma recuperação. Ninguém será capaz de convencer a sociedade de que foi de fato um acidente (é sugestivo que a velha mídia, discreta sobre a vida íntima de quase todos os poderosos, alardeie agora, como cortina de fumaça, a possível presença de uma amante no voo fatal). Os que queremos uma reforma política profunda devemos assumir nossa responsabilidade.

É preciso impedir que a casta política se safe e que o golpe se amplie. Há instrumentos para bloquear esta fuga. O futuro ministro do STF que assumirá o processo precisa ser questionado. Deve se comprometer, como indicava claramente Teori, a aceitar os acordos de delação premiada da Odebrecht. Poderá alegar que precisa de tempo para analisar milhares de horas de gravação, dezenas de milhares de páginas de processo. Mas isso não poderá servir de pretexto para manter o processo engavetado. O sigilo precisa ser rompido. Estamos na era do digital. Nada mais tacanho que impedir os brasileiros de conhecer as práticas políticas de que os quer governar.

A luta contra a corrupção – muitos têm dito – não pode ser uma bandeira dos conservadores. A oportunidade para frear esta captura está dada agora. Não se trata, como alguns chegaram a propor, de aderir às manifestações reacionárias. Trata-se de propor propor agenda às maiorias que percebem, tanto quanto nós, o esvaziamento da política. Trata-se de construir, com o impulso do fato inesperado, uma narrativa mais rica sobre o sequestro da democracia pelo poder econômico. Trata-se de tomar a frente, de propor saídas concretas diante de um acontecimento que comove o país. Estamos dispostos?

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sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Teori Zavascki. Acidente ou atentado?



Não demorou muito, após a confirmação de que o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Teori Zavascki se encontrava entre as vítimas fatais do acidente de avião em Paraty (RJ), na tarde desta 5ª feira, para que começassem uma série de rumores de que o ministro teria sido vítima de um atentado.

Isso se deve ao fato de que Teori, que estava de férias, deveria homologar novas delações da Odebrecht pela operação Lava Jato que poderia comprometer uma série de “caciques” da política golpista, como o “presidente” Michel Temer (PMDB), José Serra, Aécio Neves e outros membros da cúpula do PSDB. Após os primeiros rumores, começaram a vir à tona alguns fatos que justificam a desconfiança com o acidente aéreo.

O primeiro deles é o resgate de um tweet Francisco Zavascki, filho do ministro, de maio do ano passado, em que afirma: “É óbvio que há movimentos dos mais variados tipos para frear a Lava Jato. Penso que é até infantil que não há, isto é, que criminosos do pior tipo (conforme MPF afirma) simplesmente resolveram se submeter à lei! Acredito que a Lei e as instituições vão vencer. Porém, alerto: se algo acontecer com alguém da minha família, vocês já sabem onde procurar…! Fica o recado!”.

Um outro fato que deu combustível às “teorias da conspiração” foi também um tweet, este postado nesta 5ª feira (19) pouco antes das primeiras notícias do acidente com o avião de Teori. O senador José Medeiros (PSD-MT) afirmou que o “Jornal Nacional” daquela noite traria uma “bomba” envolvendo o STF. Puro boato ou um aviso prévio dos acontecimentos?

Na realidade a definição de quem herdará os processos de Teori está no regimento interno do STF. O artigo 38 diz que, em caso de aposentadoria, renúncia ou morte, o relator de um processo é substituído pelo ministro nomeado para a sua vaga. Neste caso, a Lava Jato iria para um novo ministro a ser indicado por Temer. Está explicado, não é?

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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Os Estados Unidos e o assassinato de Lumumba



Completados 55 anos de seu assassinato, e, finalmente os EUA admitiram publicamente seus atos nesta sinistra e covarde execução!


"O tempo é senhor da razão” diz o provérbio, segundo o qual o passar do tempo esclarece todas as dúvidas. Foi necessário mais de meio século para os Estados Unidos admitirem sua responsabilidade no homicídio que vitimou Patrice Lumumba, líder da independência do antigo Congo Belga, cujas consequências o tornam um crime de lesa-humanidade. Hoje, já se sabe que o republicano Eisenhower ordenou diretamente a Allen Dulles, diretor da CIA entre 1953 e 1961, que Lumumba fosse eliminado.

