domingo, 19 de agosto de 2018

Pensatas de Domingo. O filme BlacKkKlansman e a política de identidade nos EUA


Jorge Vital de Brito Moreira nos envia esta profunda análise crítica do recente filme de Spike Lee e, por extensão da sociedade estadunidense:

Inquietos diante da possibilidade do filme BlacKkKlansman ser retirado de exibição na sala de um cinema de Appleton (a cidade onde vivemos em Wisconsin, nos EUA) decidimos, eu e minha mulher, ir a assistir o mais rápido possível (no dia seguinte à sua estreia) ao novo  filme do cineasta afroamericano Spike Lee.
 Em geral, a nossa inquietação tem se justificado com base em duas considerações ético-politicas: 1) Os filmes de Spike Lee (junto aos de Oliver Stone, Michel Moore e outros poucos)  merecem e devem ser vistos por grande número de espectadores pois eles  tendem a ajudar na construção de uma narrativa ideológica alternativa onde se questiona e se tenta invalidar a narrativa ideológico-política do estado capitalista imperialista estadunidense que é hegemônica e predominante tanto dentro como fora dos EUA; 2) Os proprietários capitalistas das salas de cinema dos EUA (os exibidores de filmes)  não apenas procuram ganhar muito dinheiro com filmes comerciais massivos, mas que também procuram reprimir os filmes que questionam a  narrativa ideológico-politica dominante.
Tenho assistido alguns filmes importantes de Spike Lee e em todos eles se apresentam alguns temas centrais tais como o racismo, a religião e o menosprezo da raça negra como fundamentos ideológicos do ódio e da violência contra o negro na sociedade estadunidense. Todos estes temas estão relacionados (nos filmes de Lee) tanto à questão da identidade afroamericana na sociedade branca como às contribuições da população negra (sobretudo na produção cultural, na música e na dança) na construção da modernidade/posmodernidade dos Estados Unidos da América. Dos seus filmes, Do the right Thing (1989, Malcolm X (1992) e Red Hook Summer (2012) são os meus favoritos.
O novo filme, BlacKkKlansman pertence ao gênero comédia dramática policial e foi coescrito, coproduzido e dirigido por Spike Lee em 2018. A narrativa cinematográfica está baseada no livro autobiográfico Black Klansman, do ex-policial detetive Ron Stallworth. O filme é estrelado por John David Washington (filho do ator Denzel Washington), Adam Driver, Laura Harrier e Topher Grace.
BlacKkKlansman estreou em 14 de maio de 2018 no Festival de Cannes, onde competiu pela Palma de Ouro e ganhou o Grande premio (Gran Prix). Foi lançado nos cinemas dos Estados Unidos em 10 de agosto de 2018 (no aniversário de um ano da manifestação da supremacia branca na cidade de Charlottesville, em 2017).
O filme está situado no Colorado, nos anos 70 e o enredo se desenvolve em torno da história real do detetive afroamericano Ron Stallworth (John David Washington) que consegue se infiltrar na organização criminosa e racista conhecida como Ku Klux Klan. Ron Stallworth também consegue se infiltrar numa manifestação de protesto de um grupo de estudantes afroamericanos de uma  universidade onde conhece e estabelece uma relação amorosa com Patrice Dumas (Laura Harrier), a principal dirigente do grupo estudantil. Durante seu trabalho como investigador, Stallworth desenvolve uma relação de amizade com Flip Zimmerman (Adam Driver), um policial judeu, branco, que funcionará como seu duplo no contato pessoal e direto com os membros do Ku Klux Klan.
Spike Lee utiliza competentemente o humorismo, a música, a fotografia, o vestuário e as excelentes atuações dos atores (além de diversos elementos significativos do contexto e da ideologia dos anos 60-70) para produzir uma recreação da época bastante funcional à forma e ao estilo de BlacKkKlansman. Spike Lee também os aproveita para fazer uma notória aproximação dos temas políticos dos anos 70 (Direitos Civis, Feminismo, Black Power) junto aos temas políticos recentes e panfletários do período governado pela atual administração supremacista, racista, chauvinista, militarista e antiimigrante do presidente Donald Trump. E nesta aproximação, ficamos nos sentindo defraudados pela ausência, no enredo do filme, de representantes da população latinoamericana tão crucificada pela administração do atual presidente dos EUA.
Spike Lee também aproveita eficientemente algumas sequências de cenas de dois filmes clássicos estadunidenses E o vento levou (1) e O Nascimento de uma nação(2) para denunciar a ideologia racista ligada à Ku Klux Klan, no interior do discurso cinematográfico que tem sido hegemônico na historia do cinema dos Estados Unidos da América.
Apesar dos momentos panfletários que se encontram no filme, ainda acredito  na importância significativa da utilização que faz Spike Lee dos violentos acontecimentos de Charlottesville, Virginia, nos minutos finais de BlacKkKlansman, para denunciar a ideologia e a prática racista no país. Em todo caso se tivesse que diminuir a duração do filme, preferiria cortar algumas sequências de ações (justificadas no enredo do cinema clássico) mas que me parecem excessivas para um espectador de um gênero de filme contemporâneo.
Mesmo reconhecendo a validez da sua boa direção, o filme de Spike Lee, fica exposto a uma série de importantes críticas socioeconômicas, politicas e culturais devido às limitações dos seus pressupostos ideológicos, toda vez que acaba reduzindo a articulação da complexa relação histórica entre a luta de classes social, a luta racial, a luta de gênero, e a luta nacional à mera ideologia da “politica de identidade” dentro da sociedade político partidária estadunidense.
Esta “política de identidade” (como já tivemos a oportunidade de testemunhar) durante os governos democratas dos presidentes Bill Clinton (3) e Barack Obama (4), tem estado quebrando a solidariedade da classe trabalhadora estadunidense, levando as pessoas (em sua maioria vítimas do sistema de dominação e exploração capitalista) a que se centralizem na identidade étnica, racial ou sexual, deixando a luta de classes socioeconômica no esquecimento e alienação. Acaba sendo uma forma contemporânea da política do “divide y vencerás” que tem sido implementada pela classe dominante capitalista (uma minoria socioeconomicamente rica composta de menos de 1% da população mundial) para continuar enriquecendo à custa da exploração da pobreza dos trabalhadores (brancos, pretos, indígenas, latinos e imigrantes) dos quatro cantos do planeta Terra.

