O século XIX testemunhou, com Marx e Engels, a inauguração de uma nova perspectiva no entendimento da origem e da função do Estado. A tradição liberal de até então –ou mesmo desde antes, a partir de Maquiavel–, considerou sempre o Estado como poder exterior, acima dos interesses particulares e, em última análise, indispensável à vida social, fosse para a resolução de conflitos entre os homens, portadores de uma suposta “natureza má” (Maquiavel), fosse para a garantia de direitos ditos “naturais”, como o de propriedade (Locke), fosse ainda em nome da vontade geral e do desenvolvimento pleno dos homens em relação ao seu estado de natureza (Rousseau) ou, por fim, como representação máxima do desenvolvimento alcançado pelo “Espírito”, grau maior da liberdade atingida pela humanidade (Hegel).
Marx e Engels romperão com esta tradição e
afirmarão categoricamente que o Estado é produto ineliminável da sociedade de
classes, produto das entranhas deste conflito, um Estado de classe. Negavam
assim, portanto, a universalidade que Hegel lhe atribuía e, sobretudo, o
caráter de mediação isenta que os liberais em peso lhe conferiram.
A despeito disso, tornou-se lugar comum mais
recentemente atribuir aos pensadores alemães concepções estreitas de Estado e
Revolução, respectivamente nada mais do que um “comitê que administra os
negócios comuns da classe burguesa como um todo” e tomada súbita e violenta do
Estado supostamente entendido como mero aparelho. Teria cabido, então, a
Gramsci a acurada percepção da “ampliação” do Estado e a consequente
“atualização”, por assim dizer, do conceito de revolução. Evidentemente não
podemos concordar inteiramente com tal perspectiva. A “ampliação” conceitual de
fato promovida por Gramsci não está na relação direta da suposta estreiteza de
Marx e Engels. A contribuição do pensador italiano, diga-se de passagem, quando
deturpada, tem sugerido a abdicação da Revolução pela conquista lenta e gradual
de uma hegemonia esvaziada do seu conteúdo e que tem servido de elogio às
regras do jogo político da burguesia. No entanto, o grande mérito do conceito
gramsciano de “Estado integral” é mostrar exatamente o inverso: de um dado
momento do desenvolvimento do Estado moderno em diante, a luta anticapitalista
se tornara mais difícil justamente porque o poder burguês deixara de se basear
apenas, ou em maior medida, na coerção. O poder de dominação da burguesia se
tornara sobejamente mais “integral” do que até então fora e, portanto,
precisaria ser combatido à altura. Eis o importante alerta que Gramsci nos faz.
Supomos, assim,que as muitas imprecisões, equívocos e oportunismos políticos que
teem sido cometidos em nome de Gramsci nas últimas décadas e, claro, à revelia
de sua obra e contra a sua história, teem tido sua fonte constante e incessante
nessa espécie de “mito fundador” da “estreiteza” se Marx e Engels.
Marx, Engels e Gramsci não se prestam às
reduções que lhes estão sendo imputadas, acreditamos. Uma apreciação um pouco
mais detida sobretudo dos textos escritos por Marx e Engels na virada da década
de 1840, torna patente o impacto que a derrota do movimento revolucionário em
1848, na França especialmente, exerceu sobre os dois, dando início a um reexame
sistemático do que vinham pensando e escrevendo, juntos ou individualmente. A
partir de então, e especialmente após a experiência da “Comuna de Paris”, em
1871, ficou evidenciada para ambos a complexidade do papel do Estado na
manutenção da dominação de classes, bem como a necessária sofisticação da luta
e inovação das táticas por parte dos trabalhadores, face à nova situação que se
apresentava. Senão, vejamos: já em 1851, em seu “As lutas de classe na França
de 1848 a 1850”, Marx constrói uma análise cuidadosa dos embates extra e
intraclasses, entre burguesia e proletariado, mais flagrantemente expostos após
a derrubada da monarquia de Luís Felipe, em fevereiro de 1848, e a posterior
subida ao poder de Luís Bonaparte –futuro Napoleão III– no mesmo ano.
