domingo, 26 de março de 2017

Pensatas de Domingo




Diálogo acidental sobre o povo brasileiro, estadunidense e outros semelhantes.

Conto de Jorge Vital de Brito Moreira

Numa cafeteria da Gringolândia, Romeu de Oliveira e Egroj Russell, amigos de velhos tempos, sentam-se para tomar café e  bater um papo. Egroj  pergunta:
-E aí meu jovem? Tudo bem? Como vai você, a família? Quais são as  novidades Romeu?”
- Pra mim, ultimamente, tudo tem sido uma merda! Estou cansado e me sinto velho. Já não tenho energia pra quase nada. Falta energia pra escrever, pra ler, pra terminar um bom livro. Falta energia até pra tocar violão, piano ou falar com os amigos pelo telefone”.
            - Não se preocupe. É apenas uma fase, Romeu, logo passará. Essa conversa me lembra daquela música... Egroj começa a cantarolar uma musica cubana em portunhol: “El tiempo passa, nos vamos poniendo viejo, el amor no lo reflejo como ayer”...
Romeu continua: - Estou gordo, lento, pesado e preguiçoso. Será que não gosto mais de mim, do que sou ou do que represento? Talvez tudo isso passará quando o inverno terminar. Tomara!
Egroje  lembra e cantarola a melodia do filme CasablancaAs time goes bye”...
Romeu prossegue no mesmo tom: -Não me recordo de ter suportado um inverno tão longo,  tão tedioso e tão chato aqui na Gringolândia. Chego ao ponto de começar a  sentir náuseas de viver neste frio durante tanto tempo por estas bandas.
            Egroje consola musicalmente o amigo, lembrando de uma melodia brasileira da  geração deles: “Green grass, blue eyes, gray sky, god bless, silent pain and happiness. I come here to say yes and I say...”
Depois do intervalo musical, Romeu persiste: - Acho que já não tenho saco pra aguentar tanta solidão ou aguentar a indiferença das pessoas daqui. E o pior de tudo é que também começo a sentir a indiferença da minha filha e às vezes da minha mulher também...
Egroje interrompe e diz ao amigo: - Sei ao que você está se referindo, Romeu. A solidão é um grande problema pra pessoas que vivem neste país, sobretudo pra pessoas imigrantes, velhas e sensíveis como você e eu. Por aqui, os indivíduos, pra não se sentirem solitários, resolvem, pra fazer amigos ou conhecer pessoas, frequentar as igrejas locais,  participar de grupo religioso ou praticar uma religião qualquer.
Romeu toma um gole do café quente, olha pro amigo e pergunta: -Mesmo que  elas não acreditem em Deus, em santo ou milagre?
Egroje responde: - Mesmo sem ser católico, protestante, fundamentalista ou crente de qualquer religião, o que importa para esses indivíduos é estar perto de outras pessoas, estar juntos delas, estar  compartindo um lugar onde possam se reunir e socializar, ao menos, uma vez cada semana. Naturalmente que existem outros tipos de indivíduos que procuram se socializar compartilhando com diversas atividades como fazer esportes, andar de bicicleta, correr, frequentar clubes de dança, de leitura, de livros, ou de arte com outras pessoas. Mas acredito que a maioria das pessoas ainda procuram a religião e a fé como forma de socialização.
- É incrível o nível de fragmentação, solidão e alienação a que chegamos!
Egroje fez uma pausa, bebeu um pouco do café e logo suspeitou: - Não me diga que você já está pensando voltar pro Brasil?
- Tenho pensado em voltar pro Brasil mas, por agora, tenho mudado de ideia. O Brasil, humanamente, está quase uma merda. Está cada vez mais parecido com os EUA: é o mesmo materialismo, o mesmo individualismo, a mesma alienação, a mesma corrupção, e a mesma guerra entre as classes sociais. A única coisa que lhes importa, neste sistema, é ganhar dinheiro.
- Você tem razão: atualmente, não existe nenhum outro valor (seja moral, afetivo, intelectual ou espiritual)  que tenha tanta importância para a maioria dos nossos brasileiros: O negócio é dinheiro, dinheiro e dinheiro. Só falta que o governo Temer imprima no dinheiro brasileiro o que está impresso no dólar americano: “In God we trust”.
- E o pior é que, politicamente, o golpe de estado imposto por canalhas e bandidos como  Michel Temer,  Eduardo Cunha, José Serra,  Aécio Neves,  Fernando Henrique Cardoso,  Gilberto Mendes e o Sergio Moro  não ajuda a mudar nada no Brasil e colocou o país na trilha da regressão politica, da crise econômica e do colapso social. Essa volta, em 2016, ao golpe militar de 1964, me tirou toda a tesão de voltar pro Brasil.