NOTAS
1) O filme de Spike Lee começa apresentando o set do filme estadunidense Gone with the Wind, mostrando centenas de soldados mortos durante a Guerra Civil Estadunidense. Logo aparece a "explicação científica" da superioridade racial branca realizada pelo Dr. Kennebrew Beaureguard (Alec Baldwin).

2) O filme de Spike Lee apresenta um discurso do líder veterano Jerome Turner (interpretado por Harry Belafonte), no qual ele detalha a maneira pela qual a “Ku Klu Klan”  ressurgiu após a estreia do repugnante clássico racista "O Nascimento de uma Nação". "(1915) de David W. Griffith.

3) Os leitores podem obter mais informação  sobre a relação entre a política de identidade de Bill e Hillary Clinton e sua aliança com os capitalistas de Wall Street lendo a excelente entrevista critica da escritora Diana Johnstone no blog Rebelion.orgUna razón fundamental para que se diese la alianza de Wall Street con los Clinton es que los autoproclamados ‘nuevos demócratas’ encabezados por Bill Clinton lograron cambiar la ideología del Partido Demócrata de la igualdad social a la igualdad de oportunidades. En vez de luchar por las políticas tradicionales del New Deal que tenían como objetivo incrementar los estándares de vida de la mayoría, los Clinton luchan por los derechos de las mujeres y las minorías a ‘tener éxito’ individualmente, a ‘romper techos de cristal’, avanzar en sus carreras y enriquecerse. Esta ‘política de la identidad’ quebró la solidaridad de la clase trabajadora haciendo que la gente se centrase en la identidad étnica, racial o sexual.”
A entrevista de Diana Johnstone intitulada “Hillary Clinton es el principal motivo de preocupación” pode ser encontrada no link abaixo:

4) De acordo ao levantamento do sociólogo e  professor James Petras sobre a política interna do ex-presidente afroamericano Barack Obama dentro dos EUA, fica evidente que durante os oito anos de sua presidência, Obama baixou as expectativas de vida de todos os tipos de trabalhadores que ele cortejava e seduzia durante suas campanhas eleitorais, isto é, dos nove entre dez americanos negros que votaram em Obama nas duas campanhas presidenciais. Mas, apesar do apoio maciço dos afroamericanos durante a presidência de Barack Obama, houve um aumento da desigualdade na distribuição de renda entre trabalhadores brancos e negros, houve aumento da violência policial letal contra afroamericanos e multiplicaram-se os ataques paramilitares brancos, incluindo a queimada de igrejas afroamericanas. Os afroamericanos acusados ​​de crimes não violentos relacionados ao uso de drogas (comerciantes e consumidores) foram presos em uma taxa muito mais elevada do que os brancos, enquanto as elites das grandes farmacêuticas (e os médicos que prescrevem drogas para estimular o vício em opiáceos) tinham obtido cada vez mais benefícios com total impunidade no governo Obama. Quanto à política de imigração da administração de Barack Obama, materializou-se entre 2009 e 2015, a expulsão de três milhões de imigrantes dos EUA. De acordo com o registro revelado pelo professor James Petras, Barack Obama tem o maior registro de expulsão de imigrantes na história dos EUA.
Os leitores podem obter mais informação sobre o governo de Barack Obama, consultando o artigo intitulado “Lendo romance policial como realidade politica dos EUA e a realidade politica dos EUA como romance policial: o caso Barack Obama” que foi publicado em portugues pelo blog Novas Pensatas do domingo, 15 de janeiro de 2017 e cujo link é:


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