quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A crise do capitalismo e seus reflexos no Brasil




Leda Maria Paulani, no último Boletim Controvérsia nos presenteia com um brilhante ensaio com o título de “A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil”.
Reproduzo abaixo alguns trechos que acho fundamentais para uma compreensão do estágio atual do capitalismo e seus reflexos por terras tupiniquins.

“(...) A VERTENTE CONHECIDA como "escola francesa" da teoria da regulação, que tem em Aglietta (1976) seu trabalho seminal (daqui por diante apenas "teoria da regulação"), busca forjar um instrumental teórico capaz de explicar como se dá a reprodução regular de relações sociais que são contraditórias, ou seja, como explicar de que modo, sendo constituídas socialmente por conflitos imanentes, as economias capitalistas são capazes de manter a acumulação. Para tanto, parte do princípio de que, em cada momento histórico determinado, o processo de acumulação capitalista assume uma forma específica. A partir daí, desdobra o conceito marxista de modo de produção em duas categorias: o regime de acumulação (RA), constituído pelo conjunto das regularidades econômicas e sociais que, em cada momento histórico, são capazes de garantir a acumulação no longo prazo, e o modo de regulação (MR), que vem a ser o conjunto dos procedimentos e comportamentos individuais ou coletivos capazes de reproduzir as relações fundamentais ao processo de acumulação, sustentar e pilotar o regime de acumulação em vigor e garantir a compatibilidade de um conjunto de decisões descentralizadas. Este último papel do modo de regulação implica que essa compatibilidade seja feita sem que seja necessária a interiorização dos princípios de ajustamento do sistema como um todo por parte dos atores econômicos, ou seja, esse conjunto de procedimentos indica a incorporação do social nos comportamentos individuais. Nesse sentido, o modo de regulação figura como a materialização do regime de acumulação em vigor...
... Baseando-se nas características que marcam o capitalismo dos anos 1980 e da primeira metade dos anos 1990 (baixo crescimento do produto, redução de salários e desemprego em boa parte dos países, enorme crescimento do valor dos ativos financeiros, conjuntura instável entrecortada por sobressaltos monetários e financeiros com alto poder de contágio entre os países), François Chesnais, em trabalhos de 1996 e 1997, passa a defender a tese de que, desde o início dos anos 1980, o capitalismo vive sob um regime de acumulação com dominância da valorização financeira, tendo constituído um modo de regulação adequado a esse tipo de acumulação. Combinando os conceitos regulacionistas com o approach marxiano, Chesnais (1997, p.21) diz:
Resultado dos impasses nos quais desembocou a acumulação de longo período dos "trinta gloriosos", esse modo baseia-se nas transformações da "relação salarial" e em um agravamento muito forte da taxa de exploração [...], mas seu funcionamento é ordenado sobretudo pelas operações e pelas escolhas de formas de capital financeiro mais concentradas e centralizadas do que em qualquer período anterior do capitalismo...
... A ideia básica é que os detentores das ações e de volumes importantes de títulos de dívida privados e públicos são efetivamente proprietários situados numa posição de exterioridade à produção, e não "credores" como normalmente se caracteriza, o que leva à distinção entre finanças intermediadas, que caracterizariam o regime de acumulação anterior, e finanças diretas, que prevalecem no regime atual. Para Chesnais, o termo "credor" remete a "empréstimo" e a um papel das finanças que é em última instância o de direcionar as poupanças para quem deseja investir. Mas a finança atual não é, como essa, movida pelas necessidades da produção e da criação de riqueza nova. Sua instituição central é o mercado secundário de títulos, o qual só negocia ativos já emitidos. A existência e a difusão desses mercados fazem que os aplicadores de recursos jamais conheçam quem são seus devedores, não lhes importando "[saber] 'quem pagará o mico', mas saber se os mercados permanecerão líquidos" (Chesnais, 2005, p.49)...
