sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Deus e o diabo na Terra que continua em transe



Revi “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1963) na terça feira. E dois dias depois, voltei a assistir “Terra em Transe” (1967), que considero as duas mais importantes e emblemáticas realizações de Glauber Rocha. Não que as outras não tenham o seu valor. “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1968), por exemplo, é uma retomada de “Deus e o diabo...”, enriquecido pelas cores que o cineasta soube explorar com arte e maestria incomuns.
Mas é difícil determinar qual dos dois é o melhor. Sempre considerei “Deus  e o Diabo...” em “primeiríssimo lugar” e de forma imbatível, aquela verdadeira “Ópera de Cordel” que ele compôs com um “Corisco” brechtiano construído no sertão. No entanto, ao vê-los em tão pouco espaço de tempo em excelentes cópias remasterizadas, perfeitas, ficou, não a dúvida, mas a certeza de que ambos são, não apenas importantes, como tambem têm uma interação muito maior do que se possa imaginar.
Glauber, na sua genialidade --ou melhor, Genialidade--, constrói retratos de um Brasil que parou no tempo. Um Brasil que a grande mídia e os “pelegos” do PT (a UDN de tamancos) querem negar, mas está aí na nossa frente. O “quarto mundo” das massas, da corrupção deslavada, do feudalismo, que continua no campo, independente do avanço do capitalismo nas cidades.
Othon Bastos como Corisco
Ainda esta semana foi anunciada de forma “xenobófica” pela burguesia o fato de o país ter ultrapassado a Grã Bretanha e ocupar a sexta colocação entre os PIBs do mundo...  Mas eles se esqueceram de olhar para o outro lado: o da distribuição de renda. No mesmo dia vim a tomar conhecimento que estamos quase em centésimo lugar no quesito “qualidade de vida” entre todos os países do mundo, à frente apenas de alguns miseráveis africanos sub saarianos e aqui na América, do Haiti e outras “republiquetas” congêneres.
Bem, como diria o Bóris Casoy: “Isto é uma vergonha!”
Outrossim, quando assisto “Terra em Transe” parece que estou presenciando a mesma nojeira que rola no “poder” até os nossos dias. Há poucas nuances de diferença. Talvez la ”Santa Madre Iglesia”  tenha perdido um pouco de sua força (até então descomunal), porque o crescimento dos evangélicos foi surpreendente com a consolidação do capitalismo nas cidades. Ou a Oligarquia limita-se aos cantos perdidos do sertão, como em “Deus e o Diabo...”, este uma abordagem do Messianismo e do Cangaço. Mas a realidade é que estão nos dois filmes os elementos que predominam em nosso “kanzer” (1) social e econômico.
     
Glauce Rocha, josé Lewgoy e Jardel Filho
Brilhantes as locações “tropicalistas” e  luxuriantes de “Terra em Transe”, em sua maior parte filmado no “palacete”, então abandonado do Parque Lage ou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. E o grande suporte de atores que lhe dá um certo ar de “superprodução”, a começar por Jardel Filho, José Lewgoy, Glauce Rocha e Paulo Autran. Passando por Danusa Leão, Hugo Carvana e a terminar com a participação em pontas de Paulo Cesar Peréio, outros & outras...
Já em “Deus e o Diabo...”, as presenças de Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães e Othon Bastos, todos excelentes, dão um toque todo especial ao filme.
Tudo isso para nos revelar que Glauber, para além do maravilhoso diretor que foi, revelou-se o “Profeta da Fome” neste país até hoje assolado pela miséria e o Paternalismo político; apesar de se decantar em prosa e verso que há uma nova “classe média” nesta “Eldorado” não oriunda da pequena burguesia. Até existe, é inegável, mas... Essa "terra do sol" continua entre a cruz e a espada num "transe" sem fim!

1. Glauber usou muito essa expressão quando começou sua “doença terminal” ainda em Lisboa.

 Fichas Técnicas:

Deus e o Diabo na Terra do Sol”
Diálogos, roteiro e direção: Glauber Rocha
Elenco: Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Maurício do Valle, Othon Bastos, Lidio Silva, Sonia dos Humildes, João Gama, Antonio Pinto, Roque Santos
Fotografia: Waldemar Lima
Produção: Luiz Augusto Mendes
Música: Heitor Villa-Lobos/Sérgio Ricardo
Fotografia: Waldemar Lima
Figurino: Paulo Gil Soares
Edição: Rafael Justo Valverde
Indicado à Palma de Ouro do festival de Cannes. Festival de Cinema de Mar del Plata, Argentina: Prêmio de Melhor Filme Iberoamericano

