terça-feira, 25 de outubro de 2011

Os vidros da úlcera


O professor Jorge Vital de Brito Moreira, cujo resumo de currículo está na coluna à direita, nos enviou este conto:

Passou a noite dando voltas na cama incapaz de dormir. Levantou-se, atravessou o quarto e entrou no banheiro. Viu o espelho, aproximou-se e observou as olheiras que marcavam seu rosto esquálido e cansado. Súbito, estendeu a mão, pegou o sabonete e atirou no espelho. Os pedaços do vidro quebrado refletia a raiva que crescia no seu coração.
Enquanto limpava o sangue que corria do corte no braço, lembrava do mal estar que passou no dia anterior quando o patrão lhe chamou ao escritório, fechou a porta e lhe disse:
- John, a partir de amanhã você e os outros operários vão ter de trabalhar um pouco mais porque vou ter de aumentar a jornada de trabalho por mais uma hora. A crise econômica, você sabe, me obriga a fazer isso. Assim, eu preciso que você como supervisor desta firma, informe aos outros da novidade.
- Patrão! – disse John- no mês passado, nós fomos forçados a engolir a sua imposição de aumentar a jornada diária em meia hora de trabalho sem recompensa salarial.
- Eu sei... Eu sei. Eu sinto muito John mas sou obrigado a fazer isso contra a minha vontade para não perder mais dinheiro nesta crise.
- Perder dinheiro! A sua companhia está ganhando mais dinheiro nesta crise que antes dela...
Abriu a porta do escritório e antes de sair, disse:
- Desta vez não podemos aceitar que você queira aumentar os seus lucros sem aumentar o nosso salário. Chega de super-exploração. Desta vez, supervisor ou não, me recuso a informar-lhes desta nova barbaridade. Desta vez, você mesmo vai ter que comunicar.
O patrão não gostou da sua resposta, ficou zangado e ameaçou:
- Tem muita gente lá fora desempregada; e você bem sabe que eles venderiam a própria mãe para tomar o seu lugar nesta fabrica. Por consideração aos seus 20 anos de serviço na companhia e por ser seu amigo, vou tratar de esquecer o que você me disse; porém lhe aconselho a pensar duas vezes antes de se negar a obedecer as minhas ordens... Eu só espero que você não faça a besteira de voltar a cometer tamanha estupidez.
Ele não quis ouvir mais nada. Bateu a porta do escritório, saiu pelo corredor e entrou na oficina para supervisionar os companheiros que lutavam contra o couro, os pregos, os novelos de linha e as máquinas de costurar sapatos.
Parou de supervisionar e sentou-se na cadeira para aliviar as dores que lhe comiam o estomago. Pouco a pouco tomou consciência de que seu sofrimento era infinitamente maior que a úlcera que lhe consumia as tripas. Desejou ter a coragem de um verdadeiro líder para poder comandar os amigos trabalhadores a tocar fogo nesta maldita fábrica. Não só nesta, mas em todas as fábricas como aquela....
Ele ainda não podia acreditar que tenha se entregado ao impulso para dizer as verdades que disse ao patrão. Era inacreditável que tivesse tanta valentia e coragem para desobedecer-lhe e o chamar de mentiroso....
Terminava de colocar o bandaid no corte do braço quando um som de telefone interrompeu o fluxo das lembranças. Saiu do banheiro e foi atender. Reconheceu a voz grossa que do outro lado dizia:
- Escute John, sou eu. Estou telefonando para me desculpar pelas ameaças que lhe fiz. Ontem mesmo me dei conta do meu erro e lhe procurei para me desculpar, mas você já tinha ido embora. Vamos esquecer o que eu disse ontem e volte pro seu trabalho.
John, surpreso mas ainda agitado, disse:
- Patrão! como sou uma pessoa amiga do ser humano posso esquecer e perdoar as suas ameaças de ontem mas como um sujeito...
O Patrão cortou sua fala dizendo:
- John, desejo sinceramente que você não fique zangado. Esqueça a nossa briga e volte pra trabalhar na fábrica sem deixar de ser meu amigo.
John não lhe fez caso e continuou dizendo:
- ...Mas como um sujeito membro da classe trabalhadora eu nunca vou esquecer ou perdoar a sua exploração e a sua dominação. Não, hoje eu não vou trabalhar na fábrica; hoje vou para o centro da cidade para apoiar o movimento contra o capitalismo.
O Patrão ainda insistiu:
- Não fique ressentido homem. Volte para o seu trabalho e conversaremos como amigos. Vamos rir juntos da vida e tratar de ser felizes novamente...
John, agora sem medo, replicou:
- Patrão, não estou ressentido nem acredito que vou ser feliz trabalhando para você. Cada dia que passa estou mais consciente de quem você é e do que você representa. Finalmente posso ver agora o que você foi, o que você é, e será para mim: meu maior inimigo, meu opressor. Não pode haver felicidade para os trabalhadores enquanto a sua classe continuar existindo...
John concluiu o diálogo com o patrão afirmando:
- Mas algum dia, tomara que seja em breve, eu, nós, da classe trabalhadora, não vamos lhe perdoar; nós vamos tomar o poder e vamos acabar com a classe que tem cometido tanta injustiça contra a nossa existência. Só depois de enterrar a sua maldita classe, seremos livres pra construir a justiça social, a autêntica amizade e a verdadeira felicidade.
Sentindo-se revitalizado por ter falado a sua verdade; a verdade da luta de classes, John Shoemaker desligou o telefone e foi preparar-se para unir-se com os companheiros para ocupar Wall Street.

3 comentários:

André Setaro disse...

Não se contentando em apenas dar aulas exemplares e ser um analista perfuratriz das mazelas provocadas pelo capitalismo, o Professor Jorge Moreira também tem o talento de fazer ficção com os assuntos que lhe são afligentes. O que foi lido hoje, no blog, mostra a sua argúcia na observação do conflito humano e da oscilação da vida dentro de um contexto nada abonador.

Jonga Olivieri disse...

Aliás, desde o seu livro "Memorial da Ilha", contos são um forte do Professor Moreira.

Joelma disse...

Gostei. Um conto bem presente e atual.