... Marx chama de capital fictício tudo aquilo que não é, nunca foi, nem será capital, mas que funciona como tal. Trata-se, em geral, de títulos de propriedade sobre direitos, direitos de valorização futura no caso das ações, de renda de juros a partir de valorização futura, no caso de títulos de dívida privados, e de recursos oriundos de tributação futura, no caso de títulos públicos. Em todos esses casos, a valorização verdadeira dessa riqueza fictícia depende da efetivação de processos de valorização produtiva e extração de mais-valia; em outras palavras, da contínua produção de excedente e da alocação de parte desse excedente para valorizar o capital fictício. Alguns elementos, porém, permitem que essa riqueza fictícia crie valorização fictícia e liberte a valorização dessa riqueza das restrições e limitações impostas pela acumulação produtiva. O primeiro deles é o fato de esses ativos serem comercializáveis em bolsas, ou nos mercados secundários de títulos, o que faz que sua "valorização" decorra do puro jogo da circulação, descolando-se de qualquer pressuposto vinculado à acumulação produtiva. O segundo é que a fonte dos juros não precisa necessariamente ser o lucro, podendo estar nos salários ou nos recursos extraídos pelo Estado.8 O terceiro é o caráter prolífico do próprio capital fictício, de que dá prova a "produção de direitos" e de "valorização", que os ativos derivativos possibilitam. Evidentemente, a fragilidade e a vulnerabilidade da economia e sua propensão a crises aumentam pari passu com o crescimento da riqueza financeira e o aprofundamento das contradições sistêmicas que ela implica. Resta recuperar a história desse crescimento...
... A história da mudança do regime de acumulação em direção a um regime com dominância da valorização financeira começa em meados dos anos 1960. Depois de 20 anos de crescimento mundial vigoroso produzido pelas políticas de cunho keynesiano, com controle de demanda efetiva, Estado do Bem-Estar Social, reconstrução da Europa e da Ásia e industrialização da América Latina, a reversão cíclica tem lugar e o crescimento desacelera. Esse processo é mais intenso nos países europeus, em razão do término do processo de reconstrução do pós-guerra. As multinacionais americanas espalhadas na Europa optam por não reinvestir a totalidade de seus lucros na produção, pois as perspectivas de ganho já não eram tão boas, mas tampouco enviam o excedente não reinvestido aos Estados Unidos, por conta de uma legislação tributária, à época, considerada muito dura. Esses recursos (eurodólares) começam então a "empoçar" na city londrina, o espaço off shore, também conhecido como euromarket, criado no início dos anos 1950...
... O regime de acumulação com dominância da valorização financeira tem a formação de crises, ocasionadas pela recorrente geração de bolhas de ativos, como sua característica mais marcante. Ele é por isso estruturalmente frágil. Ao longo dos últimos 30 anos, o poder detido pela riqueza financeira foi moldando as instituições de forma a criar um modo de regulação compatível com um processo de reprodução capitalista sob seu comando. Completado esse processo, o sistema encontra-se no auge de sua fragilidade. Esta é, por isso, uma crise diferenciada, pois tem de ser enfrentada em condições muito mais adversas que as anteriores (ambiente de operações completamente desregulado, com alto nível de contágio e amplitude verdadeiramente global). Além disso, o que torna o cenário nada alvissareiro é que o expediente de se recorrer ao aumento de liquidez para salvar do incêndio, o assim chamado lado real da economia, parece estar chegando a seu limite.19 Sinal disso é a dificuldade que se tem encontrado de reverter os sinais negativos trazidos pela crise, a despeito da enorme quantidade de dólares derramados nas principais economias do planeta. Qualquer semelhança com a armadilha da liquidez não é mera coincidência, mas o que torna a situação ainda mais complicada do que aquela que inspirou o achado keynesiano é que o eventual sucesso da empreitada vai jogar para a frente, de modo ampliado, os mesmos descompassos que estão na origem da crise atual...