“Terra em Transe”
Roteiro e direção: Glauber Rocha
Elenco: Jardel Filho, José Lewgoy, Paulo Autran, Glauce Rocha, Danusa Leão,Hugo Carvana, Telma Reston, Flavio Migliassio
Produção: Zelito Viana, Luiz Carlos Barreto, Cacá Diegues
Música: Sérgio Ricardo}
Fotografia: Luiz Carlos Barreto/Dib Luft/Joaquim Pedro de Andrade
Direção de arte: Paulo Gil Soares
Figurino: Paulo Gil Soares e Clóvis Bornay
Edição: Eduardo Escorel
Prêmio FIPRESCI, no Festival de Cannes; Grand Prix, no Festival de Locarno; Prêmio de Melhor Filme e o Prêmio da Crítica, no Festival de Havana; Prêmios de Melhor Filme, Melhor Ator (José Lewgoy), Melhor Atriz (Glauce Rocha) e uma Menção Honrosa (Luiz Carlos Barreto), no Festival de Juiz de Fora. Prêmios de Melhor Atriz (Glauce Rocha), Melhor Roteiro, Melhor Fotografia e Melhor Edição, no Prêmio Governo do Estado de São Paulo.

10 comentários:

André Setaro disse...

A exibição de "Deus e o diabo na terra do sol" pela primeira vez e para convidados, no cine Ópera, em 1964, segundo conta Arnaldo Jabor em artigo, constituiu-se numa apoteose. Finda a projeção, um silêncio sepulcral de quase 10 minutos, quando alguns estouraram em choro convulsivo. Nunca se tinha visto nada igual no cinema brasileiro.

Glauber Rocha realiza em "Deus e o diabo na terra do sol" um filme-ópera, no sentido eisensteiniano. Sem perder o estilo, o estilo glauberiano, a originalidade, utiliza-se de várias influências absorvidas como cinéfilo compulsivo que era: o western fordiano (na utilização dos grandes espaços do sertão, na morte do coronel, na perseguição ao vaqueiro Manoel com a morte de sua mãe), a tragédia grega (o cego Júlio como fio condutor da história), Buñuel (a morte do beato Sebastião conduzida em planos demorados), a Escadaria de Odessa de Eisenstein (a morte dos beatos por Antonio das Mortes em Monte Santo), Kurosawa (a gestualística de Corisco, a sua morte rodopiando) etc.

O cinema brasileiro sofre pela primeira vez um abalo sísmico na sua estrutura narrativa. "Deus e o diabo na terra do sol" traumatizou duramente toda uma geração de cineastas brasileiros.

Em "Terra em transe", a montagem é mais dinâmica, os cortes mais frequentes. A influência de Orson Welles é patente e notória (vide a "Biografia de um aventureiro", com a narração em 'off' a contradizer o que é mostrado nas imagens). A sequência no pátio do Jardim Botânica tem uma montagem que faz com que os personagens, em constante movimento, passem a impressão de que estão dançando. Filme de 'mise-en-scène', até hoje não superado e visto com estupefação pelo mundo afora. Scorsese já disse várias vezes que é um de seus filmes preferidos.

Jonga Olivieri disse...

Orlando Sena (nosso antigo professor no curso de cinema, lembra?) narra algo muito semelhante sobre a primeira exibição de "Deus e o Diabo..." aí na Bahia, no que ele disse ser o cinema Glória (?), mas creio, já era o Tamoio...
Assisti esta cena no "dvd extra" que tem depoimentos de, nada menos do que Walter Lima Jr... Jose Carlos Avelar e por aí afora, incluindo um longo e excelente de Othon e Yoná.

Joelma disse...

Um 'Ensaio' mesmo sobre a obra de Glauber Rocha.
E deu para que eu conhecesse muito do seu trabalho como diretor.

Jonga Olivieri disse...

Fico feliz com isso Jô!

Anônimo disse...

Uáu, uma verdadeira aula de cinema!

L.P.

Jonga Olivieri disse...

Quem sou eu, Luis?!
Aulas de cinema são com o Professor Setaro!

Nun'Alvares disse...

Eu, cá de Portugal estou a pensar, neste “tarde da madrugada”, o quanto Glauber Rocha foi importante não somente para a Cultura Brasileira, quanto para a cultura Lusófana como um todo.
Sim, o realizador brasileiro foi um génio de nossos tempos. E Portugal pode ficar certo disto, soube tambem abraçar este ícone cultural. Tanto que Glauber cá adoeceu, tendo retornado ao Brasil bem mais tarde.

Jonga Olivieri disse...

Não tenha dúvida de que Glauber faz parte da cultura de língua portuguesa, meu caro Nuno!

Anônimo disse...

Muito boa esta sua postagem!

Ilse

Jonga Olivieri disse...

Obrigado Ilse. E comente mais! Sempre mais!