Neste domingo, transcrevo abaixo a matéria de Ricardo
Alvarez sobre a Síria,
publicada no Boletim Controvérsia, nº
143 (setembro de 2013), intitulado “A encruzilhada Síria na nova
desordem mundial”.
EUA ameaçam ataque à Síria, Israel
reclama do perigo iminente em suas fronteiras, França e Inglaterra se dizem
dispostas a colaborar com EUA, rebeldes oposicionistas alimentados pelas
potencias ocidentais e os estados locais aliados levam o caos ao país, enfim,
nenhuma novidade no front. Será?
Uma guerra que se estende por mais de dois anos entre as forças do
governo Sírio e rebeldes, que se desenrolou a partir do movimento
pró-democracia da Primavera árabe e que ganhou contornos internacionais, levou
à morte mais de 100 mil pessoas e um número de refugiados que ultrapassa um
milhão e meio de pessoas. Este é o quadro desolador numa conjuntura de
acirramento das tensões.
Neste contexto os EUA decidem por atacar o país, intenção exposta num
discurso de Obama na Casa Branca neste final de agosto, impulsionado pelo uso
de armamento químico num ataque covarde na periferia de Damasco e que provocou
a morte em massa de crianças e mulheres. Gás Sarin despejado sobre civis foi
notícia no mundo todo, fotos chocantes circularam nas redes sociais e deram
cores internacionais para um conflito que se apresentava, até então, regional.
Seguiram-se manifestações contra Bashar al-Assad, acusando-o pelo crime.
Inevitável a ação liderada pelo ocidente em defesa “dos direitos humanos” e da
“democracia” na Síria.
O roteiro é velho conhecido. A grande imprensa ouve John Kerry, da
atenção a Obama, repercute Hollande e, vez ou outra mostra até rebeldes sírios
em ação. Quem pode concordar com o uso de armas químicas? Tratados
internacionais não proíbem este tipo de armamento? Parece que não há outra
saída senão a intervenção externa. Mas será mesmo?
A questão central é que um novo quadro político se desenhou desde as
ações desastrosas dos EUA no Afeganistão e no Iraque, além das histórias mal
contadas que vieram à tona e desnudaram um discurso apoiado em falsas
premissas, como a guerra preventiva e o “restabelecimento da ordem”. Vejamos as
bases deste novo momento:
- Desde o final da Segunda Guerra Mundial a Inglaterra decidiu por ser
aliada incondicional dos EUA em suas intervenções externas, naquilo que Winston
Churchill denominou de "relação especial", mas que na verdade mais
significa uma submissão vergonhosa. O parlamento inglês, desta vez, não aprovou
uma nova autorização de alinhamento na operação militar de ataque à Síria.
- Mentiras anteriores sobre armas químicas no Iraque e a defesa de
ataques preventivos não colam mais. O Iraque não possuía tal armamento e nem
tampouco se confirmou a intenção de Saddam Hussein em atacar os EUA. Repete-se
uma farsa que não convence mais por experiências anteriores.
- Obama se antecipou às investigações dos especialistas em armas
químicas da ONU na Síria e anunciou a invasão sem o devido conhecimento do
relatório final que pode apontar os responsáveis pelas atrocidades. Qual a
pressa?
- Uma nova frente política se estabeleceu, marcada por profundas
contradições internas que certamente fragilizarão a ação militar. França e EUA
andam lado a lado, coordenando as operações a partir dos territórios dos
aliados no confronto, como a Turquia, Arábia Saudita e Jordânia, além das bases
militares espalhadas na região. Mas não podemos esquecer a associação Al Qaeda
e rebeldes. Sim, EUA e Al Qaeda coabitam os mesmos interesses (derrubar Assad)
e as mesmas trincheiras no campo de batalha. A Casa Branca sabe que ao
alimentar rebeldes, com armas e munições, pode estar dando de novo, um tiro no
pé.
- China e principalmente a Rússia, são países que se opõem à ocupação.
Membros efetivos do Conselho de Segurança da ONU com certeza votarão
contrariamente aos interesses dos outros três membros (EUA, Inglaterra e
França), o que inviabilizaria o aval do órgão à ação, que só se dá quando
obtido consenso. Mas o mais importante, neste caso, é observar que o conflito
ganhará proporções mais significativas com a intensificação do apoio a Assad,
que é o que os EUA não querem. Rapidez e intensidade saíram da boca de Obama ao
se referir à invasão.
- A crise econômica mundial joga decisivamente contra os interesses dos
EUA na ação. O tempo fica mais escasso, os erros ganharão intensidade e as
finanças de guerra mais curtas, enfim, o estoque de paciência será reduzido e
os bombardeios nas redes sociais vão contribuir neste sentido. A troca da
Inglaterra pela França, por exemplo, contribui para a ocorrência de deslizes e
desencontros.