Diante das vacilações da pequena burguesia,
da fragilidade política do capital industrial, do protagonismo da burguesia
financeira e dos vazios de poder que esta luta entre frações da classe burguesa
promovera, Marx consegue captar a relativa autonomização da máquina do Estado
em relação às mesmas classes que o disputavam, identificando com clareza
mudanças substanciais no que até então concebera. Isto não significou, porém, a
negação da condição de classe desse Estado, como apontara no Manifesto, nem
tampouco uma mudança de interpretação quanto ao caráter não exterior do Estado
em relação à divisão da sociedade em classes. Nos diz Marx: “Ao transformar o
seu lugar de morte em lugar do nascimento da república burguesa, o proletariado
obrigou-a ao mesmo tempo a manifestar-se na sua forma pura como Estado, cujo
objetivo confesso é eternizar a dominação do capital e a escravidão do
trabalho.”
Ainda um pouco antes, se quisermos nos
remeter a uma obra do jovem Marx, poderemos identificar o momento primeiro em
que Marx aponta este caráter não exterior. Em “Crítica à filosofia do direito
de Hegel”, de 1843, contrariando o autor de “Fenomenologia do Espírito” (1807),
afirma que o Estado, este sim, era o predicado da sociedade civil, e não o
contrário. Tal perspectiva apontava para a necessidade de compreender a
sociedade civil e somente assim chegar à compreensão do Estado e das
contradições que o caracterizavam. Em 1852, dando prosseguimento à apreciação
do agitado meado de século francês, em seu “18 brumário de Luís Bonaparte”,
afirmou com todas as letras o pensador alemão: “Todas as revoluções
aperfeiçoaram essa máquina, em vez de a destruir. Os partidos que lutaram
alternadamente pela dominação, consideravam a tomada de posse desse imenso
edifício do Estado como a presa principal do vencedor.” Como se vê, esta última
afirmação talvez bastasse para dirimir as dúvidas sobre o verdadeiro alcance
das concepções de Marx sobre o Estado. Embora o nomine como “máquina” –o que
poderia sugerir uma compreensão restrita–, reconhece suficientemente a
complexidade que o envolve para não apostar apenas em simples golpes de força.
Dito de outro modo: se constantemente, como
fica elucidado no texto, as frações da classe burguesa em disputa se viram
frustradas nos seus objetivos de dominação acreditando terem apanhado o lobo
quando em verdade estavam se apossando apenas de sua pele, é, no mínimo, de se
supor que o autor de “O Capital” estivesse considerando este alvo de cobiça da
burguesia como algo muito além de um simples “comitê executivo”. Mas se no
último trecho citado a análise recai sobre a burguesia, exclusivamente, tomemos
uma outra passagem em que Marx repete, em essência, a mesma avaliação a partir
da perspectiva do proletariado. E note-se que agora o contexto de análise é a Comuna de Paris, experiência exitosa
ainda que efêmera, que permitiu conferir, num grau de concretude do real nunca
antes experimentado pelos trabalhadores, a quem o Estado serve e por que ele
precisa ser destruído pelo movimento revolucionário. Sentencia Marx: “a classe
operária não pode apossar-se simplesmente da maquinaria de Estado já pronta e
fazê-la funcionar para os seus próprios objetivos”. Em suma, para Marx, e também
para Engels, como veremos, o Estado é produto de relações sociais de dominação
entre classes antagônicas. E dessa forma, a sua tomada súbita, violenta, embora
em dado momento da luta revolucionária também faça parte do script, não pode representar,
isoladamente, o fim das relações sociais de dominação que e o engendraram. Ato
contínuo, embutida nesta concepção de Estado está a noção de revolução também
como algo muito além da simples tomada do aparelho de Estado, pura e simplesmente.
Marx e Engels nunca tiveram dúvida de que o melhor destino para o Estado, para
o projeto comunista, era o lixo da História e, com ele, em paralelo, o
consequente desaparecimento da sociedade de classes.
Este, inclusive, foi o cerne do encarniçado debate
entre Marx e Bakunin na “I Internacional dos Trabalhadores”. Marx, ciente do
imenso desafio, defendia a necessidade de uma transição, onde o poder
concentrado nas mãos dos trabalhadores (Ditadura do Proletariado), teria a
tarefa de desmontar os pilares de sustentação da sociedade de classes,
anulando, assim, a razão de ser do Estado. Bakunin, ao contrário, crítico
ferrenho de toda a forma de autoridade, propunha a extinção imediata do Estado.