A agência montou o “Projeto Wizard” e a missão só foi cumprida no início do governo do democrata John Kennedy, que destinou 500 mil dólares para pagamento das tropas e equipamentos militares, no Congo. Boa parte dessa quantia foi recebida pelos assassinos do primeiro ministro congolês. Em depoimento ao senado estadunidense, em 1975, o então presidente Lyndon Johnson afirmou que no momento em que o presidente dos EUA deu aquela ordem direta a Dulles, provocou no grupo presente à reunião um profundo silêncio que durou de 15 a 20 segundos. Há até pouco tempo, a gravação desse depoimento foi mantida oculta.

Financiado por Leopoldo II, o rei da Bélgica, em 1878, o explorador Henry Stanley chegou à África Central com a missão de fundar entrepostos comerciais com povos da etnia “Bantú”, distribuídos em algumas centenas de reinos, sendo os dois maiores o “Baluba” e o “Congo”. A descoberta de que as montanhas de Katanga, ao sul da região, guardavam milhares de toneladas de diamantes despertou a cobiça das nações européias e de seus aliados. A Conferência de Berlim, entre 19 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885, decretou que aquele território era uma possessão pessoal de Leopoldo II, responsável por um dos maiores genocídios da história da humanidade, e em 1908 foi oficializado como colônia da Bélgica, passando a se chamar Congo Belga.

Através de mineradoras multinacionais e da violenta força de repressão colonial, o Ocidente explorou o Congo e seus povos, na primeira metade do século 20, até surgir um líder eloquente e anticolonialista convicto chamado Patrice Émery Lumumba. Funcionário dos correios, nascido em 1925, em Sancuru, província de Kasai, ele fundou, em 1958, o MNC (Movimento Nacional Congolês). Em 30 de junho de 1960, o país conquistou a independência e a maioria dos colonos europeus fugiu. Realizaram-se eleições que tornaram Joseph Kasavubu presidente, e Lumumba primeiro ministro. Mas a busca de apoio institucional e militar na União Soviética revoltou os governos ocidentais.

O exército belga e a CIA, agora sob ordem do rei Balduíno I, financiaram as lideranças regionais para destituir o novo governo. Convenceram os habitantes de que Katanga, tão rica, não poderia ficar sob o domínio comunista. Dez semanas depois da posse, revoltas eclodiram em todo o país sob liderança de Moise Tshombe. A ONU enviou os boinas azuis da “Força de Paz” sob comando norteamericano. No entanto Lumumba foi sequestrado por mercenários, torturado e fuzilado diante dos “soldados da paz”. Ao assumir o poder, Tshombe enfrentou novas rebeliões. Houve golpes e contragolpes, até 1965, quando Mobutu Joseph Désiré tomou o poder e permaneceu por mais de três décadas.

A política de “africanização” de Mobutu, proibindo nomes ocidentais e cristãos, mudando a denominação do país para Zaire e a da capital de Leopoldville para Kinshasa, também incomodou o Ocidente, que o apoiava. Ele mudou até o próprio nome para Mobutu Sese Seko Koko Ngbendu wa za Banga, que significa “o todo-poderoso guerreiro que, por sua resistência e inabalável vontade de vencer, vai de conquista em conquista, deixando fogo à sua passagem”. Nas duas décadas que se seguiram, o país enfrentou a guerra civil. E então, os ocidentais passaram a financiar o oposicionista, Laurent-Désiré Kabila.

Vencido, em 1997, Mobutu fugiu para o Marrocos, onde morreu. Kabila assumiu o poder e o país voltou a se chamar República Democrática do Congo. O novo governo prometeu democratização, mas tomou medidas autoritárias, gerando novas revoltas, agora patrocinadas pelos governos de Ruanda e Uganda, conforme os interesses das potências ocidentais.

Laurent Kabila se manteve na presidência, graças ao apoio militar de Angola, Zimbabwe e Namíbia, até ser assassinado, em 2001. Em 2006, aconteceram as primeiras eleições presidenciais naquele país, depois de 40 anos. O vencedor foi Joseph Kabila Kabange, filho de Laurent, que ainda preside o país. Resta saber se a significativa indenização devida pelos EUA por sua responsabilidade no assassinato de Lumumba ajudará a fortalecer esse país “democrático” e ressarcirá os herdeiros daquele que foi um dos grandes líderes do continente africano no século 20.

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