- A intensificação do terrorismo será inevitável e creio ser a França o
alvo principal, num primeiro momento. O que muda então? Os atentados terão
efeito direto sobre o tempo disponível de ação das tropas ocidentais e dos
rebeldes.
- A ação dos EUA deve se limitar, pelo menos no início, em ataques
aéreos sobre posições das forças sírias, buscando facilitar a operação em terra
dos rebeldes. A que se considerar os efeitos limitados desta ação, primeiro
pelo estrago generalizado e pela recrudescimento da violência (quem acredita em
guerra cirúrgica?), vitimando civis e alimentando posturas contrárias à
invasão. E não existem garantias que esta tática abra caminhos aos rebeldes. O
que se pode esperar, com toda certeza, é o caos generalizado, a destruição da
infraestrutura, a desorganização da economia em patamares mais elevados e a
explosão da crueldade. O nobel da Paz recebido por Obama também pesará neste
contexto.
- É cada vez mais evidente e claro que não é o direito à vida do povo
sírio que os EUA querem garantir, nem tampouco a defesa dos direitos humanos ou
a implantação da democracia. Com grande dose de certeza o gás Sarin foi obra
dos rebeldes orientados pelos EUA, pois não interessava ao governo Assad esta
ação, uma vez que suas tropas avançavam sobre posições dos rebeldes, em
especial nos últimos dois meses. Seria uma grande burrice lançar mão deste
recurso neste momento, ainda mais com a presença de inspetores da ONU no país.
- Cabe a pergunta: se o ditador Assad incomoda tanto, por que outros
ditadores incomodam menos, como os que governam a Arábia Saudita (que esmagou a
primavera árabe), o Catar e o Kwait, por exemplo. Esta questão sem resposta
evidencia que os interesses dos EUA não são tão nobres ou universais e será
argumento fértil para os que conseguem entender o que se esconde por detrás
desta operação.
- Os rebeldes são um verdadeiro saco de gatos. Incentivados e municiados
pelos opositores de Assad, são diversos em seus objetivos e vínculos.
Observe-se que há dois anos estão em luta e, mesmo assim, conseguiram avanços
baseados na lógica do caos geral, promovendo estupros, assassinatos em massa e
destruindo casas. Note-se que sua presença no país não tem significativo apoio
popular. Assad acaba sendo o mal menor.
- Por fim, destaco que havia em curso na Síria uma verdadeira revolução
liderada por jovens sedentos por democracia, participação popular e por
reformas de base no curso da Primavera Árabe, ideais que soam como insulto aos
ouvidos de Assad e assustam os governos do ocidente. A guerra e agora a
invasão, procuram dar um basta nesta iniciativa através da implantação de um
governo pró-EUA de um lado, ou pela manutenção de Assad de outro. Há uma
legítima e necessária terceira via em construção.
As variáveis são muitas e as incertezas sobre o futuro também. Obama
está dando uma cartada de alto risco, impulsionado pelos belicistas,
nacionalistas reacionários, republicanos e a grande mídia, além das vantagens
econômicas de se fazer uma guerra. Pode ser o enterro definitivo de seu mandato
e sua desqualificação política, como já ocorreu com George Bush.
O que se deve repudiar, sem tréguas, é a manutenção de uma política
externa sobejamente falida do ocidente para o Oriente Médio, calcada na
ingerência política e no militarismo como elementos de expansão das fronteiras
do capitalismo, como prática de implantação das leis de mercado e do
consumismo, como incorporação desta região aos princípios do individualismo e
da competição. No fundo, é disto que se trata, os resultados já são conhecidos
e não são nada agradáveis.
4 comentários:
Muito boa esta tua Pensata de Ricardo Alvarez....
Como é claro também que os gases lançados contra a população foi em um ataque (realizado pelos rebeldes acobertados por Obama), pois ao governo sírio não interessa mesmo se "queimar" internacionalmente com uma ação dessas, também acho mais do que evidente que não é o direito à vida do povo sírio que os EUA querem garantir, nem a democracia, nem uma defesa dos direitos humanos.
ISso tudo é uma pouca vergonha de Israel e dos Estados Unidos.......
Sabe, mas o problema ali é uma velha disputa entre os orientais e os ocidentais pela divisão daquela região do Oriente Médio.
Na verdade a Inglaterra Vitoriana batalhava palmo a palmo com os Turco-Otomanos, tendo por trás o Império dos Czares, e quem pagou por tudo isso foram os povos árabes da região.
L.P.
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