... A situação e as perspectivas do Brasil no contexto da crise do regime de acumulação financeira
O Brasil foi personagem da história da financeirização do capitalismo desde seu começo. Inicialmente o país constituiu parte expressiva da demanda por crédito que ensejou a primeira bolha global de ativos do capitalismo financeirizado, consubstanciada na crise das dívidas latino-americanas da primeira metade dos anos 1980. Mais à frente, a partir da segunda metade dos anos 1990, tornou-se potência financeira emergente, tendo, para tanto, realizado todas as reformas estruturais necessárias, da estabilização monetária à abertura financeira incondicional, da reforma da previdência às mudanças na lei de falências. Posicionou-se assim como plataforma internacional de valorização financeira,20 ou seja, economia emergente na qual era possível obter elevadíssimos ganhos em moeda forte, por vezes os mais elevados do mundo. Na época do câmbio fixo, isso foi possível graças às enormes taxas de juros e, depois da crise de 1999, mais particularmente depois de 2003, graças também ao processo recorrente e autorreferenciado de valorização da moeda brasileira, alavancado, como não poderia deixar de ser, pelas apostas com derivativos...
...  Não por acaso, os primeiros impactos da crise sobre a economia brasileira estiveram relacionados ao próprio setor financeiro...
... Os impactos pelo lado real têm chegado aos poucos e têm vindo principalmente da deterioração das expectativas, que poderão reverter os indicadores relativos à formação bruta de capital fixo (ou seja, investimento) que, a duras penas, estavam se recuperando, depois de duas décadas de estagnação. Os investimentos governamentais como o PAC e o pacote habitacional poderão substituir em parte o investimento privado, mas dificilmente serão suficientes para compensar a redução deste último. Do lado do consumo, o crédito não foi tão afetado, apesar de certa retração no início, particularmente no que tange a financiamento de bens de alto valor, como automóveis. Sobre isso vale notar a importância que hoje tem o crédito, particularmente o crédito consignado, na sustentação dos níveis de consumo, o que só ratifica a tese da proeminência da finança, ou seja, de uma acumulação produtiva que se dá sob os auspícios e o comando da acumulação financeira...
... A referência aos capitais de não residentes operando em nossa economia obriga a analisar o retorno dos capitais externos observado nos últimos meses e o que isso significa no contexto da crise. Inicialmente é preciso lembrar que, apesar dos últimos cortes definidos pelo Copom, a taxa básica brasileira está ainda entre as maiores do mundo, o que, evidentemente, retomados níveis mínimos de confiança, volta a trazer divisas ao país, em particular porque as taxas de juros são hoje, em boa parte do mundo, negativas. Isso faz lembrar a fábula de um suposto "Bretton Woods 2" que começou a correr nos meios financeiros internacionais em 2005...
... A tese sobre o suposto arranjo pressupunha que ele duraria um tempo substantivo, pressuposto que a crise abalou, mas que países como o Brasil não deixam destruir inteiramente. Encontramos assim um novo papel para nossa economia no capitalismo financeirizado, qual seja, o de absorver a escassez de poupança americana, o que permite que o comando da finança não fique tão abalado no centro do sistema, e continue firme por aqui. O afluxo de dólares volta a girar a roda da valorização do real e a reinflar a bolha que havia murchado com a crise. A sustentabilidade desse "arranjo" e, mais ainda, sua capacidade de reconstituir por aqui um círculo virtuoso de crescimento capitalista são tão seguras quanto a ordenação macroeconômica invertida que resultou do Brasil pós-crise. 


4 comentários:

Joelma disse...

Uma excepcional análise. Qual o link para a leitura completa?

Jonga Olivieri disse...

Jô, o endereço na 'web' é:
http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=13576

Misael de Silva Costa disse...

Leda Maria Paulani detecta perfeitamente os custos da crise para a classe trabalhadora, como redução de salários, desemprego e um agravamento muito forte da taxa da mais-valia.

Mário disse...

E a definição do capitalismo hoje está nas palavras de Marx, que "chama de capital fictício tudo aquilo que não é, nunca foi, nem será capital, mas que funciona como tal. Trata-se, em geral, de títulos de propriedade sobre direitos, direitos de valorização futura no caso das ações, de renda de juros a partir de valorização futura, no caso de títulos de dívida privados, e de recursos oriundos de tributação futura, no caso de títulos públicos", como muito bem cita a Sra. Dra. Leda Maria Paulani.