domingo, 22 de junho de 2014

Pensatas de domingo




O ciúme e o bolero como gênero musical na realidade sócio-histórica.


Jorge Vital de Brito Moreira

Falando sobre a crítica cultural, o cineasta Glauber Rocha afirma: “Necessitaríamos algumas considerações sobre características formais’ e ‘linguagem cinematográfica’. Isso se faz indispensável por não entendermos como mistério e sim esclarecimento; somos partidários da crítica didática.”
O assunto é música. Este texto aspira realizar uma breve análise dos usos do gênero musical para expressar simbolicamente os sentimentos de amor e/ou desamor no relacionamento entre indivíduos. O texto procura enfatizar, especificamente, os três modos diferentes de entender e expressar culturalmente os sentimentos de ciúme entre pessoas enamoradas e destacar algumas relações ideológicas entre os gêneros musicais e a dominação emocional, ideológica, social e politica. Para tanto, tomaremos como amostra, o exemplo de três músicas mexicanas amplamente reconhecidas, intituladas “O preso número 9”, “Sabrá Dios” e “No me pratiques más”.
            A música “El preso número 9” pertence ao gênero mexicano ranchera e foi composta num ritmo ternário (3/4) pelo compositor Roberto Cantoral (autor dos famosos boleros “El Reloj” e “La Barca”); a música “Sabrá Dios” pertence ao gênero músical bolero e foi composta pelo extraordinário Alvaro Carrillo (autor dos destacados boleros “Sabor a mí”, “Um minuto de amor”); a música “No me pratiques más”  pertence ao gênero bolero e foi composta por Vicente Garrido, considerado o pai do bolero mexicano moderno.
Acredito que é necessário informar aos jovens leitores brasileiros que a música ranchera (a que pertence “O preso numero 9”) é um gênero da música mexicana tradicional proveniente do meio rural. Tem sido considerada como reação ao gosto da classe social alta e para muitos tem se transformado num símbolo da nacionalidade mexicana. 
Também devo informar que o bolero (1) (a que pertencem as músicas “Sabrá Dios” e “No me platiques más”) tem sido descrito como um gênero musical que catalisa o romanticismo latinoamericano e que é utilizado para expressar predominantemente o amor e/ou o desamor no relacionamento entre indivíduos; o bolero também serve para expressar outros sentimentos relacionados tais como: o ciúme, a inveja, o rompimento amoroso, a ansiedade, a angustia, o despeito. Historicamente, o bolero é um ritmo musical de origem cubana que tornou-se mais conhecido como o rotulo “a canção romântica mexicana” que tem desenvolvido, ao longo da sua historia, temas românticos num ritmo lento dentro do compasso quaternário 4/4 ou binário 2/4. No decorrer do século XX, as melodias, as harmonias, o ritmo e as letras dos boleros se expandiram desde Cuba e México por quase toda América Central, América do Sul e pelo Brasil (2). 
Como se pode observar na letra da ranchera “El preso número 9” (3), o protagonista da história é um camponês ciumento (4) que matou a sua mulher e ao seu melhor amigo devido a traição amorosa. O camponês, aprisionado na prisão local, está a ponto de ser fuzilado pelo crime que cometeu. Antes da execução do ato final, o camponês diante de um padre católico, afirma veementemente que não se arrepende e que os voltaria a matar se os encontra na eternidade de uma outra vida. Ele diz ao seu ao seu confessor:.. “Los maté sí señor, Y si vuelvo a nacer. Yo los vuelvo a matar”.  (Eu lhes maté sim senhor, e se volto a nascer, eu volto a matar-lhes). E no final da ranchera diz: Padre no me arrepiento ni me da miedo la eternidad... Voy a seguir sus pasos voy a buscarlos al más allá.
Como se pode observar no início da letra do bolero “Sabrá Dios “(5), o protagonista da história, um individuo ciumento, se encontra na dúvida se a mulher lhe está sendo fiel ou se está lhe enganando, mas no final da letra ele admite que ele pode estar louco duvidando da mulher, criando uma mentira para justificar os seus ciúmes y que vai lutar honradamente para tirar os ciúmes do seu coração. “Y debo estar loco para atormentarme sin haber razón pero voy a luchar hasta arrancar esta ingrata mentira de mi corazón.” (E devo estar louco para me atormentar sem haver razão mas eu vou lutar até arrancar esta ingrata mentira do meu coração...).
Como se puede observar no inicio da letra do bolero “No me platiques más” (6), o protagonista da história, um sujeito ciumento, pede a mulher amada, que já não lhe conte o seu passado amoroso, pois escutá-la representa um grande sofrimento para ele No me platiques más lo que debió pasar antes de conocernos, sé que has tenido horas felices aun sin estar comigo.” (Já não me conte o que deve ter passado antes de nos conhecermos, sei que você teve horas felizes mesmo sem estar comigo). E no final da letra do bolero, para obter uma certa tranquilidade, o sujeito pede à mulher que lhe permita imaginar que o passado não existe  e que os dois nasceram no mesmo momento em que se conheceram (“déjame imaginar que no existe el pasado y que nacimos el mismo instante en que nos conocimos”).
            Se colocamos as analises das três músicas acima numa dimensão diacrónica, poderemos admitir que elas sugerem  três diferentes momentos do desenvolvimento históricos das sociedades latino-americanas em geral e da sociedade mexicana em particular. Dentro de uma perspectiva sócio histórica os diferentes momentos do ciúme nas músicas mexicanas estariam relacionados com a  transformação das sociedades tradicionais baseadas na agricultura para sociedades modernas baseadas na produção industrial e de serviços.
            E se colocamos as analises das três músicas acima numa dimensão sincrônica poderíamos também admitir que elas sugerem três tipos de mentalidades que coexistem simultaneamente no mesmo espaço-tempo da produção cultural das sociedades latinoamericanas como nos ensinou a estética do realismo mágico ou do realismo fantástico.
Mas dentro da relação entre o gênero bolero e a realidade histórica e social (assim como nas relações  entre produção cultural-artística e a  realidade histórica-social) também se poderia sugerir  que o momento culminante do bolero (a denominada «era dourada») coincide com o período das ditaduras militares nos anos trinta, quarenta e cinquenta na América Latina. Assim, no plano do poder politico,  o sucesso do bolero serviu aos interesses de estes regímes militares, já que promovia certa forma alienação romântica  num público que queria permanecer à margem das questões políticas.
Embora o bolero (e outros gêneros de música, literatura e cinema) ainda possam ser usados como veículos para a alienação social e politica do público consumidor, podemos constatar que o futebol substituiu o bolero durante o período das ditaduras militares da segunda metade do século XX. Neste período, o futebol foi uma das formas mais utilizadas pelos regimes militares para promover alienação politica e social na população, como se pode verificar claramente com o uso que o ditador Garrastazu Médici fez da vitória da seleção brasileira (e do “rei” Pelé) na Copa do Mundo de 1970, no México.
Atualmente, o futebol, continua sendo o instrumento esportivo preferido pelo poder politico para a alienação (o pão e o circo) emocional e social dos milhões de espectadores da população mundial. E a infame realização sócio-econômico-politica e cultural da Copa do Mundo no Brasil (o país do futebol) foi planejado  para enaltecer os governos populistas de Lula da Silva e Dilma Rousseff; como uma das formas mais eficientes para justificar e legitimar o sistema de exploração e dominação da população sob o capitalismo.  
Assim, o bolero não morreu, ainda continua tendo forte influencia no século XXI: o bolero continua a produzir e reproduzir o imaginário social dos mexicanos (e de outros povos latinoamericanos) repercutindo sobre as emoções de milhões de consumidores como podemos comprovar através da permanência do alto número de gravações e regravações de novos e velhos boleros por jovens artistas como Luis Miguel, Tania Libertad, José Luís Guerra e muitos outros.
Em resumo, enquanto o gênero bolero continuar sua existência, existirá sempre a tendência de utiliza-lo como instrumento ideológico para adormecer a consciência individual sobre a realidade histórica dos conflitos sócio-econômico-culturais e da necessidade do questionamento e participação politica.