Para o primeiro, a extinção do Estado, por ser processual, figuraria como
último ato da revolução. Para o outro, se constituía no ato de abertura do
processo revolucionário. Embora reconheçamos a ausência aqui da voz de Bakunin
a se defender, vale a citação de Marx, bastante ilustrativa e profícua para
este debate, onde ele narra, com a ironia habitual, o desdobramento fatídico do
“episódio de Lyon”, em 1870, quando os trabalhadores –dos quais um dos
principais líderes era o mesmo Bakunin– se insurgiram e tomaram a prefeitura da
cidade, tal como fariam um ano mais tarde os communards de Paris.
Bakunin instalou-se lá [na prefeitura da
cidade]; então veio o momento crítico, o momento aguardado por muitos anos,
quando Bakunin pôde levar a cabo o mais revolucionário ato que o mundo jamais
vira –ele decretoua “Abolição do Estado”. Mas o Estado, na forma e natureza de
dois camaradas da Guarda Nacional burguesa, deu uma geral na prefeitura e botou
Bakunin para correr de volta para Genebra. Se formos em busca de Engels,
veremos também o quão profundamente improcedente é a atribuição a este pensador
de uma concepção restrita dos conceitos de Estado e Revolução, assim como um
lugar excessivamente à sombra de Marx. Em “O Anti-Duhring” (1877), em ”A origem
da família, da propriedade privada e do Estado” (1884) e ainda numa série de
cartas, prefácios e posfácios às reedições das obras de Marx, sobretudo após a
morte deste, Engels deixa claramente registrado o seu entendimento sobre o
tema. Assim como Marx, Engels percebe uma “certa independência momentânea” do
Estado em períodos de equilíbrio da luta de classes. Tal como o seu conterrâneo
e parceiro intelectual, refuta as interpretações que apontam a origem do Estado
como fruto de um processo exterior às classes, isento de seus conflitos.
Considera, ainda, na medida da imensa tarefa emancipatória reservada à classe
trabalhadora, a extrema complexidade da luta contra o Estado e a sociedade de
classes na modernidade, que deve se materializar na organização da classe
revolucionária e na definição acertada das estratégias de sua luta revolucionária.
Para este pensador, portanto. O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que
se impôs à sociedade de fora para dentro
(...). É antes um produto da sociedade,
quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento (...). Mas para que
esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes, não se
devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um
poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o
choque e a mantê-la dentro dos limites da ‘ordem’. Este poder, nascido da
sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado. O
caráter de classe do Estado, se nesse trecho ainda não aparece inteiramente
explicitado, embora o conflito de classes que lhe dá origem se faça presente,
revela-se na sequência, ainda na mesma obra. Vejamos: Como o Estado nasceu da
necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu
em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa,
da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se
converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a
repressão e exploração da classe oprimida. Engels avança ainda mais na
compreensão da maior complexidade do Estado –e, por consequência, da luta que
caberia aos trabalhadores por uma sociedade sem classes. De todos os textos que
atestam este reexame conjuntural e uma consequente revisão das estratégias,
talvez o mais célebre seja a “Introdução” à segunda edição alemã do texto de
Marx.
As lutas de classe na França de 1848 a 1850, escrito
em 1895, cinco meses antes de sua morte. Nele, a despeito das conhecidas
manipulações que sofreu, reforça algumas conclusões a que Marx também chegara e
antecipa outras que mais tarde seriam apropriadas e ampliadas por Lênin e
Gramsci, por exemplo, como a necessidade de uma combinação entre formas
“legais” e “ilegais” de luta e a compreensão do embate contra a burguesia e o
seu Estado como um processo gradual, mais estratégico que explosivo, de
ocupação de espaços no sentido do acúmulo de forças por parte dos
trabalhadores.
Um comentário:
Irretocável este texto de André Vianna Dantas em "Marxismo 21", um site tambem irretocável!
Postar um comentário