Egroje continua: - Sobre a nossa a alienação ideológica, é doloroso observar a atual vontade dos brasileiros de perder sua identidade cultural para  ficar cada vez mais parecido  aos estadunidenses. Outro dia um amigo brasileiro me contou  uma  piada muito engraçada procurando ilustrar  um aspecto da ignorância e alienação de grande parte dos  brasileiros em relação à realidade histórica que estamos vivendo. Só que eu acho que a piada se aplicaria não somente ao comportamento da maioria do povo brasileiro mas se aplicaria também ao comportamento do povo estadunidense, do povo europeu, do povo latinoamericano e ao de outros povos.
- Quero escutar a piada. Conte:
Um individuo chegou no consultório de um oftalmologista carregando uma grande lata de leite em pó. A secretaria do medico o atendeu perguntando-lhe o que era que se passava com seus olhos.
O individuo não disse uma palavra. Apenas abriu a tampa da lata para que a secretaria tivesse a oportunidade de ver com seus próprios olhos o tamanho do problema visual que o trazia aquele consultório.
A secretária assustada disse: - Ave Maria! O que é isso? Meu senhor, lamento muito, mas o doutor oculista não pode resolver este tipo de problema. O senhor deveria procurar um gastroenterologista, um medico especialistas em problemas intestinais.
O individuo surpreso, com a voz alta e indignada  disse: - Moça, não me venha com lenga lenga. Você não sabe nada. Eu sei perfeitamente que a solução pro meu problema dos olhos se resolve aqui com o doutor dos óculos. Quero falar agora mesmo com ele.
Nesse momento, o médico oculista, escutando  a voz indignada do individuo, saiu do consultório para saber o que acontecia na sala de espera
Quando o paciente viu o Doutor aproximando-se, abriu a lata de leite em pó e mostrou o material que trazia: Veja doutor o tamanho do meu problema.
O doutor delicadamente disse: - Meu amigo, sinto lhe dizer que a minha secretária tem toda a razão. O seu problema tem de ser resolvido com um especialista em problemas intestinais.
- Não doutor, estou seguro que o senhor está enganado. Meu problema tem que ser resolvido aqui.
O doutor, observou o individuo cuidadosamente e logo disse:- Okay meu amigo. Eu admito que eu posso estar enganado. Mas  eu só solucionarei o seu problema se você me explicar qual é a relação cientifica entre os seus olhos e esta grande merda que você traz nesta lata de leite.
O individuo meio abobalhado respondeu: - Doutor, este é o xis do problema pois cada vez que eu vou no sanitário defecar esta grande obra, eu choro, Doutor... Eu choro muito.
Depois de escutá-la Romeu se manifesta: - A piada é engraçada e alegoriza uma parte importante da ignorância e da alienação nacional popular. Mas, como podemos observar, ainda que seja uma piada estereotipada sobre o povo brasileiro, o individuo representado na piada é um sujeito potencialmente inteligente, um sujeito capaz de pensar e fazer relações logicas entre objetos e acontecimentos.  O  que falta a este individuo é educação adequada e informação fundamentada racional e/ou cientificamente relevante.  Este individuo (nacional ou internacional) necessita parar de falar e atuar com base na percepção imediata dos seus sentidos e da suposta verdade do dogma religioso de evangelistas de todo tipo.
Egroje responde: - Concordo com você. Faz uma pausa, olha o relógio e fala: Tenho que ir mas para concluir esta conversa neste momento, gostaria de repetir o que disse antes: Mesmo estereotipada, esta piada ilustraria relativamente, não somente o  comportamento  da maioria do povo brasileiro mas se aplicaria também ao comportamento da maioria do povo estadunidense, do povo europeu, do povo latinoamericano bem como a todos os povos explorados economicamente, dominados politicamente, e colonizados culturalmente pela classes dominantes nacionais e internacionais.
Romeu finaliza: - Como trataram de nos ensinar Darcy  Ribeiro e Paulo Freire, dois dos mais brilhantes educadores brasileiros da história do Brasil, não é o povo brasileiro que deve ser responsabilizado  por ter estado vivendo durante séculos subjugado pela exploração econômica, pela dominação politica, pela ignorância e pela alienação humana. Os representantes da classe dominante do capitalismo neoliberal são os atuais e únicos responsáveis pela injustiça social, pela degradação humana e pela infame ignorância a que submetem o povo do nosso país.
-Bom Romeu,  tenho que ir agora. Continuaremos a conversa num outro dia. Bye, Bye, homem. See you later, aligator.
- After awhile crocodile.