1) No âmbito músical, a palavra bolero tem diferentes significações. Em geral refere-se a três realidades: 1) o bolero é uma dança de ritmo ternário (3/4) em tempo moderado, que é dançada por um individuo, um casal ou vários casais; 2) o bolero é uma obra musical (sinfônica) de um único movimento escrita para orquestra por Maurice Ravel.
2) Em muitos países desta área, podemos encontrar grandes compositores e intérpretes representativos do gênero (e subgênero)  bolero tais como, por exemplo, Cesar Portillo de la Luz e Beni Moré em Cuba; Agustin Lara, Alvaro Carrillo e Trio Los Panchos, no México; Lucho Gatica, no Chile; Gregorio Barrios, no Uruguai); e Trio Irakitan e Altemar Dutra no Brasil, entre outros. Nesse plano,  o bolero Besáme mucho tem sido um dos mais cantados, interpretados e gravados em todo mundo. No Brasil, foi interpretado e gravado por João Gilberto, o  criador do novo gênero musical brasileiro conhecido como “a bossa nova”.
O bolero também se desenvolveu na área da interpretação e instrumentação incluindo desde os iniciais instrumentos de cordas (requinto, violão, etc.) a posterior instrumentação de grandes orquestras com a inclusão de diversos instrumentos de percussão e instrumentos de sopro. Apesar de que o bolero sofreu uma notável queda de popularidade desde o final dos anos 50 com a penetração no mercado musical de novos gêneros musicais tais como o rock e nomes como Elvis Presley e os Beatles, o bolero não morreu, continua sendo prestigiado em composições recentes de compositores mexicanos que se dedicam ao gênero e desde os anos 80 do século passado, a bachata, um dos subgêneros do bolero, tem obtido atualmente grande popularidade através das composições e performances de Juan Luis Guerra de Republica Dominicana.

