domingo, 17 de fevereiro de 2019

Pensatas de Domingo


Cinema e Ideologia no filme “Roma”(1): a Colônia, o PRI, o “Massacre de Tlatelolco”,  o “Massacre de Corpus Christi”,  a “Tragedia de Iguala”



Jorge Vital de Brito Moreira



Recentemente assisti ao filme “Roma” (2018) do diretor mexicano Alfonso Cuarón Orozco que ganhou o premio “Leão de Ouro” do Festival de Veneza. Mas o filme não trata da famosa capital da Itália europeia, trata, isto sim, da colônia Roma, um bairro da cidade do México, a capital do país asteca.

O filme “Roma” combina então narrativa e espetáculo com o objetivo de representar a história de uma família de classe média alta da colônia Roma durante os anos 70.

Baseado num memorial dos anos 1970 no México, o filme  relata os acontecimentos centrados na  vida da família de Sofia  (uma senhora da classe média alta) e a de sua empregada domestica conhecida por Cleo. O lar de Sofia é formado pelo marido Antônio, seus quatro filhos pequenos, sua mãe Teresa, uma segunda  empregada, Adela, e um  empregado masculino que também funciona como chofer de um dos  carros da família.

Em geral, gosto da excelente performances dos atores, sobretudo da  atuação de Yalitza Aparicio no papel da empregada Cleo. Também gosto da locação escolhida: da paisagem que é bela e  bem agradável. Gosto da fotografia em branco e negro que é excelente, sobretudo nas panorâmicas e nos planos longos. Gosto também de algumas sequências de cenas tais como a da festa noturna da grande família no campo (sequências que me lembraram as cenas fellinianas do excepcional “A doce vida” de Fellini) que além de muito bem filmadas, funcionam adequadamente, como um dos marcos apropriados, para revelar os elementos inquietantes e insólitos de uma noite em que se celebra a afluência, a ostentação e a abundância da classe branca e rica sobre a sociedade mestiça mexicana.

Apesar do ritmo lento da narrativa cinematográfica  centrada na desinteressante monotonia da família de Sofia, um dos momentos mais interessantes e reveladores do filme “Roma”  aparece quando a senhora Teresa leva a empregada Cleo à uma loja de móveis para comprar um berço do bebê que irá nascer em breve. Nesse dia, enquanto os estudantes protestam nas ruas mexicanas, seus protestos são reprimidos  com os assassinatos  (a tiros de balas) realizados pelo grupo paramilitar “Los Halcones”. Quando um estudante ferido e uma estudante fogem correndo para dentro da loja, os  membros do grupo paramilitar matam ao estudante, enquanto os demais clientes escondem-se aterrorizados na própria loja.

Nesse ponto, um membro atirador do grupo paramilitar aponta sua arma  para Cleo: é Fermín (o mexicano que lhe deixou grávida mas que recusou-se a reconhecer a paternidade desaparecendo rapidamente da sua vida afetiva) que logo depois de reconhecer a Cleo, foge do local junto aos demais assassinos do grupo paramilitar.

Esse momento do filme “Roma” é muito interessante e revelador para mim porque me fez recordar das minhas terríveis experiências como estudante e professor na cidade do México, nas minhas relações sociais e humanas com os mexicanos que viviam nas colônias Roma, Churubusco e na colônia Copilco.

Quando cheguei no México em 1978 para estudar uma maestria em Estudios Latinoamericanos na Universidad Nacional Autónoma de México, meus colegas universitários, me relataram (desde seu ponto de vista de estudantes mexicanos oprimidos, golpeados e traumatizados sistematicamente pela repressão do Estado priista, do PRI, ao movimento estudantil) sobre o que tinha ocorrido durante “O Massacre de Tlatelolco” (2) sob as ordens do presidente  Dias Ordaz na “Plaza de las Tres Culturas” da cidade do México, no dia 2 de outubro de1968. Também relataram o que tinha ocorrido durante “O Massacre de Corpus Christi”, conhecida como “El Halconazo” (3) por ter sido perpetrado pelo grupo paramilitar “Los Halcones” em 10 de junho de 1971, durante o período de governo do presidente Luis Echeverria Alvarez.

Na cidade do México, eu mesmo sofri  em carne própria a repressão do governo do PRI quando, ainda estudante, consegui um emprego na “Facultad de Economia da UNAM” para ensinar Economia Política aos estudantes de licenciatura. Durante este período participei das manifestações estudantis contra a administração da Facultad imposta pela reitoria da UNAM, e fui colocado na cadeia pelos policiais da Secretaria de Gobernación sob a direção do Coronel Espinosa.

Dada a realidade da repressão política e militar que suportamos no México e que continua aprofundando-se cada década que passa, como podemos verificar pela tragédia e desaparecimento dos estudantes de Iguala (4) durante o governo do presidente Peña Nieto, a primeira coisa que me chamou a atenção no filme “Roma”, foi o seu título: Porque intitular o filme “Roma” em vez do seu nome real “colônia Roma”?