domingo, 19 de março de 2017

Pensatas de Domingo. Trotsky e sua atualidade para as lutas atuais



Gilson Dantas – “Esquerda Diário”

Neste ano, em que debatemos em torno dos cem anos da Revolução Russa, o legado de Trotsky para a moderna revolução proletária nos parece mais que candente, começando pelo fato de que Lenin e Trotsky defenderam a estratégia para a luta pelo poder que se revelou não superada até os nossos dias, a estratégia dos sovietes.

Naquela palestra procurou-se levantar, dentre outras, as seguintes questões: que lições tirar da Revolução Russa? Que lições tirar da degeneração da Revolução Russa diante do nazi-fascismo e da II Guerra? Uma direção política que não desenvolva, desde antes do poder, os órgãos de autoatividade de massas, a democracia proletária de base, pode conduzir à transição ao socialismo? Pode a economia em um país pós capitalista evoluir sem a democracia proletária, sem a democratização da economia pela base? Pode existir socialismo em um só país? E o socialismo pode ser pensado sem o internacionalismo proletário orgânico, ativo? Ou, por outra, é possível pensar em conduzir a luta pelo poder e a construção da sociedade revolucionária sem inserção orgânica no proletariado e a estratégia onde ele seja o sujeito político?

Por fim, queremos tomar a liberdade de acrescentar que, para o debate político do Brasil atual, das lutas de resistência contra o golpista Temer, uma das mais importantes formulações de Trotsky, a da ação comum dos trabalhadores pela base, procurando formas adequadas de autorganização, através de comitês de ação, da tática de frente única operária [tudo ao contrário das alianças dos operários com a patronal e seus partidos] é mais que atual, é urgente. Para dar um exemplo de outro momento e circunstância: Hitler teria sido varrido caso a esquerda de então recorresse a essa tática, que unisse socialistas e comunistas pela base, no combate, golpeando juntos o projeto nazista.

Ou como argumenta C. Castillo, dirigente do PTS argentino [La actualidad de Trotsky, 2002], “em Trotsky, a ideia do desenvolvimento de sovietes ou outros tipos de organismos de democracia direta está formulada da maneira menos dogmática possível, podem surgir de mil maneiras. No entanto, este problema passou a ser secundário nas correntes trotskistas do pós-guerra e na crítica que elas realizaram a correntes como o guevarismo ou o maoísmo [...] E segue, acrescentando “a corrente à qual pertenço desenvolveu [na crítica ao trotskismo de então, NT] a necessidade de colocar no centro a luta por organismos de democracia direta”.

Esse é o Trotsky tantas vezes “esquecido”.


segunda-feira, 13 de março de 2017

Ih, Nojento, tcham!


A imagem acima foi utilizada por mim no Facebook para ilustrar uma nota publicada na referida Rede Social sobre FHC, o FDP (imagem abaixo) e suas fortunas extorquidas descaradamente do povo brasileiro. Segue um resumo do personagem que durante muitos anos nos divertia com a sua irreverente comicidade.
  
Augusto Temístocles da Silva Costa, mais conhecido como Tião Macalé, (Rio de Janeiro, 17/12/1926 – São José do Rio Preto, 26/10/1993), foi um humorista brasileiro, célebre por suas participações nos programas de rádio e TV. Com sotaque característico, era conhecido pelo bordão "Ih, Nojento, tcham!".
Na década de 1960, trabalhou com Ari Barroso, no programa “Show do Gongo” (TV Rio), onde ao comando do compositor, "gongava" os calouros.
  
Ficou nacionalmente conhecido no programa humorístico “Balança mas na cai” da Rádio Nacional como o "crioulo difícil" ao lado da atriz Marina Miranda, a "crioula difícil". Tião Macalé era personagem de poucas falas, tendo inclusive alguma dificuldade na articulação das palavras, fato que aumentava ainda mais a sua eficiente performance como humorista.
  
Estreou no cinema em 1970, no filme “Os caras de pau”, mas a grande base de trabalho foi o programa “Os Trapalhões” (TV Tupi e posteriormente TV Globo).
  
