sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Mocinhos ou bandidos?

Estava a assistir “Os Imperdoáveis” (The Unforgiven), de Clint Eastwood, 1992, um dos melhores westerns de todos os tempos, e a observar Little Bill, o personagem vivido por Gene Hackman e classificá-lo, naquele instante, como o “bandido”. Parei para refletir o quanto, pela “receita típica”, ele poderia vir a ser o “mocinho”. Ora, fica evidente que Little Bill estava a tentar manter a ordem na cidade, combatendo pistoleiros errantes em busca da recompensa oferecida por prostitutas para vingar a agressão a uma delas. E mais, Little Bill, com as próprias mãos, estava a construir uma casa.
Ora, os clichês do faroeste sempre foram no caso do “mocinho”, o good guy que lutava pela “lei e a ordem”, e planejava o seu futuro para ter um lar e uma família a ser formada com amor, fé religiosa e bons costume (1). E neste sentido, do ponto de vista clássico, Little Bill é o “mocinho” da história. Resultado de valores puritanos a tentar – e a conseguir – prevalecer de forma “simplista”, mas imposta na mitologia da construção de um vasto e selvagem território, na realidade formado por uma população brutalizada, e conquistado com os tiros de “bandidos”, e as “prostitutas”, a dançar Can-Can nos Salloons regados a litros de uísque. Estes, símbolos reais do homem e da mulher (padrão) da sociedade estadunidense.
O moralismo puritano criou, e o cinema ajudou a consolidar, os Tom Mixes, Gene Autrys, Roy Rogers e tantos outros esteriótipos do chamado mocinho bonzinho e perfeito... Tão perfeitos que ao se degladiarem com os bandidos “maus”, seus lenços não desamarravam, as fartas franjas de suas roupas não desfiavam ou rasgavam e seus chapéus sequer caiam. Foi a fase ingênua do western, num país também ingênuo, sem muitos questionamentos quanto ao seu modus vivendis. Pelo contrário, no auge de enaltecê-lo, chegaram a batizá-lo de “american way of life” e achar que era um exemplo para o mundo.
Mas é claro que isto passou. A partir da guerra do Vietnam os Estados Unidos descobriram um lado nada “puro” de sua sociedade. Heróis do comix, como o Super-Homem, passaram a ter clones maldosos, e, no próprio faroeste seus mocinhos fantasiados (prontos para entrar num carro alegórico de qualquer Escola de Samba), cederam seu lugar a um personagem ambíguo, sujo e maltratado pela aspereza de um ambiente hostil. Roupas empoeiradas, barba por fazer, guimba de cigarro pendurada no canto da boca, influência direta do western spaghetti e do despertar para uma auto-crítica como nação... Seus erros e fraquezas a transformá-los em homens comuns.
Neste ponto, “Os Imperdoáveis” é uma lição ao questionar estes valores. Os outros personagens, a começar pelo próprio Eastwood no papel de William Munny, um antigo pistoleiro aposentado, que se regenerara a partir de um casamento, tornando-se decadente após a viuvez, responsável por duas crianças órfãs de mãe, a criar porcos nos confins do Kansas. Um ex-assassino profissional, um homem “mau” que se arrependeu do passado cruel, mas que se vê tentado pela recompensa oferecida por prostitutas de uma pequena vila para vingar-se de alguns cowboys, especialmente o que marcou a faca o rosto de uma delas, deformando-a.
Mocinho ou bandido? Pela narrativa e pelo enfoque da história, William Munny é o “bom da fita” (ou mocinho). Mas será? Nos valores do western ingênuo seria o bandido. E aí o valor sociológico deste filme. Eastwood questiona a moral clássica da sociedade estadunidense passo a passo, a cada instante de sua narrativa. Uma obra prima como western. Uma obra prima como análise de um país e sua “moral”. Como diretor, e dada a sua experiência no gênero, Eastwood demonstra um senso de observação em detalhes e uma sutileza, que, quanto mais se assiste, mais se gosta e mais se aprende.
Ao colocar de ponta cabeça mitos do faroeste, aproxima-os muito mais de uma realidade plausível. Li em determinada ocasião um livro sobre aquele período histórico que diz que emboscadas e tiros pelas costas eram muito mais comuns do que os famosos duelos frente a frente, que a literatura novelesca de autores (na sua maioria medíocres), e o próprio cinema glamorizaram. Em “Os Imperdoáveis”, até o mito do direito de estar armado para morrer, tão vangloriado em historinhas do faroeste tomba por terra. Um sujeito é fuzilado na “casinha”, simplesmente fazendo suas “necessidades”, sentado, desarmado, completamente vulnerável e indefeso.
E o mais importante de tudo: a visão maniqueísta do bem e do mal... o bom e o mau, o “mocinho” e o “bandido”, mesclam-se em valores reais, palpáveis que mostram que nem sempre se pode ser apenas um ou outro, mas que todo ser humano por vezes é bom ou mau, dependendo das circunstâncias, momento ou ambiente em que vivem. Hoje, é o mocinho, mas amanhã... Bom, amanhã, se não tomar cuidado pode ser o bandido. E vice-versa.

(1) É importante ressaltar que neste universo também existia o “herói” solitário, que vinha de algum lugar, e, ao final, posta a ordem na cidade seguia o seu caminho errante. Um dos melhores exemplos deste tipo está em Shane (Os Brutos Tambem Amam) de George Stevens, 1953. Mas é fundamental levar em conta que este também é o “bonzinho”, cujo caráter é impecável.