Uma possível resposta seria: apesar de que a cidade do México e sua colônia Roma nascerem de um processo de colonização espanhola (católica, branca e racista) que foi estabelecida no México depois da Invasão e Conquista do país pelo genocida Hernan Cortez, a classe dominante (branca, católica e descendente dos colonizadores) continua tratando de apagar da memória do povo oprimido, as marcas da abominável tragédia histórica que fundou a cidade do México. Esta repressão semântica e simbólica do inconsciente político mexicano (5) se estabelece como a tentativa ideológica de esconder politicamente o significado do processo da acumulação originaria de capital no México com o objetivo de escamotear a violenta luta de classes/raciais que se processa historicamente no país asteca e na América Latina.

Assim, o filme é narrado desde o ponto de vista de uma classe social privilegiada ligada a um estrato privilegiado da sociedade mexicana associada ao domínio do Partido Revolucionário Institucional (PRI) e a visão social européia colonizadora. Ou seja o filme fala pelos vencedores da história mexicana moderna: uma narrativa que idealiza a família mexicana de classe alta como  veículo da missão “filantrópica/civilizatória” branca movida pelo desejo continuado de justificar e legitimar os laços da dependência e dominação do povo mestiço mexicano pelo PRI. As representações culturais negativas dos mexicanos de classe baixa (de empregadas domésticas e de mexicanos recrutados pelo governo mexicano priista para ajudar ao aparato repressivo do estado mexicano a oprimir a população de classe baixa) e as representações positivas da “bondade filantrópica” dos seus empregadores contribuem para racionalizar e justificar os custos humanos do empreendimento capitalista do sistema politico mexicano. É neste sentido que não deveríamos esquecer que “Roma” foi disposto no catálogo de filmes pela Netflix (a multinacional distribuidora capitalista de filmes da indústria cultural), que não tem medido os esforços para ganhar dinheiro (lucrar) com este filme mexicano que já conseguiu a nomeação para 10 prêmios “Oscar”; prêmios provenientes da mais poderosa indústria capitalista de cinema do planeta terra: Hollywood.

Devido a todas estes problemas ideológicos que aparecem no filme “Roma” de Alfonso Cuarón, estou plenamente de acordo com a análise do fílósofo Slajov Zizek quando sintetiza e diz que “o filme 'Roma' está sendo aplaudido pelos motivos errados” (6)





1) Roma, MEX/EUA, 2018); Drama; Direção: Alfonso Cuarón;
Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta, Marco Graf, Daniela Demesa, Nancy García García, Verónica García, Andy Cortés, Fernando Grediaga, Jorge Antonio Guerrero, José Manuel Guerrero Mendoza;
Roteiro: Alfonso Cuarón; Duração: 135 min.



2) O Massacre de Tlatelolco (também conhecido como a “Noite de Tlatelolco”  segundo a escritora mexicana Elena Poniatowska) teve lugar durante a tarde e noite de 02 de outubro de 1968 na Praça das Três Culturas, em Tlatelolco, na Cidade do México (apenas dez dias antes do início dos Jogos Olímpicos de 1968, na mesma cidade). Até hoje, o verdadeiro número de mortes permanece incerto: algumas fontes afirmam para mais de mil mortes, outras fontes apontam para um número entre 200 e 300 mortos, enquanto fontes  oficiais do governo indicam 40 mortos e 20 feridos. Além do grande número de pessoas feridas, milhares de prisões foram feitas.



3) O Massacre de Corpus Christi chamado “El Halconazo” (devido à participação de um grupo paramilitar identificado com o nome de Halcones)  se refere aos eventos ocorridos na Cidade do México em 10 de junho de 1971 quando uma manifestação estudantil em apoio aos estudantes de Monterrey foi violentamente reprimida por um grupo paramilitar a serviço do estado mexicano priista. O presidente Luis Echeverría Álvarez rompeu com os acontecimentos, mas nunca esclareceu a situação que sempre foi oficialmente negada. Dos fatos sangrentos, ninguém assumiu a responsabilidade e muito menos foi levado à justiça.



4) O desaparecimento forçado de Iguala (em 2014) foi uma série de episódios de violência que ocorreu durante a noite de 26 de Setembro e na manhã de 27 de Setembro, 2014, na qual a polícia municipal e estadual de Iguala perseguiu e atacou os alunos da Escola normal Rural de Ayotzinapa (a 257 km ao sudeste de Iguala). Neste confronto, jornalistas e civis ficaram feridos. Os eventos deixaram um saldo de pelo menos 9 mortos,  27 feridos e 43 alunos desaparecidos até os atuais dias do ano de 2019.



5) Fredric Jameson.O Inconsciente Político: a Narrativa Como Ato Socialmente Simbólico. (1992).



6) Veja o artigo “Roma esta sendo aplaudido pelos motivos errados” de Slavoj Zizek, no link abaixo:





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