Em 1988 e 1989 sua fama atingiu proporções maiores quando fez vários comerciais de paródias cômicas para a extinta rede de supermercados Disco. Em 1989, inclusive, atuou como garoto-propaganda na campanha do candidato Affonso Camargo Neto (PTB) à Presidência da República.
  
Tião Macalé também foi garoto-propaganda do achocolatado Toddy. Naquela época os comerciais eram realizados "ao vivo" e na hora de misturar o leite com o Toddy, Tião notou que o misturador no fundo estava com ferrugem. Mesmo assim, o Toddy foi colocado no copo, e o Tião tomando fez um cara feia. Neide Aparecida perguntou: "E aí Tião tá bom?", e Tião respondeu: "Toddy é gostoso até sem açúcar!!!"
  
Torcedor do Fluminense e assíduo frequentador dos estádios, Tião chegou a passar mal em 2 partidas do time carioca, antes de sofrer seu primeiro derrame. Entusiasta do futebol, organizava, treinava e às vezes arbitrava um time de futebol chamado Dínamo, na altura da rua Santa Clara, em Copacabana, de onde foi morador por muitos anos. 
   
No final de 1992  sofreu um derrame e passou a trabalhar com dificuldade. Faleceu em 26 de outubro de 1993, aos 66 anos de idade, vítima de infecção pulmonar, em São José do Rio Preto.

 

domingo, 12 de março de 2017

Pensatas de domingo. Marx, Engels, Bakunin e as lições da Comuna de Paris

Trecho do texto publicado em Marxismo 21 originalmente como “Reforma e/ou revolução" de André Vianna Dantas    
    
O século XIX testemunhou, com Marx e Engels, a inauguração de uma nova perspectiva no entendimento da origem e da função do Estado. A tradição liberal de até então –ou mesmo desde antes, a partir de Maquiavel–, considerou sempre o Estado como poder exterior, acima dos interesses particulares e, em última análise, indispensável à vida social, fosse para a resolução de conflitos entre os homens, portadores de uma suposta “natureza má” (Maquiavel), fosse para a garantia de direitos ditos “naturais”, como o de propriedade (Locke), fosse ainda em nome da vontade geral e do desenvolvimento pleno dos homens em relação ao seu estado de natureza (Rousseau) ou, por fim, como representação máxima do desenvolvimento alcançado pelo “Espírito”, grau maior da liberdade atingida pela humanidade (Hegel).
  
Marx e Engels romperão com esta tradição e afirmarão categoricamente que o Estado é produto ineliminável da sociedade de classes, produto das entranhas deste conflito, um Estado de classe. Negavam assim, portanto, a universalidade que Hegel lhe atribuía e, sobretudo, o caráter de mediação isenta que os liberais em peso lhe conferiram.
 
A despeito disso, tornou-se lugar comum mais recentemente atribuir aos pensadores alemães concepções estreitas de Estado e Revolução, respectivamente nada mais do que um “comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como um todo” e tomada súbita e violenta do Estado supostamente entendido como mero aparelho. Teria cabido, então, a Gramsci a acurada percepção da “ampliação” do Estado e a consequente “atualização”, por assim dizer, do conceito de revolução. Evidentemente não podemos concordar inteiramente com tal perspectiva. A “ampliação” conceitual de fato promovida por Gramsci não está na relação direta da suposta estreiteza de Marx e Engels. A contribuição do pensador italiano, diga-se de passagem, quando deturpada, tem sugerido a abdicação da Revolução pela conquista lenta e gradual de uma hegemonia esvaziada do seu conteúdo e que tem servido de elogio às regras do jogo político da burguesia. No entanto, o grande mérito do conceito gramsciano de “Estado integral” é mostrar exatamente o inverso: de um dado momento do desenvolvimento do Estado moderno em diante, a luta anticapitalista se tornara mais difícil justamente porque o poder burguês deixara de se basear apenas, ou em maior medida, na coerção. O poder de dominação da burguesia se tornara sobejamente mais “integral” do que até então fora e, portanto, precisaria ser combatido à altura. Eis o importante alerta que Gramsci nos faz. Supomos, assim,que as muitas imprecisões, equívocos e oportunismos políticos que teem sido cometidos em nome de Gramsci nas últimas décadas e, claro, à revelia de sua obra e contra a sua história, teem tido sua fonte constante e incessante nessa espécie de “mito fundador” da “estreiteza” se Marx e Engels.