7 comentários:

Ieda Schimidt disse...

Interessante esta tua tese sobre o filme do Clint Eastwood.
Creio que há outros aspectos não abordados, como o do próprio herói errante e 'meio' marginal, não tão bonzinho como Shane. Caso este que se assemelha ao de William Munny, que não pode ser (mais) considerado um bandido na forma, como tu mesmo falaste: clássica. E, na verdade é o mocinho de fato na história.
Mas isto é tudo muito sutil. Existem meandros de sutilezas nestas questões. O próprio xerife é mocinho por um lado, bandido por outro. Mas, é como disseste no final, isto tudo se mistura. Senão, caímos em uma análise maniqueista da história.

Jonga Olivieri disse...

É uma análise complexa e cheia de aspectos sutis. Talvez até mereça uma segunda postagem complementar.

maria disse...

Isto é que é análise de uma época tão conturbada como aquela.
E o filme que eu assisti recentemente em DVD é isso mesmo que você fala. Muito embora eu sempre ache que o xerife é um bandidão e não o outro.

Jonga Olivieri disse...

Aí é que vem toda a confa do roteiro deste filme.
Quem é bandido? Quem é mocinho? O negócio é que todos são bandidos, todos são mocinhos.
William Munny sai vencedor na contenda porque vingou as prostitutas e mandou pro beleléu o "coronel" da história, Litle Bill.
Mas veja bem, o oeste está cheio de coronéis bem sucedidos.
Tem um que não é do seu tempo, Bonanza. E tantos outros.

André Setaro disse...

Clint Eastwood, em "Os imperdoáveis" ("Unforgiven", 1992) faz uma revisão da mitologia do western, a destruir, com isso, o maniqueísmo tão presente na maioria dos filmes desse gênero que, para André Bazin, "é o cinema americano por excelência."

Os personagens não são bons nem maus na concepção clássica. Eastwood, na pele de um pistoleiro aposentado, ao decidir cumprir uma missão (a de encontrar aqueles que desfiguraram a prostituta), ainda que premido pela recompensa, tem um gesto nobre. Hackman procura impor ordem na cidade e constrói seu próprio lar, entre outros.

Cada personagem, assim, possui doses de maldade e doses de bondade, assim como todos nós. E não há, em "Os imperdoáveis", por assim dizer, personificações de Maldade nem de Bondade. O homem é bom e mal ao mesmo tempo. Alguns procuram mitigar o mal que se encontra dentro deles para fazer emergir a bondade. Outros deixam que o mal tome conta deles.

O que há de mais tradicional no cinema de Clint Eastwood não é nada daquilo que remete a um certo classicismo americano, mas seu ponto de vista radicalmente duro e amargo: o cinema é crítico da realidade e a ficção é a sua prioridade.

Sobre ser um western de impressionante qualidade na sua "mise-en-scène", "Os imperdoáveis" surge como uma releitura do gênero num momento, anos 90, em que já estava praticamente desaparecido da tela.

Não se pode deixar de esquecer de "Meu ódio será tua herança" ("The wild bunch", 1968), de Sam Peckinpah, obra que também, com grande impacto e violência, desmistifica certos mitos arraigados do western.

Sua observação sobre "Unforgiven" coloca bem os pontos nos "is", além de relembrar este brilhante filme.

PS: O título original de "Os imperdoáveis", "Unforgiven" é o mesmo de um western de John Houston, chamado, no Brasil, "O passado não condena", com Burt Lancaster, Audrey Hepburn, Lilian Gish.

Jonga Olivieri disse...

Esta é a crítica cinematográfica --de fato-- do Professor André Setaro.
E fico feliz da minha abordagem do assunto estar próxima de sua análise.
Eu me lembro do filme (homônimo) de Jonh Ford em que Audrey Hepburn é meio índia e também é um dos westerns magistrais com índios a queimar a casa em final dramático.
Grande filme!

Eddie Lancaster disse...

COMPLEMENTANDO:
O DURO É AGUENTAR AS PESSOASEM CHAMAR, POR EXEMPLO, O GREGORY PECK DE MOCINHO, NOS WESTERNS - DUELO AO SOL, CÉU AMARELO E O MATADOR. NO PRIMEIRO ELE É UM CRUEL VILÃO, NO SEGUNDO UM ASSALTANTE DE BANCOS, QUE AO FINAL DO FILME ENCONTRA A REDENÇÃO NOS BRAÇOS DE UMA MULHER;NO TERCEIRO PROCURA SUA REDENÇÃO FAZ DE TUDO E NÃO CONSEGUE, MAS DEIXA A SUA MENSAGEM.
NO CASO DO WESTERN FANTASIA OS BRUTOS TAMBÉM AMAM, CITADO POR VOCÊ, ALAN LADD É UM PISTOLEIRO CULTO E EDUCADO QUE PROCURA SE REDIMIR DO SEU OBSCURO PASSADO, E ACABA ENCONTRANDO POR SE ENVOLVER COM UM MENINO, NO CASO, AO MEU MODO DE VER ELE É UM ANTI-HERÓI, COMO TAMBÉM É CASO DE JAMES STEWART NO GRANDE WESTERN O PREÇO DE UM HOMEM. NESTE WESTERN EM DETERMINADOS MOMENTOS ELE CHEGA A SER PIOR DO QUE O VILÃO, EM TESE, O GRANDE ROBERT RYAN, MAS AO FINAL SE REDIME NOS BRAÇOS DE UMA LINDA MULHER.PARABÉNS PELO EXCELENTE COMENTÁRIO!