Raymond Williams (1921-1988) ocupa um lugar ímpar na linhagem do
marxismo ocidental. O principal livro sobre esse movimento – que, apesar de
seus equívocos, mantém-se ainda canônico na recepção brasileira – “Considerações
sobre o marxismo ocidental” [1976], de Perry Anderson (Boitempo, 2004),
ignora-o solenemente. Ele estabelece um recorte que, no terreno da geografia,
além de privilegiar a Itália, a França e a Alemanha, destitui a Inglaterra, e,
no quadro das especialidades acadêmicas, acolhe em sua lista de participantes
apenas filósofos.
Muitos não hesitaram em atribuir a exclusão de Williams (e do
marxismo inglês) a um conflito de gerações, corporificado pela transição no
comando da “New Left Review”. Convém ressaltar, no entanto, que, embora
não sob a forma de uma autocrítica, a reparação não se fez tardar. O comitê
editorial da New Left, integrado por Anthony Barnett, Francis Mulhern e
pelo próprio Perry Anderson, realizou, ao longo do segundo semestre de 1977,
uma bateria de entrevistas com Williams, inicialmente publicadas na revista e
posteriormente reunidas no livro “A política e as letras” (Unesp, 2013).
Segue-se aí um modelo pouco comum de entrevista, na qual se abre
espaço para “a declaração e o argumento de ambos os lados”. Assim, não só
Williams viu-se forçado a se debruçar sobre os fundamentos teóricos de sua
obra, num desafio autoreflexivo ao qual se submeteu de bom grado, como ilumina
as divergências internas do marxismo inglês nos anos 1970. Desnecessário dizer
que se trata ainda da melhor introdução à vida e ao pensamento de Raymond
Williams.
O processo de correção completa-se com as críticas de Göran
Therborn (sociólogo sueco que se tornou membro do círculo interno da New
Left) ao livro de Anderson. Um artigo incluído em “Do marxismo ao
pós-marxismo” (Boitempo, 2012), contesta tanto a demarcação espacial e
temporal como a seleção com a primazia de filósofos de “Considerações sobre
o marxismo ocidental”. Além de ressaltar a injustiça fragrante da ausência
de nomes como Bertold Brecht, Cornelius Castoriadis, etc., Therborn aduz uma
pista interessante para se pensar porque ele tampouco incluiu Willians na lista
dos rejeitados. Therborn relembra que “assim como os filósofos do século 20 em
geral, os filósofos marxistas tenderam a se mover em direção à sociologia”. Um
itinerário exemplificado, entre outros, pelos frankfurtianos Marcuse, Adorno e
Habermas, mas também por Jean-Paul Sartre, o filósofo por excelência.
Raymond Williams iniciou sua obra como crítico literário. Cedo,
expandiu seus interesses para a crítica cultural em sentido amplo, abarcando
especialidades decisivas para a compreensão do século 20, como o teatro, o
cinema, as comunicações e a televisão. Sua principal contribuição nesse campo
encontra-se, no entanto, na reformulação do termo cultura. Williams
aproxima esse conceito daquilo que Karl Marx considerava como o resultado
primordial do metabolismo do ser humano com a natureza, isto é, a criação, no
decorrer da história, de modos de vida determinados.
Essa confluência induziu muitos a classificá-lo, dentre as
especialidades universitárias, como sociólogo (da cultura). Recusam-lhe assim
inclusive o título de marxista (demasiadamente associado ao propósito
deliberado de implodir a divisão intelectual do trabalho). O paradoxo, nem
sempre percebido, consiste no fato de que a sociologia, no período de formação
e desenvolvimento dos primeiros trabalhos de Williams, era uma disciplina
estranhamente ausente na vida universitária e no debate intelectual inglês.
Essa peculiaridade explica, em parte, a dificuldade comum a nativos e
estrangeiros em reconhecer Williams como um expoente do marxismo ocidental,
atribuição reafirmada e consagrada cada dia mais pela sua recepção atual aqui e
acolá.
NOTAS
COMPLEMENTARES
O Dossiê Raymond Williams,
um expoente do marxismo ocidental pretende esmiuçar para o
leitor, após a tradução no Brasil de seus principais livros, algumas facetas da
obra (quase) inclassificável de Williams.
Michael Löwy desdobra,
entre outros tópicos, a questão da relação entre marxismo e romantismo,
reconhecendo, na resenha feita por Williams, em 1980, de seu livro “A
evolução política de Lukács”, um dos estímulos de sua pesquisa acerca da
posição social e política da arte e da concepção de mundo romântica. Ugo Rivetti destaca o
modo como Williams, em dois livros de sua obra inicial, “Cultura
e sociedade! e “The long revolution”, promove um
acerto de contas com a tradição inglesa de crítica cultural, presença decisiva
em sua formação na Universidade de Cambridge.
Por meio de uma instigante
análise de uma frase, Fernando
Pinheiro esclarece os termos da crítica de Williams à ideia de
cultura ou sociedade de “massas”, aproximando-o tanto da tradição sociológica
alemã como (ainda mais) da linhagem francesa inaugurada por Durkheim Marco Schneider reconstitui
as principais teses de Williams acerca do que se costuma denominar de
“sociologia da comunicação”, a partir de uma leitura cerrada (close reading) dos livrosm “Communications”e “Televisão”.
2 comentários:
Complexa esta questão de marxistas ingleses. A Grã Bretanha foi muito badalada no pós II Guerra Mundial quando os "Laboristas" assumiram o poder com o governo de Clement Attle (não sei se escrevi certo).
Quer dizer: um governo de "esquerda" reformista típico da 2ª Internacional, principalmente por terras européias.
Mas pouco conheço da esquerda marxista britânica. Este Raymond Williams ainda foi falado porque teve inúmeras obras traduzidas e editadas aqui. Mas quem seriam outros?
Mas não importa. Seu artigo é esclarecedor e acrescentou muito ao meu conhecimento do assunto... Valeu amigo, fico-lhe grata!
Ah, uma coisa importante! Venho gostando da sua postura em colocar anúncios contra preconceitos e discriminações, pois acho que tudo isto é alimentado pela direita conservadora e pela "praga" da Igreja Católica Apostólica Romana.
Por isso meus parabens e continue colocando estes anunciozinhos. Hoje mesmo assisti um vídeo com depoimentos e números sobre assassinatos de transex e travestis e fiquei assustada com a quantidade de vítimas fatais!
Enfim, continue nesta campanha!
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