Marx, Engels e Gramsci não se prestam às reduções que lhes estão sendo imputadas, acreditamos. Uma apreciação um pouco mais detida sobretudo dos textos escritos por Marx e Engels na virada da década de 1840, torna patente o impacto que a derrota do movimento revolucionário em 1848, na França especialmente, exerceu sobre os dois, dando início a um reexame sistemático do que vinham pensando e escrevendo, juntos ou individualmente. A partir de então, e especialmente após a experiência da “Comuna de Paris”, em 1871, ficou evidenciada para ambos a complexidade do papel do Estado na manutenção da dominação de classes, bem como a necessária sofisticação da luta e inovação das táticas por parte dos trabalhadores, face à nova situação que se apresentava. Senão, vejamos: já em 1851, em seu “As lutas de classe na França de 1848 a 1850”, Marx constrói uma análise cuidadosa dos embates extra e intraclasses, entre burguesia e proletariado, mais flagrantemente expostos após a derrubada da monarquia de Luís Felipe, em fevereiro de 1848, e a posterior subida ao poder de Luís Bonaparte –futuro Napoleão III– no mesmo ano.

Diante das vacilações da pequena burguesia, da fragilidade política do capital industrial, do protagonismo da burguesia financeira e dos vazios de poder que esta luta entre frações da classe burguesa promovera, Marx consegue captar a relativa autonomização da máquina do Estado em relação às mesmas classes que o disputavam, identificando com clareza mudanças substanciais no que até então concebera. Isto não significou, porém, a negação da condição de classe desse Estado, como apontara no Manifesto, nem tampouco uma mudança de interpretação quanto ao caráter não exterior do Estado em relação à divisão da sociedade em classes. Nos diz Marx: “Ao transformar o seu lugar de morte em lugar do nascimento da república burguesa, o proletariado obrigou-a ao mesmo tempo a manifestar-se na sua forma pura como Estado, cujo objetivo confesso é eternizar a dominação do capital e a escravidão do trabalho.”

Ainda um pouco antes, se quisermos nos remeter a uma obra do jovem Marx, poderemos identificar o momento primeiro em que Marx aponta este caráter não exterior. Em “Crítica à filosofia do direito de Hegel”, de 1843, contrariando o autor de “Fenomenologia do Espírito” (1807), afirma que o Estado, este sim, era o predicado da sociedade civil, e não o contrário. Tal perspectiva apontava para a necessidade de compreender a sociedade civil e somente assim chegar à compreensão do Estado e das contradições que o caracterizavam. Em 1852, dando prosseguimento à apreciação do agitado meado de século francês, em seu “18 brumário de Luís Bonaparte”, afirmou com todas as letras o pensador alemão: “Todas as revoluções aperfeiçoaram essa máquina, em vez de a destruir. Os partidos que lutaram alternadamente pela dominação, consideravam a tomada de posse desse imenso edifício do Estado como a presa principal do vencedor.” Como se vê, esta última afirmação talvez bastasse para dirimir as dúvidas sobre o verdadeiro alcance das concepções de Marx sobre o Estado. Embora o nomine como “máquina” –o que poderia sugerir uma compreensão restrita–, reconhece suficientemente a complexidade que o envolve para não apostar apenas em simples golpes de força.

Dito de outro modo: se constantemente, como fica elucidado no texto, as frações da classe burguesa em disputa se viram frustradas nos seus objetivos de dominação acreditando terem apanhado o lobo quando em verdade estavam se apossando apenas de sua pele, é, no mínimo, de se supor que o autor de “O Capital” estivesse considerando este alvo de cobiça da burguesia como algo muito além de um simples “comitê executivo”. Mas se no último trecho citado a análise recai sobre a burguesia, exclusivamente, tomemos uma outra passagem em que Marx repete, em essência, a mesma avaliação a partir da perspectiva do proletariado. E note-se que agora o contexto de análise é a Comuna de Paris, experiência exitosa ainda que efêmera, que permitiu conferir, num grau de concretude do real nunca antes experimentado pelos trabalhadores, a quem o Estado serve e por que ele precisa ser destruído pelo movimento revolucionário. Sentencia Marx: “a classe operária não pode apossar-se simplesmente da maquinaria de Estado já pronta e fazê-la funcionar para os seus próprios objetivos”. Em suma, para Marx, e também para Engels, como veremos, o Estado é produto de relações sociais de dominação entre classes antagônicas. E dessa forma, a sua tomada súbita, violenta, embora em dado momento da luta revolucionária também faça parte do script, não pode representar, isoladamente, o fim das relações sociais de dominação que e o engendraram. Ato contínuo, embutida nesta concepção de Estado está a noção de revolução também como algo muito além da simples tomada do aparelho de Estado, pura e simplesmente. Marx e Engels nunca tiveram dúvida de que o melhor destino para o Estado, para o projeto comunista, era o lixo da História e, com ele, em paralelo, o consequente desaparecimento da sociedade de classes.