3 ) El preso número 9

Al preso número nueve ya lo van a confesar.
Está rezando en la celda con el cura del penal.
Porque antes de amanecer la vida le han de quitar.
Porque mató a su mujer y a un amigo desleal.

Dice así: al confesor
Los maté sí señor
Y si vuelvo a nacer.
Yo los vuelvo a matar.

Padre no me arrepiento ni me da miedo la eternidad.
Yo sé que allá en el cielo el ser supremo me ha de juzgar.
Voy a seguir sus pasos voy a buscarlos al más allá.

El preso número nueve era hombre muy cabal.
Iba en la noche del duelo muy contento a su jacal.
Pero al mirar a su amor en brazos de su rival.
Sintió en su pecho un dolor y no se pudo aguantar.

Al sonar el clarín
Se formó el pelotón.
Y rumbo al paredón.
Se oyó al preso decir.

Padre no me arrepiento ni me da miedo la eternidad.
Yo sé que allá en el cielo el ser supremo me ha de juzgar.
Voy a seguir sus pasos voy a buscarlos al más allá.

4) Por falta de tempo não consideraremos o tema do ciúme dentro da hipótese social da luta de classes de Fredric Engels, ou seja, a de explicar o ciúme como uma manifestação emocional resultante da possessão, do domínio e do controle da propriedade privada da terra, dos meios de produção e de vida, nas origens da família e do estado na nossa sociedade.  Tampouco teremos tempo para considerar o tema do ciúme dentro da hipótese dual de Freud conformado pelo ciúme normal e o ciúme paranoico aquele que é resultante  da projeção do desejo homossexual pelo outro.

5) Sabrá Dios...

Sabrá dios...
Si tu me quieres o me engañas.
Como no adivino, seguiré pensando que me quieres,
solamente a mi.

No tengo derecho en realidad
para dudar de ti y para no vivir feliz,
pero yo presiento
que no estas conmigo aunque estas aquí.

 Sabrá Dios...
uno, uno no sabe nunca nada
moriría de pena,
si este amor fracasara jamás
por mi equivocación.

Y debo estar loco
para atormentarme si una razón
pero voy a luchar hasta arrancarme
esta ingrata mentira de mi corazón.

Y debo estar loco
para atormentarme sin una razón
pero voy a voy a luchar hasta arrancarme
esta ingrata mentira de mi corazón.

6) No me platiques más

Vicente Garrido

No me platiques más
lo que debió pasar
antes de conocernos,
sé que has tenido horas felices
aun sin estar conmigo.

No quiero ya saber
que pudo suceder
en todos estos años
que tú has vivido con otras gentes
lejos de mi cariño.

Te quiero tanto que me encelo
hasta de lo que pudo ser
y me figuro que por eso
es que yo vivo tan intranquilo.

No me platiques ya
déjame imaginar
que no existe el pasado
y que nacimos el mismo instante
en que nos conocimos.

No quiero ya saber
que pudo suceder
en todos estos años
que tú has vivido con otras gentes
lejos de mi cariño.

Te quiero tanto que me encelo
hasta de lo que pudo ser
y me figuro que por eso
es que yo vivo tan intranquilo.

No me platiques ya
déjame imaginar
que no existe el pasado
y que nacimos el mismo instante
en que nos conocimos.

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