Este, inclusive, foi o cerne do encarniçado debate entre Marx e Bakunin na “I Internacional dos Trabalhadores”. Marx, ciente do imenso desafio, defendia a necessidade de uma transição, onde o poder concentrado nas mãos dos trabalhadores (Ditadura do Proletariado), teria a tarefa de desmontar os pilares de sustentação da sociedade de classes, anulando, assim, a razão de ser do Estado. Bakunin, ao contrário, crítico ferrenho de toda a forma de autoridade, propunha a extinção imediata do Estado. Para o primeiro, a extinção do Estado, por ser processual, figuraria como último ato da revolução. Para o outro, se constituía no ato de abertura do processo revolucionário. Embora reconheçamos a ausência aqui da voz de Bakunin a se defender, vale a citação de Marx, bastante ilustrativa e profícua para este debate, onde ele narra, com a ironia habitual, o desdobramento fatídico do “episódio de Lyon”, em 1870, quando os trabalhadores –dos quais um dos principais líderes era o mesmo Bakunin– se insurgiram e tomaram a prefeitura da cidade, tal como fariam um ano mais tarde os communards de Paris.

Bakunin instalou-se lá [na prefeitura da cidade]; então veio o momento crítico, o momento aguardado por muitos anos, quando Bakunin pôde levar a cabo o mais revolucionário ato que o mundo jamais vira –ele decretoua “Abolição do Estado”. Mas o Estado, na forma e natureza de dois camaradas da Guarda Nacional burguesa, deu uma geral na prefeitura e botou Bakunin para correr de volta para Genebra. Se formos em busca de Engels, veremos também o quão profundamente improcedente é a atribuição a este pensador de uma concepção restrita dos conceitos de Estado e Revolução, assim como um lugar excessivamente à sombra de Marx. Em “O Anti-Duhring” (1877), em ”A origem da família, da propriedade privada e do Estado” (1884) e ainda numa série de cartas, prefácios e posfácios às reedições das obras de Marx, sobretudo após a morte deste, Engels deixa claramente registrado o seu entendimento sobre o tema. Assim como Marx, Engels percebe uma “certa independência momentânea” do Estado em períodos de equilíbrio da luta de classes. Tal como o seu conterrâneo e parceiro intelectual, refuta as interpretações que apontam a origem do Estado como fruto de um processo exterior às classes, isento de seus conflitos. Considera, ainda, na medida da imensa tarefa emancipatória reservada à classe trabalhadora, a extrema complexidade da luta contra o Estado e a sociedade de classes na modernidade, que deve se materializar na organização da classe revolucionária e na definição acertada das estratégias de sua luta revolucionária. Para este pensador, portanto. O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro

(...). É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento (...). Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes, não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-la dentro dos limites da ‘ordem’. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado. O caráter de classe do Estado, se nesse trecho ainda não aparece inteiramente explicitado, embora o conflito de classes que lhe dá origem se faça presente, revela-se na sequência, ainda na mesma obra. Vejamos: Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida. Engels avança ainda mais na compreensão da maior complexidade do Estado –e, por consequência, da luta que caberia aos trabalhadores por uma sociedade sem classes. De todos os textos que atestam este reexame conjuntural e uma consequente revisão das estratégias, talvez o mais célebre seja a “Introdução” à segunda edição alemã do texto de Marx.

As lutas de classe na França de 1848 a 1850, escrito em 1895, cinco meses antes de sua morte. Nele, a despeito das conhecidas manipulações que sofreu, reforça algumas conclusões a que Marx também chegara e antecipa outras que mais tarde seriam apropriadas e ampliadas por Lênin e Gramsci, por exemplo, como a necessidade de uma combinação entre formas “legais” e “ilegais” de luta e a compreensão do embate contra a burguesia e o seu Estado como um processo gradual, mais estratégico que explosivo, de ocupação de espaços no sentido do acúmulo de forças por parte dos trabalhadores.